Revista Exame

O Facebook ficou influente demais?

O uso indevido de dados de 50 milhões de usuários é um sinal de que as redes estão perdendo o controle sobre o uso político das plataformas

Mark Zuckerberg, fundador do Facebook (ao centro): a rede social tem um papel político cada vez mais extenso  (Jeff Roberson/AP)

Mark Zuckerberg, fundador do Facebook (ao centro): a rede social tem um papel político cada vez mais extenso (Jeff Roberson/AP)

FS

Filipe Serrano

Publicado em 29 de março de 2018 às 05h00.

Última atualização em 1 de agosto de 2018 às 15h25.

O Facebook não está vivendo os seus melhores dias. Desde a eleição de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos no fim de 2016, a rede social criada por Mark Zuckerberg vinha sendo criticada por ter fechado os olhos para a disseminação de fake news (notícias falsas) na plataforma e por ter permitido a veiculação de anúncios obscuros, ligados à Rússia, com o objetivo de influenciar o resultado eleitoral. Se esses acontecimentos já haviam deixado claro como as redes sociais podem ser usadas para distorcer o debate político no mundo, o Facebook se vê diante de um escândalo ainda mais profundo. A revelação de que a consultoria britânica Cambridge Analytica usou, sem autorização, os dados pessoais de 50 milhões de perfis do Facebook na campanha presidencial de Donald Trump abriu espaço para uma discussão sobre o uso de dados pessoais nas campanhas eleitorais e as consequências das ferramentas digitais para a democracia.

Desde que o ex-presidente americano Barack Obama ficou famoso por usar o Twitter em sua primeira campanha presidencial, em 2008, o papel da internet nas eleições cresceu de forma exponencial nos Estados Unidos e no mundo. Num primeiro momento, os candidatos e os partidos perceberam que poderiam usar as plataformas para se comunicar diretamente com seus eleitores, publicando textos, imagens e vídeos — conteúdo que, depois, é replicado para as demais pessoas na rede. Em seguida, viram que as redes sociais servem também de termômetro para medir o que as pessoas pensam ou sentem sobre determinado tema, como segurança pública ou imigração. O passo seguinte foi cruzar as informações das redes sociais com outras grandes bases de dados — registros eleitorais e pesquisas de opinião, por exemplo — para descobrir como as pessoas costumam votar e o que as leva a apoiar um candidato ou outro. “O poder de computação aumentou muito. Hoje, é muito mais fácil e rápido fazer uma análise usando grandes quantidades de dados dos eleitores”, diz Stefano Iacus, professor na Universidade de Milão e autor do livro Politics and Big Data (“A política e o big data”, numa tradução livre), no qual ele mostra como as publicações nas redes sociais podem prever o resultado das urnas. Na prática, o que se vê é que a eleição virou, mais do que nunca, uma ciência de dados.

O caso da Cambrigde Analytica e do Facebook é o exemplo mais claro dessa tendência. Com um aplicativo que dizia ser parte de uma pesquisa acadêmica, o russo-americano Aleksandr Kogan, professor de psicologia na Universidade de Cambridge, teve acesso a 270 000 usuários da rede social. Por meio de um teste de personalidade enviado a esse universo, ele também obteve as informações dos amigos desses seguidores, formando um banco de dados com 50 milhões de perfis. O pacote foi, então, passado para a Cambridge Analytica. Embora tenha detectado o vazamento desses perfis em 2016 e proibido o uso de suas informações, o Facebook pouco fez para evitar a utilização dos dados coletados pela Cambridge Analytica na eleição americana. Na televisão, Zuckerberg veio a público se desculpar e anunciar mudanças no Facebook para proteger os dados dos usuários. É uma tentativa de manter a influência que a rede social ganhou nos últimos anos.

Quando Obama foi eleito pela primeira vez, em 2008, o Facebook era uma rede de 100 milhões de pessoas e faturava 200 milhões de dólares. Atualmente, a plataforma tem mais de 2,1 bilhões de usuários,  e as receitas da empresa somaram mais de 40 bilhões de dólares no ano passado. Ao mesmo tempo que crescia, o Facebook e as demais redes sociais passavam a ocupar um papel central no debate público na maior parte do mundo, tornando-se um espaço de livre expressão sobre os mais variados temas — da venda de armas nos Estados Unidos à desigualdade entre homens e mulheres.

Levantamentos realizados durante a última campanha presidencial dos Estados Unidos indicam que 62% dos adultos americanos se informaram sobre a disputa pelas redes sociais. Não é à toa que uma parcela cada vez maior dos gastos em campanhas eleitorais é destinada à propaganda na internet. Durante as eleições de 2016 nos Estados Unidos, o investimento em meios digitais somou aproximadamente 1 bilhão de dólares, um recorde. O caso do presidente Donald Trump é especial. Ele foi o primeiro candidato à Presidência dos Estados Unidos a destinar mais de 50% da verba da campanha aos meios digitais. Somente a Cambridge Analytica recebeu 15 milhões de dólares, dinheiro que veio do empresário americano Robert Mercer, conhecido por financiar republicanos. Os recursos ajudaram a campanha de Trump a fazer propaganda segmentada a um público-alvo muito específico.   

BIG DATA ELEITORAL

Nem tudo o que os usuários publicam no Facebook é útil para as campanhas eleitorais. Muito do que as pessoas escrevem em seus perfis ou nos perfis de amigos é apenas o que os especialistas chamam de “ruído” — dados dispensáveis e sem utilidade (basta pensar nas inúmeras mensagens de aniversário que cada um recebe). No entanto, uma análise mais cuidadosa é capaz de revelar preferências pessoais e traços de personalidade. Usando apenas as informações sobre os likes (“curtidas”) de 58 000 usuários do Facebook, pesquisadores do Reino Unido e dos Estados Unidos conseguiram criar um modelo computacional que identifica com até 95% de precisão uma série de características pessoais — desde atributos mais simples, como sexo e idade, até dados mais sensíveis, como orientação sexual, religião, visão política, uso de drogas, nível de felicidade e inteligência de cada pessoa. Esse mesmo modelo foi usado como base pela Cambridge Analytica para traçar perfis psicológicos dos eleitores americanos. Durante a campanha de Trump, por exemplo, a consultoria cruzou as informações dos perfis com o banco de dados de eleitores do Partido Republicano e concluiu que os usuários da rede social que haviam demonstrado preferência por carros fabricados nos Estados Unidos tinham boa chance de votar no candidato republicano. Em seguida, bombardeou esse grupo de usuários com mensagens pró-Trump defendendo a indústria nacional.

AGÊNCIA DE DADOS

O escândalo evidenciou que faz tempo que o Facebook deixou de ser uma rede de relacionamentos para postar fotos, emitir uma opinião pessoal, compartilhar notícias e fazer amigos. Na prática, a plataforma atua como uma agência que capta, de graça, os dados pessoais das pessoas e utiliza as informações para fazer anúncios personalizados. É preciso ressaltar que não há nada de ilegal nisso, uma vez que os usuários concordam com as condições de uso do Facebook quando se registram na rede. E, enquanto a ferramenta é usada para oferecer passagens de avião ou eletroeletrônicos, não é um problema fazer uma segmentação da audiência. A questão é quando os dados pessoais são usados indevidamente para influenciar os eleitores numa campanha política, num processo que é pouco claro. “Antes de qualquer regulação, é preciso ter mais transparência sobre como as pessoas estão sendo segmentadas. O que leva um anúncio a ser exibido para uma pessoa e não para outra”, diz Shannon MacGregor, professora na Universidade de Utah, nos Estados Unidos, especializada no estudo sobre o uso de redes sociais na política.

Na prática, ao transformar o eleitor em mero consumidor, os algoritmos das redes sociais inverteram a lógica da democracia — baseada no debate de ideias antagônicas — e facilitaram o trabalho dos marqueteiros, cujo objetivo maior é atrair apoio a  determinado partido ou candidato. Com as ferramentas digitais de hoje, basta moldar as mensagens certas, no momento certo, para o público certo e os meios certos, direcionando-as a um usuário suscetível à mensagem política desejada.

Alexander Nix, da Cambridge Analytica: coleta e uso de dados indevidos na eleição | Pedro Nunes/Reuters

A influência crescente das redes sociais no cenário político reforça a urgência em discutir saídas para preservar o debate democrático, mesmo porque o desenvolvimento tecnológico de plataformas digitais tende a agravar o problema. Um exemplo é o avanço da internet das coisas — tecnologia que permite a conexão à internet de dispositivos usados no dia a dia, de geladeiras a carros, dotados de sensores inteligentes e software. Até 2020, haverá cerca de 50 bilhões de dispositivos conectados à rede, quatro vezes o número atual, e cada um deles estará ampliando ainda mais a base de dados pessoais de seus usuários, o que dará mais munição para afinar um perfil político. “Seguindo essa tendência, no futuro os políticos mais bem-sucedidos serão aqueles com poucas ideias polêmicas e com um discurso vago, o que ampliará sua chance de atrair o apoio de mais eleitores com mensagens políticas formatadas por algoritmos”, diz Jamie Bartlett, diretor do centro de estudos britânico Demos, que lança em abril o livro The People Versus Tech (“O povo contra a tecnologia”, numa tradução livre),  justamente o papel das ferramentas digitais na democracia.

Para especialistas, a mobilização para conscientizar os usuários de redes sociais a ser cuidadosos com o que postam e a adoção de leis rígidas para proteger a privacidade dos dados são iniciativas válidas para conter o problema. Outra possibilidade é exigir que os candidatos informem o tipo de banco de dados ou o processo de segmentação de anúncios usados nas campanhas. “Não são medidas fáceis de ser  adotadas, mas em conjunto podem fazer a diferença para preservar a democracia”, afirma Bartlett. As fakes news, como se vê, eram só um dos problemas. 

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