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Ivan Padilla
Publicado em 23 de abril de 2020 às 05h30.
Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 13h15.
“A beleza é o seu dever.” Esse foi o slogan propagado pelo governo britânico à população de mulheres na Segunda Guerra Mundial. Mesmo com a indústria voltada para a produção de equipamentos bélicos e gêneros de primeira necessidade, o batom continuou sendo fabricado. Para o ministro Winston Churchill, o ato de se maquiar tinha um significado patriótico. “Churchill entendeu que usar batom fazia com que as mulheres se sentissem mais fortes e seguras, sentimentos especialmente apreciados em tempos de crise”, conta Rachel Felder, jornalista da The New Yorker, no livro Red Lipstick: an Ode to a Beauty Icon (“Batom vermelho: uma ode a um ícone de beleza”, numa tradução livre).
De acordo com Felder, a maquiagem envia uma mensagem de autoridade e convicção. “Era tida como uma espada ou um escudo, que demonstra força e esconde insegurança”, diz. Na Segunda Guerra Mundial, o Ministério do Abastecimento do Reino Unido publicou um memorando em que afirmava que, durante o período do conflito, o cosmético era tão importante para a mulher quanto o tabaco para o homem. Ao mesmo tempo que valorizava a autoestima feminina, esse era um sinal do caráter sexista de então.
Na indústria da beleza, o chamado lipstick index virou um indexador informal da economia, usado para identificar comportamentos do consumidor, semelhante ao índice Big Mac, criado pela revista The Economist para mostrar os efeitos cambiais de um produto. O índice batom foi cunhado em 2001 por Leonard Lauder, então presidente emérito e herdeiro da empresa de cosméticos Estée Lauder. A teoria diz que, nas crises econômicas, a venda de cosméticos em geral cresce, principalmente a de itens de entrada. No lugar de uma bolsa ou um vestido de grife, compra-se um frasco de perfume ou um batom. Essa seria uma forma de compensar períodos de restrições sem deixar de consumir.
Quando Lauder cunhou a expressão, o mundo sofria os efeitos da bolha da internet e os abalos dos atentados de 11 de setembro. Na ocasião, a empresa afirmou ter dobrado as vendas de batons. O fenômeno, então se observou, ocorria depois de cada crise. Entre 1929 e 1933, após a Grande Depressão, a produção industrial americana diminuiu pela metade, mas o consumo de produtos de beleza cresceu. Na crise asiática de 1997, enquanto a economia japonesa estagnava, os gastos com itens de entrada de beleza cresceram 10%. E no primeiro semestre de 2008 as vendas da L’Oreal, maior empresa de beleza do mundo, aumentaram 5,3%.
Como o mercado reagirá à pandemia do coronavírus? Ainda é cedo para avaliar o efeito completo nos principais mercados consumidores, mas alguns sinais já podem ser observados. Primeiro, é preciso ressaltar que, até o fim de 2019, o segmento nunca esteve tão aquecido. A indústria da beleza era estimada em 532 bilhões de dólares, segundo a consultoria de consumo Edited. Para a consultoria de inteligência de mercado Kline, porém, o segmento deve ter neste ano uma retração de 2,5%. A própria L’Oréal já sentiu diferença. No balanço do primeiro trimestre, as vendas ficaram em 7,2 bilhões de euros — queda de 4,8% em relação ao mesmo período do ano passado.
Um ponto do relatório da L’Oréal, no entanto, chama a atenção: o segmento de produtos para a pele aumentou 13%, para 840 milhões de euros. O resultado parcial vai ao encontro de um estudo realizado pelo aplicativo Poshly, que aponta que as compradoras estão estocando itens como loção para o corpo, produtos para cuidados com a pele do rosto e para o cabelo. Dois terços das entrevistadas disseram estar usando menos maquiagem no rosto e nos olhos. Os dados podem ser resultado da diferença da atual crise em relação às demais: as pessoas estão mais em casa, com pouca interação social — a não ser por plataformas de videoconferência, como o Zoom, em que se destacam mais os olhos e a parte superior do rosto e menos os lábios. Nas idas à rua, quando necessário, a parte de baixo da face está escondida por máscara. Além disso, há um questionamento dos padrões de beleza, debate anterior à atual pandemia.
O Brasil segue a tendência. Um relatório do provedor de pesquisa de mercado Euromonitor International espera uma queda expressiva na venda de fragrâncias e dos chamados colour cosmetics, produtos de maquiagem e esmalte, e associados à vida social. Como essas duas categorias representam um terço do mercado brasileiro de beleza, um resultado negativo geral parece inevitável. A tendência de queda acompanha a crise no país. De 2014 a 2019, a categoria de maquiagem saltou de um tamanho de mercado de 11,7 bilhões para 10 bilhões de reais, uma redução de 14,2%.
“As vendas de maquiagem, em termos deflacionados, vêm apresentando performance negativa desde 2015, o que representa uma racionalidade do consumidor em categorias ditas mais supérfluas”, afirma Elton Morimitsu, consultor de pesquisa da indústria de beauty and personal care da Euromonitor International. “O surgimento de marcas mais baratas nessa categoria provou que o consumidor tem feito escolhas mais conscientes. O atual cenário deve reforçar ainda mais esse comportamento, o que deve, de fato, comprovar o fim do efeito batom no mercado brasileiro.”
Eficácia simbólica
Para a consultora de mercado e antropóloga do consumo Hilaine Yaccoub, que já fez trabalhos na área para empresas como Avon, Natura e Unilever, o ato de se maquiar em tempos de quarentena serve para ajudar a criar uma rotina e também como uma ferramenta de autoconhecimento neste momento em que estamos rediscutindo valores e prioridades. Para ela, o batom, especificamente, teria a chamada eficácia simbólica, uma definição criada pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss para explicar de que forma os rituais nos ajudam a enfrentar desafios — no caso, ele estudou como índios nativos do Panamá acreditavam que o canto xamânico ajudava na hora do parto.
“Quando a mulher pinta os lábios, quer enviar uma mensagem”, afirma Yaccoub. “As cores têm simbologias diferentes. Para usar um batom vermelho-vivo, a mulher precisa estar emocionalmente forte, ter uma elevada autoconfiança. Essa é a cor dos cardeais, da nobreza, um símbolo de poder.” Nas pesquisas de campo para marcas, ela costuma pedir às entrevistadas imagens de referências de quando elas se sentiram mais bonitas, mais realizadas, mais poderosas. “Não importam classe social, cidade, estado, as entrevistadas sempre mandam fotos de casamentos, batizados, festas, momentos em que estão maquiadas.”
No começo de abril, no discurso em que pediu à população britânica que resistisse à dor e às enormes mudanças causadas pela pandemia do coronavírus, a rainha Elizabeth II estava com os lábios devidamente pintados. Foi apenas a quinta vez que ela fez um pronunciamento público em tempos de crise desde a Guerra do Golfo, em 1991. O momento agora, mais uma vez, pedia demonstração de força. A rainha é uma notória apreciadora de batons, com uma suposta preferência pela Clarins. Para sua coroação em 1952, ela teria encomendado à marca a confecção de um tom especial. A Segunda Guerra Mundial já havia terminado, a um custo altíssimo para os ingleses, mas com um princípio de liberdade de costumes entre os vitoriosos.