(Phil Leo/Michael Denora/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 16 de setembro de 2021 às 05h07.
Última atualização em 20 de setembro de 2021 às 14h27.
“As notícias sobre minha morte foram manifestamente exageradas.” A frase, atribuída a Mark Twain, poderia muito bem ter sido proferida pela nossa renda fixa. Com histórico de inflação e complacência fiscal, o Brasil sempre foi o paraíso do CDI. Sob juros na casa dos dois dígitos, podendo apurar alto rendimento, sem risco e com liquidez diária, o investidor não encontrava motivos para diversificar sua carteira para fora da renda fixa convencional. O rentismo clássico decorava o jaboticabal.
Nos anos recentes, a combinação de avanços fiscais, com destaque à reforma da Previdência e ao teto de gastos, controle da inflação e juros zerados no exterior mudou o quadro. A taxa Selic despencou, nos levando a juros reais negativos — algo antes impensável. Até parecíamos civilizados. Ouvia-se: “A renda fixa morreu”. Fora da reserva de emergência, não havia razões para se expor ao CDI.
Talvez o olhar mais treinado pudesse argumentar se tratar, na verdade, do nascimento de um mercado mais amplo de renda fixa, com aumento dos durations, sofisticação em papéis privados e florescimento do mercado secundário com mais liquidez e transparência. Mas essa é outra discussão.
O paraíso do CDI havia se transformado. Investidores abandonavam as cadernetas de poupança, os pós-fixados e seus gerentes de bancos. Finalmente, havia chegado a hora das ações, da internacionalização das carteiras e, certo ou errado, das criptomoedas. Um fenômeno totalmente novo começava no Brasil: o financial deepening, a penetração das finanças no cotidiano das pessoas, de carteiras permeadas por ativos de risco, diversificadas, que se tornaram assunto de mesa de bar. Viramos o país do futebol, do Carnaval, da influenciadora acertadora no Day Trade, das Varas, Congas e afins.
Apesar de excessos pontuais, era uma dinâmica muito positiva. Como no mito da caverna de Platão, os investidores viam a luz fora da sombria poupança. Juros baixos, ajuda da tecnologia e informação disponível pavimentavam a via para a sofisticação dos investimentos. À sua maneira atrasada e errática, o Brasil encontrava sua revolução financeira.
Mas o modernismo sempre encontra pedras no meio do caminho. Superado o mais grave da pandemia, a inflação voltou com tudo, em parte como reflexo global e em parte por causa de nossas próprias mazelas. O resultado foi a subida da Selic. Em termos práticos, pesquisas junto com investidores, dados da B3 e a captação das plataformas mostram maior interesse na renda fixa, em detrimento da variável. Teria o renascimento da renda fixa matado o financial deepening? Seria a morte do incipiente processo?
Entendo que não. Talvez tenha havido alguma ilusão com o desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro, como se ele viesse de maneira monotônica, linear, gradual e bem-comportada. “A razão é uma grande emoção, é o desejo de controle.” Processos de crescimento muito bem controlados são uma invenção da nossa mente. A realidade é sempre mais voraz, imprevisível. Continuaremos caminhando, mas não sem acidentes no meio do caminho. Voltando ao mito da caverna, uma vez que a luz é percebida, não há como apagar as memórias visuais.
Tendo o investidor se educado, penetrado o ambiente da diversificação e da sofisticação, não é provável o retorno integral às trevas da poupança e suas variantes similares. É um processo inexorável de transformação, ajudado, sim, pela queda conjuntural da taxa de juro, mas também por outros elementos estruturais, como a tecnologia, o maior acesso à informação e à disseminação da (ainda incipiente) educação financeira.
Cumpre também dizer que, contida a inflação, que em grande medida tem características transitórias, a tendência é de retomada de níveis mais baixos da Selic. Não há razão para vermos juros de mercado indefinidamente acima de 10%. A não ser que incorramos em ruptura institucional.
Talvez aqui resida um problema lógico. Como ninguém vê a saída para a crise atual, todos concluem que não há saída. É uma falácia. O problema clássico da indução de David Hume. Ausência de evidência não é evidência de ausência. Não é porque não enxergamos a saída que ela não existe. Vivemos o que Daniel Kahneman chama de WYSIATI (what you see is all that is). Identificamos apenas uma porção da realidade, sem acesso a toda informação disponível. É nesses períodos de desalento e convicção de que não há solução, quando todos acham que a única saída é o Aeroporto de Guarulhos ou que não há mais luz no fim do túnel, porque a crise hídrica fez questão de apagá-la, que os ativos ficam mais baratos. E é também da completa falta de esperança que emerge uma solução inesperada.
O Brasil tem o péssimo hábito de flertar com o abismo, mas a boa prática de não se jogar. Diferentemente de alguns vizinhos, não temos vocação para acidentes, terremotos, explosões ou destruições. Nossa natureza é macunaímica, complacente, de retorno à média. A corda estica, mas não arrebenta.
O valuation da bolsa sugere níveis bastante baratos, com indicadores de atratividade semelhantes às crises de 2008 e de 2015. O prêmio de risco de mercado (excesso de retorno diante da renda fixa) beira 4% ao ano, mostrando quanto as ações estão convidativas. Ouço ecos de 2015, quando ninguém via saída da crise e todos só queriam saber do dólar e do CDI. Foi quando compramos bolsa a 40.000 pontos. Deu no que deu.