James Heckman, Nobel de Economia: a inteligência determina só 4% do sucesso de uma pessoa / Flavio Santana/Biofoto
Flávia Furlan
Publicado em 5 de outubro de 2017 às 05h55.
Última atualização em 5 de outubro de 2017 às 05h56.
O economista James Heckman, professor emérito na Universidade de Chicago e ganhador do Nobel de Economia no ano 2000, costuma fazer uma pergunta intrigante para suas plateias: quanto do sucesso de uma pessoa é definido pelo quociente de inteligência, o famoso QI? A resposta costuma surpreender: segundo os estudos mais recentes, apenas 4%. Heckman refuta a ideia de que os filhos estão destinados a uma vida boa ou ruim conforme a inteligência que herdam dos pais. Para ele, o sucesso depende mais dos estímulos recebidos: uma boa alimentação, os cuidados com a saúde, o desenvolvimento de habilidades socioemocionais. “Existe um fator genético valioso na vida das pessoas, mas há um componente ambiental que precisa ser entendido”, disse o economista durante palestra no evento Os Desafios da Primeira Infância, promovido pelas revistas EXAME e VEJA, no dia 25 de setembro em São Paulo. E de que vale a ideia de que somos mais resultado do ambiente do que da genética? Segundo Heckman, se as crianças forem submetidas desde cedo a bons estímulos, elas poderão ter mais sucesso na vida adulta. É essa lógica que está orientando políticas públicas pelo mundo voltadas para a primeira infância — fase de zero a 6 anos —, em que o cérebro aprende mais rapidamente.
O Brasil está caminhando rumo às ideias de Heckman. São evidentes os desafios na primeira infância por aqui. O país tem 10,3 milhões de crianças com menos de 4 anos, sendo que 16% delas vivem em casa sem água potável, e 23%, sem coleta de esgoto. Três quartos das residências dessas crianças têm renda de até um salário mínimo per capita. Na faixa de zero a 3 anos, só um terço dos pequenos tem acesso à creche. E não há garantia de qualidade dessas unidades — um estudo da Fundação Carlos Chagas, do Ministério da Educação e do Banco Interamericano de Desenvolvimento deu nota 3,3 (de zero a 10) para a qualidade de 150 creches em Belém, Campo Grande, Florianópolis, Fortaleza, Rio de Janeiro e Teresina. Tudo isso prejudica a vida escolar. De acordo com a ONG Todos Pela Educação, apenas 44% das crianças estão capacitadas para a leitura no terceiro ano do ensino fundamental — em países como Estados Unidos e Austrália as crianças completam essa etapa do aprendizado um ano antes. “Não há educação infantil de qualidade no Brasil. Falta o desenvolvimento de habilidades e competências necessárias ao aprendizado”, diz Priscila Cruz, presidente da Todos Pela Educação.
Desde o início dos anos 2000, algumas políticas para a primeira infância têm surgido no país. É o caso do programa gaúcho Infância Melhor, iniciado em 2003 com visitas às casas das famílias para acompanhar as crianças. E do programa pernambucano Mãe Coruja, que desde 2007 tem centros para acompanhar as gestantes e os pequenos até 5 anos. Mas foi só em 2016 que o Brasil criou um marco legal para a primeira infância, um conjunto de recomendações para que todos os estados e municípios adotem políticas intersetoriais nesse tema. Em outubro do ano passado, o governo federal lançou um programa de abrangência nacional, chamado Criança Feliz. Com investimento inicial de 300 milhões de reais, prevê o treinamento de agentes que vão visitar as famílias e estimular as crianças, dando apoio aos pais em brincadeiras, leituras e no contato com os filhos. Em 600 municípios de 20 estados que aderiram ao programa, as visitas já estão acontecendo e, até dezembro, a previsão é alcançar 1 000 cidades.
DESIGUALDADE SOCIAL
O programa nacional tem sido uma aposta para a redução das desigualdades no país. Apesar de a fatia dos brasileiros que vive com menos de 2 dólares por dia, em relação à população total, ter caído quase 15 pontos nas últimas duas décadas, a desigualdade caiu apenas 7 pontos. Nesse período, o Brasil focou em programas como o Bolsa Família, que faz a transferência de renda para as pessoas mais pobres. “O Bolsa Família é um programa para as pessoas não caírem na miséria absoluta”, diz o ministro Osmar Terra, do Desenvolvimento Social e Agrário. “Mas, para reduzir a desigualdade, é preciso algo que ajude as crianças a se preparar para a vida escolar, ter um emprego melhor e uma renda maior.”
Estudos internacionais mostram quanto as crianças de famílias com menor renda estão em desvantagem. Para ter uma ideia, elas ouvem, por hora, uma quantidade de palavras um terço menor, em média, e, aos 3 anos, seu vocabulário representa apenas 45% daquele das crianças de famílias de alta renda. Um estudo da Nova Zelândia, publicado no fim do ano passado, mostrou que, dentro de determinado grupo, os 20% de adultos que tiveram uma infância difícil — com maus-tratos e limitações econômicas — foram responsáveis por 57% das internações noturnas nos hospitais, 66% dos pedidos de benefícios sociais e 81% das condenações criminais. “Uma boa atuação na primeira infância traz benefícios para o resto da vida”, diz o médico José Luiz Egydio Setúbal, presidente da Fundação José Luiz Egydio Setúbal e dono do Hospital Infantil Sabará, de São Paulo. “Por isso, o investimento nessa fase talvez seja o melhor que se possa fazer em uma sociedade.”
Há esforços no Brasil para atender melhor as crianças. No Acre, um programa iniciado em junho de 2016 reuniu governo estadual, gestores municipais e organizações sociais. Ele prepara os agentes de saúde para, durante as visitas às famílias para tratar doenças, incentivar os pais a brincar com os filhos e a fazer leituras. Cada uma das 10 500 famílias inscritas no projeto receberá 80 visitas em três anos — um quarto delas já foi feito. “Após o fim do programa, o conhecimento fica com os agentes, e as ações continuam, independentemente de nossa presença ou investimento”, diz Gabriella Bighetti, diretora da United Way, ONG americana que financia o projeto.
Um grande desafio nesse tema é integrar as áreas envolvidas. Na cidade de São Paulo, há dois meses, as secretarias de Educação, Saúde e Assistência Social começaram a trabalhar juntas para formar uma só política da primeira infância. A ideia é montar um cadastro único com todas as informações das crianças vulneráveis e criar um orçamento conjunto para as políticas no setor. “Cerca de 40% do orçamento de 1,2 bilhão de reais da assistência social do município está voltado para a primeira infância”, diz Filipe Sabará, secretário de Assistência e Desenvolvimento Social da cidade. “O ideal é que a primeira infância tenha 80% no futuro.”
As empresas também entraram em cena. A ideia, no caso, é permitir mais convivência dos funcionários com seus filhos nos primeiros anos de vida. Na lista dos benefícios concedidos estão a extensão da licença-paternidade de cinco para 20 dias, salas de amamentação, custeio de creches e horários mais flexíveis de trabalho. “São ações que não custam muito dinheiro, mas que fazem diferença para a empresa e a sociedade”, diz Julio Gay-Ger, presidente da farmacêutica Eli Lilly. Mas há uma percepção de que as ações precisam romper os muros das empresas, com o setor privado ajudando gestores públicos na implementação e na mensuração das políticas voltadas para a primeira infância. “Não podemos deixar só nas mãos do governo, temos de nos tornar investidores sociais”, diz Gustavo Schmidt, presidente da fabricante de bens de consumo Kimberly-Clark.
O modelo de visitas às residências das famílias — assim como o do programa Criança Feliz — tem sido apontado como vantajoso porque permite o contato com os pequenos que não vão às creches e possibilita a superação de desafios culturais. Como exemplo: uma pesquisa com 990 famílias, de todas as faixas de renda, realizada em julho do ano passado pela empresa de pesquisas Ibope, a pedido da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, mostrou que apenas 10% dos pais acreditam que conversar com as crianças está entre os itens mais importantes para o desenvolvimento dos filhos. “As famílias brasileiras conhecem pouco sobre a primeira infância”, diz Eduardo Queiroz, presidente da fundação Maria Cecília Souto Vidigal. “Os programas sociais não são para dizer como criar os filhos, mas para incentivar os pais a brincar, a ler e a formar um vínculo com eles.”
Os resultados das políticas para os primeiros anos de vida aparecem no curto prazo. Na capital Boa Vista, em Roraima, o programa Família que Acolhe tem centros para o recebimento de mães e crianças, e começará neste ano as visitações frequentes à casa de todas as famílias com crianças pequenas. Por lá, o projeto permitiu, em quatro anos, aumento de 46% no atendimento pré-natal, de 33% na vacinação infantil, e redução de 13% na mortalidade infantil. “Os indicadores mostram melhorias, mas vai levar tempo para vermos os resultados completos nos cidadãos”, diz Teresa Surita, prefeita de Boa Vista. Exemplo: um estudo com base na experiência da Jamaica durante 20 anos mostrou que as crianças que tiveram estímulos se tornaram adultos com ganhos em média 25% superiores aos sem estímulos.
As marcas ficam por gerações. Nos Estados Unidos, um programa no estado de Michigan, que promoveu visitação às famílias na década de 60 e manteve um centro de cuidados para estimular o desenvolvimento de 123 crianças, trouxe retorno anual de até 10% do valor investido, considerando quanto essas pessoas pagaram a mais de impostos por ter renda maior ou a economia que geraram por usar menos serviços sociais. E mais: os benefícios foram transmitidos à geração seguinte, com os filhos das pessoas acompanhadas pela pesquisa completando mais anos de estudos e tendo menos problemas de saúde e com a Justiça. “Defendo a ideia de pré-distribuição de renda, oferecendo habilidades às crianças, o que vai produzir oportunidades melhores por gerações”, diz Heckman. No Brasil, se tudo andar bem, até que enfim começamos a encomendar um futuro melhor.