Henk Rogers: o designer americano que fez do jogo um fenômeno global falou com a EXAME (Leandro Fonseca /Exame)
Repórter de POP
Publicado em 26 de junho de 2025 às 06h00.
O ano de 1984 foi aquele em que a Apple lançou o McIntosh, seu primeiro computador, na Califórnia. A 9.500 quilômetros de distância, surgia em Moscou outra inovação que mudou o mundo da tecnologia.
Alexey Pajitnov, um pesquisador soviético do Centro de Computação da Academia de Ciências da URSS, entediado, inventou um novo jogo para passar o tempo. Obcecado por pentaminós — um tipo de quebra-cabeça com cinco peças —, criou um sistema rudimentar no então Elektronika 60, computador utilizado pela União Soviética na época, para produzir um jogo com tetraminós que, quando devidamente encaixados e empilhados, somariam pontos. Entusiasta do tênis, na hora de nomear sua nova invenção, uniu o nome das peças ao sufixo do esporte e declarou a data de nascimento do Tetris, o videogame mais famoso do mundo.
Com uma dinâmica de jogabilidade simples, mas poderosa, o jogo é um bom exemplo de sucesso que se mantém além do tempo. Enquanto as demais empresas no mercado de games tentam reviver a receita da pandemia — caso da EA Games, que traça estratégias para recuperar as vendas baixas, e da PlayStation, que fechou estúdios e cancelou projetos depois de perder clientes — e atravessar os altos custos de produção, sem saber muito bem como lidar com os dilemas éticos da inteligência artificial, a dona do maior jogo do mundo segue fazendo o mesmo trabalho desde 1984: empilhar blocos. E surfa a onda com a aparente “simplicidade” de seu negócio.
No ano passado, segundo dados da Newzoo, agência global de análise de videogames, a indústria gerou receita de US$ 187 bilhões, puxada sobretudo pelos jogos para smartphones. Nessa categoria, o Tetris é um dos jogos mais bem-sucedidos da história, ainda que não figure na lista dos cinco maiores atualmente.
Já foi baixado mais de 500 milhões de vezes, e já faturou mais de US$ 1 bilhão só com esse dispositivo. Está à frente dos sucessos contemporâneos como Genshin Impact (200 milhões de dólares) e Amoung Us (450 milhões de dólares). Também ultrapassa gigantes de outras plataformas, como Minecraft, que tem cerca de 300 milhões de downloads desde sua criação, em 2009.
E foi além dos smartphones. Na verdade, seu sucesso começou antes mesmo da existência deles — e a prova disso são os mais de 35 milhões de Game Boys vendidos antes dos anos 2000, que transformaram o jogo no mais vendido para o console, com faturamento bruto que ultrapassa US$ 1 bilhão. Uma conquista de Henk Rogers.
Maya Rogers: a filha de Henk Rogers é a atual presidente da Tetris Company (Frazer Harrison//SXSW/Getty Images)
Designer de videogames, Rogers é um empresário que ficou famoso no setor de jogos na década de 1980. Foi ele quem produziu o primeiro RPG baseado em turnos do Japão, The Black Onyx, mas seu maior trunfo nos negócios foi a “descoberta” do Tetris, que iniciava uma extensa novela jurídica de licenciamentos.
Ele se tornou CEO da Tetris Company em 1995, com o apoio de Pajitnov, depois de vencer a batalha dos direitos autorais que nasceu com o jogo dentro da União Soviética. Durante a Gamescom Latam de 2025, no Brasil, Rogers falou à EXAME que atribui parte de seu sucesso diante da concorrência por saber aproveitar mudanças do mercado sem perder a fidelidade de seu projeto original.
“O Tetris não tem cultura, é um jogo matemático. É geometria, e a geometria não mudou desde Euclides, há 2.000 anos. Se um jogo tem cultura, como algum personagem, ele acaba saindo de moda”, disse ele. E acrescentou que a moda, alinhada às tecnologias mais recentes do mercado, como a IA, resultam em um eventual aumento de vendas. “O advento da IA, para nós, significa que o jogo pode observar como você está jogando e entender algo sobre você. Podemos adaptar o jogo para que ele se ajuste ao jeito que você gosta de jogar, e isso é diferente de antes. Todo mundo, na história, tinha de jogar o mesmo jogo, igualzinho. Mas agora a IA pode observar e dizer: ‘Sabe, isso é mais divertido para essa pessoa’. E, se fica mais divertido, mais gente vai baixar — e a gente, como empresa, vai faturar mais com isso”, comentou.
Ainda que a fala de Rogers dê a entender que o negócio é simples, nem sempre se ater a uma única coisa garante sucesso — sobretudo se essa “coisa” for um jogo altamente pirateável. Estima-se que mais de 1 bilhão de pessoas, cerca de 12,5% da população mundial, tenham jogado Tetris pelo menos uma vez em alguma das mais de 65 plataformas em que ele está disponível. O feito colocou o jogo na lista de recordes do Guinness Book como o videogame mais adaptado da história. Mas boa parte dessas adaptações, vale dizer, não ocorreu dentro da legalidade.
De 1984 para cá, a história da propriedade intelectual do Tetris foi um verdadeiro novelo de lã embaraçado. Inventado na URSS, onde não existia o conceito de propriedade intelectual, o jogo era pertencente a um Estado, e não a uma pessoa. O detalhe abriu precedentes para que a expansão para o resto do mundo fosse pulando de ilegalidade em ilegalidade, do Elektronika 60 para o Atari, Game Boy, e por aí vai.
Rogers só encontrou o Tetris em 1988, durante a feira Consumer Electronics Show (CES), bem depois de o jogo ter sido distribuído mundo afora sem o devido licenciamento. Chegou a obter os direitos de PC, console e arcade para o Japão, sem saber que eram inválidos. Foi apenas após uma viagem a Moscou, em 1989, que conheceu Pajitnov e descobriu que Elorg, a empresa original do Tetris na URSS, nunca havia licenciado o jogo para consoles. Ele então garantiu os direitos e, com a Nintendo, fez um acordo que garantiria um pagamento inicial de 1 milhão de dólares e royalties de 1 dólar por unidade vendida do Game Boy.
“Quando eu conheci o Alex, percebi que o Tetris era muito maior do que tudo com o que já tinha trabalhado ou publicado. Devo muito a ele pela confiança que teve em mim até que essa batalha jurídica fosse cessada. Nos primeiros anos depois de conseguirmos o licenciamento, que virou nosso, tratei o Tetris como a Disney trata o Mickey Mouse”, disse.
Em 1990, a Nintendo começou a negociar os direitos de merchandising do jogo. Mas foi só em 1995 que a Tetris Company foi criada, cofundada por Pajitnov e Rogers, e a empresa de fato assumiu os direitos do jogo.
Apesar de marcar território, não quer dizer que hoje o jogo não seja mais jogado em plataformas ilegais. No Brasil, por exemplo, é comum ver o sistema em “game boys” baratos, encontrados em camelôs, sem o selo oficial da Tetris Company. Mas o licenciamento permitiu que Rogers tivesse um controle maior até sobre isso.
A sua estratégia para conter a pirataria, na verdade, passou a impulsionar o crescimento da empresa de 1996 para cá no mundo todo, muito além dos gigantes dos videogames. “Todo país passa pela fase em que não respeita a propriedade intelectual. Mas, eventualmente, eles amadurecem. Quando eu fui à Coreia pela primeira vez, havia Tetris em toda parte. Eu tentei licenciar, e todo mundo dizia: ‘Por que eu deveria te pagar?’. Todos se tornaram empresas de capital aberto, então eu escolhi a maior e disse: ‘Ok, você pode ter o direito exclusivo para a Coreia, mas tem de parar todo mundo, senão vamos a um embate jurídico’. Agora a Coreia está completamente limpa. O mesmo aconteceu na China, que provavelmente foi o lugar onde perdemos mais dinheiro ou onde mais cópias do Tetris foram feitas na história”, diz Rogers. “Fico feliz que o jogo seja jogado no mundo todo, mas protegemos nossa propriedade intelectual e, apesar do dinheiro perdido, ainda estamos crescendo como empresa ano após ano.”
Rogers já não atua mais como CEO — em 2024, passou a responsabilidade para Maya Rogers, sua filha. Mas o legado da marca, que uniu um russo e um holandês-americano durante a guerra fria na administração do jogo mais famoso do mundo, continua tão firme quanto os blocos empilhados nas telas. Tem sobrevivido à IA ao usá-la como aliada. “E eu espero que dure para a eternidade”, diz ele no livro O Jogo Perfeito — Tetris: From Russia With Love, lançado no Brasil em maio deste ano.
O Tetris foi criado na União Soviética, onde não havia o conceito de propriedade intelectual, e protagonizou uma novela jurídica até ser um produto oficial da Tetris Company
Veja abaixo como foram definidos os direitos do jogo desde sua criação:
⟶ 1984
Alexey Pajitnov inventa o Tetris no Elektronika 60
⟶ 1985
Versão de PC do Tetris é lançada e os direitos iniciais são concedidos para “Computador” e “Commodore 64”, da Elorg, empresa de Nikolai Belikov
⟶ 1987
Os direitos são concedidos para a Microsoft (Reino Unido), que erroneamente acredita que “o computador” significa todos os computadores. Tetris chega à Spectrum HoloByte (EUA) e à Atari Games (Tengen)
⟶ 1988
Henk Rogers conhece o Tetris e licencia os direitos de PC, console e arcade para o Japão, sem saber que são inválidos.
A Microsoft já os havia trocado para Atari
⟶ Dezembro de 1988
A Atari Games entra com uma ação de violação antitruste contra a Nintendo e expõe a fraude da Tengen em obter o código do jogo. Bullet-Proof Software lança Tetris (MSX) e Tetris (Famicom)
⟶ Fevereiro de 1989
Rogers viaja a Moscou para encontrar a origem dos direitos de propriedade intelectual do Tetris (Elorg) e garantir os direitos de portáteis
⟶ Segundo semestre de 1989
Cria-se um acordo para o Game Boy. A Nintendo vende mais de 35 milhões de unidades em todo o mundo e garante os direitos do jogo até 1985
Gameboy vendeu 35 milhões de unidades com Tetris (Arquivo Pessoal/Divulgação)
⟶ 1990
A Nintendo expressa interesse nos direitos de merchandising para o Tetris. Ameaçado de prisão, Pajitnov aceita
⟶ 1991
Pajitnov se muda para os EUA com ajuda de Rogers. É o fim da União Soviética
⟶ 1993
Com medo de perder a propriedade intelectual do jogo de volta à Elorg após o fim do contrato com a Nintendo, Pajitnov confia a Rogers o futuro do Tetris
⟶ 31 de dezembro de 1995
Todos os contratos do Tetris expiram e nasce a Tetris Company, cofundada por Pajitnov e Rogers. Os direitos retornam ao criador russo
⟶ 1996
Começa a padronização do Tetris, e Rogers cria o “Tetris Design Guideline”
Henk Rogers e Alexey Pajitnov: a dupla fundou a Tetris Company (Arquivo Pessoal/Divulgação)
⟶ 2005
Pajitnov e Rogers se tornam os “proprietários indiscutíveis da propriedade intelectual do Tetris”
⟶ 2024
A Tetris Company passa a ser liderada por Maya Rogers, filha de Henk
Na União Soviética, o sistema de propriedade intelectual foi moldado pela ideologia socialista: o Estado controlava as invenções. Após a Revolução de 1917, todas as patentes foram nacionalizadas e, em 1919, foi criado o “certificado de autor de invenção”, que reconhecia os inventores, mas não conferia direitos materiais, apenas o reconhecimento moral.
Com a Nova Política Econômica (NEP), em 1924, o sistema até foi ajustado para permitir que os inventores solicitassem patentes, mas tinha severas restrições, e o Estado continuava a ser o principal responsável pela aplicação das invenções. Durante a década de 1960, outros países socialistas modificaram ou abandonaram o sistema de certificados, mas a URSS manteve a prática.
Em 1984, o software e as criações intelectuais do Tetris eram considerados propriedade do Estado. Alexey Pajitnov, o criador do jogo, trabalhava para a Academia Russa das Ciências e, portanto, o jogo era um produto estatal.
Quando o jogo se tornou viral, ao final da década de 1980, para controlar a exportação e a comercialização do Tetris internacionalmente, foi criada a instituição estatal Elektronorgtechnica (Elorg), que tinha o monopólio sobre o comércio exterior de software e passou a negociar os direitos do jogo com empresas estrangeiras. Na prática, a Elorg representava o Estado soviético nas negociações e concedia licenças para diferentes plataformas e regiões.