Revista Exame

Fim dos cookies: como as empresas estão se preparando para uma nova era da publicidade digital

O Google vai mudar a forma como os anúncios online chegam ao consumidor, com forte impacto no mercado publicitário e a necessidade de novas soluções por parte das empresas

Juliana Cury, VP de marketing da Zamp, franqueada do Burger King: preparação nos últimos anos (Ricardo Cardoso/Divulgação)

Juliana Cury, VP de marketing da Zamp, franqueada do Burger King: preparação nos últimos anos (Ricardo Cardoso/Divulgação)

Juliana Pio
Juliana Pio

Editora-assistente de Marketing e Projetos Especiais

Publicado em 23 de fevereiro de 2024 às 06h00.

Última atualização em 25 de fevereiro de 2024 às 21h43.

Se você começou esta leitura por causa do famoso biscoito com gotas de chocolate, não se engane. Os cookies mencionados nesta reportagem, embora não tão saborosos quanto os da culinária, são também bastante populares, só que na internet. Sabe quando você pesquisa um sapato e depois vê anúncios de pares e mais pares de calçados em todo site que navega? Esses são os cookies dos quais estamos falando, responsáveis por esse tipo de publicidade digital. Os mesmos que estão previstos para serem desativados pelo Google no navegador Chrome até dezembro de 2024, após vários adiamentos.

O chamado fim dos cookies de terceiros já foi anunciado anteriormente por concorrentes do gigante de tecnologia, como Firefox, da Mozilla, e Safari, da Apple. Mas tudo leva a crer que o impacto agora será maior. O Chrome é disparado o navegador mais usado no mundo, tanto no celular quanto no desktop, com 75% de participação no mercado no Brasil, segundo a StatCounter, plataforma de análise de tráfego na internet.

À primeira vista, pode parecer que estamos falando apenas de pop-ups inconvenientes que surgem ao abrir uma nova página, mas os cookies vão além disso. Presentes na internet desde os anos 1990, os tais biscoitos são pequenos arquivos de dados que ficam armazenados no navegador quando uma pessoa visita um site, a exemplo de idioma e localização.

As informações guardadas são utilizadas para otimizar e personalizar a experiência online, por exemplo quando um site preenche automaticamente seu login e sua senha. Mas também para veicular anúncios segmentados e mais relevantes, com base no comportamento de navegação e interesses dos usuários, caso do sapato mencionado no início deste texto.

Um cookie pode ser primário ou de terceiros. Os primários são captados pelo próprio site visitado pelo usuário. Já os de terceiros são rastreados por um serviço que opera em várias plataformas e cruza essas informações, o que expõe a privacidade das pessoas.

A política de segurança iniciada pelo Google em janeiro tem como objetivo desativar justamente os cookies de terceiros. A mudança ocorre devido às exigências e leis de privacidade que se iniciaram em 2018 com o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR), na Europa, seguida da Lei de Privacidade do Consumidor da Califórnia (CCPA), nos Estados Unidos, e mais recentemente da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), no Brasil. 

“O primeiro impacto se reflete em anúncios menos personalizados, porque as empresas não vão ter mais tantas informações disponíveis dos usuários para trabalhar como antes, a exemplo de histórico e interesse de navegação. Considerando a agenda do Google, há pouquíssimo tempo para o mercado se mobilizar”, avalia Fernanda Nones, DPO da RD Station, que atua com soluções de tecnologia para marketing digital.

Empresas de todos os portes e segmentos têm investido em novas abordagens para alcançar seu público-alvo com eficiência. Estimativas mostram que essa movimentação poderá gerar quebra de até 60% na eficiência das campanhas digitais e um prejuízo de até 70% na receita dos publishers, caso não haja uma readequação de agências e anunciantes na estratégia de mídia.

Um levantamento do IAB Brasil com a ­Nielsen feito com profissionais de publicidade digital mostra que 97% das companhias no Brasil esperam ser afetadas pelo fim dos cookies, o que evidencia a necessidade de adaptação para esse mercado, que movimentou 16,4 bilhões de reais no país somente no primeiro semestre de 2023.

Os melhores dados são os nossos

Especialistas avaliam que, apesar dos desafios, o fim dos cookies de terceiros pode levar a uma nova era do marketing digital, mais seguro e fortalecido, especialmente para as empresas dispostas a construir relacionamentos autênticos e mutuamente benéficos com os seus clientes.

“Há uma demanda maior por mensuração e otimização de resultados. Mas falta ainda maturidade por parte das empresas para lidar com ferramentas e indicadores relevantes ao negócio”, destaca Amanda Gasperini, diretora de data ­insights e growth da Gauge, empresa do Grupo Stefanini.

Empresas têm buscado estratégias que envolvam a captação de informações primárias, derivadas de interações diretas nas próprias plataformas da marca, quando, por exemplo, o consumidor se cadastra para adquirir um produto, faz download de um infográfico ou se torna membro de um clube para receber descontos.

Além de construir relacionamentos, as marcas podem ver como as informações foram coletadas e compreender sua finalidade para criar campanhas mais direcionadas e bem-sucedidas. É o que tem feito o Burger King, por meio do Clube BK, programa de fidelidade lançado em 2021 que já alcançou 15 milhões de usuários. Hoje, mais de 50% das transações da rede de fast-food acontecem no ambiente digital.

“Trata-se de uma poderosa ferramenta que ajuda a direcionar a estratégia comercial e de marketing”, diz Juliana Cury, vice-presidente de marketing e vendas da Zamp, franqueada do Burger King e Popeyes no Brasil. “Nos preparamos ao longo dos anos, captando e estruturando dados dos nossos clientes, que nos permitem direcionar as mensagens e ser mais eficientes.”

A executiva acredita que empresas que carecem de canal direto de contato com os consumidores, mesmo as de grande porte, serão fortemente impactadas com a iniciativa do Google. Um estudo realizado em 2023 pelo Google em parceria com a Ipsos, empresa de pesquisa de mercado, revela que quase metade dos entrevistados trocariam a sua marca favorita pela segunda opção se esta oferecesse uma experiência de privacidade melhor.

“Isso tem levado ao surgimento de novas tecnologias que preservam a privacidade dos usuários, permitindo ao mesmo tempo segmentação e personalização. Já existem ferramentas mais seguras do que os cookies de terceiros, que estão sendo criadas por empresas de mídia e tecnologia para executar publicidade e mar­keting”, destaca Leonardo Naressi, professor do IAB Brasil e Co-CEO da DP6.

O especialista cita como exemplo as chamadas PETs (privacy enhancing technologies ou tecnologias de aprimoramento de privacidade), como a DCR (data clean room), um formato de compartilhamento de dados entre empresas em um espaço seguro e que respeita as leis de proteção de dados.

Fernanda Nones, DPO (encarregada dos dados) da RD Station: preocupação com prazo (RD Station/Divulgação)

Criatividade, inteligência e análise de dados

A transição para um mundo sem cookies acelera ainda mais a necessidade de um mar­­keting digital que equilibre criatividade, inteligência e análise fina de dados, o que leva ao desenvolvimento de plataformas próprias, essenciais para interações autênticas e coleta de informações alinhadas à LGPD.

“Essa é uma forma de captar insights diretamente de seus públicos. O desenvolvimento de soluções criativas e relevantes combinadas com data lakes [repositório de dados], a aceleração do cloud computing [computação em nuvem] e todo o ecossistema de martech é fundamental”, diz Gustavo Aguiar, diretor de marketing integrado da Nestlé Brasil.

A indústria de alimentos tem trabalhado desde 2018 na coleta de dados e em CRM (sigla em inglês para gestão de relacionamento com o cliente). “Utilizamos uma das principais CDPs [plataformas de dados do cliente] do mercado. Esse ecossistema de ativação digital é construído em sinergia com a jornada do consumidor”, conta Aguiar.  É o caso da plataforma Eu Quero Nestlé, por meio da qual as pessoas recebem em casa amostras grátis de produtos. Em troca, fornecem feedback direto e permitem acessar informações diversas, como sociodemográficas.

Da mesma forma, a BRF, dona das marcas Sadia e Perdigão, tem apostado em novas tecnologias, como a inteligência artificial (IA), para atrair e construir o primeiro atendimento ao cliente. A plataforma Sadi.a, que utiliza recursos de IA para oferecer receitas personalizadas aos consumidores por meio do WhatsApp, foi lançada em novembro do ano passado e já gerou mais de 230.000 usuá­rios únicos, 52.000 receitas e 4.000 compras de produtos através do robô.

A IA ajuda na organização de informações, criação de perfis, identificação de padrões e personalização de experiências, tornando as campanhas mais assertivas. “O investimento em CRM e a colaboração entre equipes de tecnologia, governança e marketing serão cruciais para implementar soluções em grande escala, por meio de segmentações customizadas”, diz Marcel Sacco, vice-presidente de marketing e novos negócios da BRF.

Na busca por soluções mais criativas, o Grupo Carrefour tem destacado o conteúdo de marca nas estratégias e construído presença relevante nas redes sociais, além de contar com uma estrutura própria de retail media (anúncios em espaços varejistas), a Unlimitail, joint venture global com a agência multinacional francesa Publicis.

“As ferramentas de retail media nos ajudam a identificar comportamentos de compra qualificados e auxiliam nossos parceiros da indústria que não têm esse contato direto com o cliente”, destaca Daniel Milagres, diretor de marketing do Grupo Carrefour Brasil. “Além disso, na nossa marca Sam’s Club, clube de compras do grupo, conseguimos aumentar o número de novos sócios ao apresentar os diferenciais do formato por meio de influenciadores que se conectam com a linguagem de públicos específicos.”


Em fogo lento

A eliminação dos cookies vem sendo discutida há quatro anos. Inicialmente, o bloqueio vai atingir 1% dos usuários

O fim dos cookies de terceiros, importante pilar da publicidade digital, foi abordado inicialmente pelo Google em 2020. Mas somente em janeirode 2024 o Chrome avançou nos planos de bloqueio e limitação de outras formas de rastreamento, reduzindo a quantidade de informações que sites e aplicativos podem acessar. A iniciativa faz parte do projeto Privacy Sandbox, que tem como missão criar tecnologias voltadas para a privacidade que visa atender a demanda dos usuários e também dos órgãos reguladores, assim como fornecer as ferramentas necessárias para empresas e desenvolvedores manterem seus negócios digitais de forma saudável.

A forma como o Google veicula publicidade nas plataformas de compra de mídia hoje ainda depende muito da segmentação a partir de cookies de terceiros. Por isso, o recurso de bloqueio, num primeiro momento, atingirá somente 1% dos usuários do navegador em todo o mundo e será implantado gradualmente no segundo semestre deste ano.

“A ideia é iniciar o projeto com um percentual menor para avaliar os impactos aos anunciantes”, diz Carolina Medina, head de privacidade e parcerias do Chrome, que não informa o faturamento da companhia com publicidade via cookies de terceiros. “Estamos fazendo testes integrados para entender se conseguimos utilizar tecnologias de preservação de privacidade em conjunto com monetização e publicidade e os resultados premilinares indicam que não há impactos nos anúncios.”

A tecnologia foi criada em 1994 por um engenheiro da empresa Netscape para resolver o problema de péssima memória dos sites, que tratavam os usuários como estranhos. “Com o passar do tempo o recurso passou a ser utilizado de forma mais ampla, e hoje a indústria não o reconhece como ideal sob a perspectiva de privacidade. Embora forneça personalização, também permite identificar uma pessoa por meio da combinação dos dados de navegação.”

Quase metade das empresas no mercado ainda não se sente preparada para o fim dos cookies, conforme mostra pesquisa do IAB Brasil com a Nielsen. “As pessoas ainda não enxergam o todo”, diz Medina. “Os cookies de terceiros são utilizados até em golpes. E os impactos vão depender da forma como cada companhia vem se preparando.”

Acompanhe tudo sobre:marketing-digitalPublicidadeMarcasLGPD – Lei Geral de Proteção de Dados

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda