O brasileiro João Campos Silva (ao centro) e os outros quatro vencedores do Prêmio Rolex de Empreendedorismo (Rolex/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 5 de julho de 2019 às 05h15.
Última atualização em 8 de julho de 2019 às 15h08.
Desde que foi fundada em 1905, a Rolex tem o nome escrito em verde. O motivo se perdeu na poeira do tempo, mas podemos deduzir que a ideia era associar os relógios com os ideais de riqueza, exclusividade, indício reforçado pela coroa dourada acima do logo. Se a marca estivesse surgindo hoje, talvez o departamento de marketing da manufatura suíça escolhesse a mesma cor como identidade visual, mas por outra razão — reforçar o engajamento em causas ambientais e sociais.
Ao colocar no pulso um clássico Submariner Date de 40.000 reais, por exemplo, o cliente da marca muito provavelmente não sabe, mas está ajudando uma causa, muito além da suposta ostentação. A manufatura promove, desde 1976, o Prêmio Rolex de Empreendedorismo, que avalia projetos novos ou em andamento nas áreas de ambiente, ciência, saúde, cultura e exploração. A cada edição, de dois em dois anos, cinco propostas são apontadas como vencedoras. Até hoje, 140 pessoas foram laureadas.
Os vencedores levam, além de um relógio, um cheque de 200.000 francos suíços para investir em seus projetos. “No momento da inscrição para o prêmio, a organização pede para explicarmos direitinho onde vamos gastar cada centavo caso sejamos vencedores”, disse a EXAME VIP o biólogo João Campos Silva, o único brasileiro entre os cinco premiados deste ano. “O dinheiro é importante, mas não é o principal. O mais legal é o reconhecimento internacional, já que o júri é composto de cientistas renomados e há possibilidade de conseguirmos financiamentos maiores.”
Foi uma competição acirrada até Campos Silva ficar entre os cinco premiados. Na primeira fase foram avaliados 954 trabalhos de 111 países. Entre os jurados figuram sempre ambientalistas, médicos e educadores de renome internacional — sir Edmund Hillary, o primeiro homem a pisar no topo do Everest, já foi um deles.
O projeto de Campos Silva aborda um tema pouco conhecido, até mesmo no Brasil. Trata-se do manejo sustentável do pirarucu, um peixe enorme com aspecto pré-histórico que pode chegar a 3 metros de comprimento e pesar 200 quilos. Pelo porte, o peixe está no topo da cadeia alimentar e é em grande parte responsável pelo equilíbrio do ecossistema de boa parte dos rios da Amazônia. A manutenção do pirarucu é importante por outro motivo: trata-se da base da economia de centenas de comunidades espalhadas pela Amazônia. Somente à beira dos 2 quilômetros do Rio Juruá, onde João e sua equipe da ONG Instituto Juruá atuam, são 60 comunidades, ou cerca de 1 200 pessoas. A ideia é que o projeto seja expandido por toda a Região Norte.
Em tempos de valorização das mulheres no mercado de trabalho, o projeto tem ainda outro mérito. “Nessas comunidades, a renda gerada pelo pirarucu é compartilhada por toda a comunidade”, afirma Campos Silva. “Parte vai para obras de uso comum, como escolas, e parte vai para o consumo das famílias. Em muitos casos, é a primeira vez que as mulheres têm acesso a uma renda, sem depender do marido. É uma barreira que estamos quebrando.”
A perspectiva é ainda mais animadora. “Estamos começando a fazer um trabalho de levar a carne do pirarucu a outros centros urbanos e mesmo ao exterior. A pele também é matéria-prima para fazer bolsas e sapatos, e isso ainda não está sendo explorado.” Essa é uma das premissas do prêmio: os projetos precisam ser escaláveis, com possibilidade de ser replicados em outras regiões e mesmo em outros países. Como o programa de outro laureado, o neurocientista francês Grégoire Courtine, que desenvolveu um sistema eletrônico para levar sinais de comando do cérebro para a espinha dorsal e, dessa forma, ajudar pacientes paraplégicos a voltar a andar, uma iniciativa que pode beneficiar milhões de pessoas no mundo.
Outro caso é o da Cartier Women’s Initiative Awards, que a cada ano escolhe sete empreendedoras, uma de cada região do globo, para ter seus projetos financiados. A Fondazione Prada é um centro de exposição de arte e design doado pela marca italiana à cidade de Milão, numa zona tradicionalmente ocupada por galpões industriais. No caso da premiação da Rolex, vale lembrar que o prêmio tem mais de 40 anos, bem antes da atual onda de responsabilidade social nas corporações.
Apesar do impacto nas comunidades beneficiadas, essas iniciativas não costumam ser amplamente divulgadas pelas marcas, talvez por receio de que o excesso de publicidade desacredite a boa intenção das ações. Uma exceção foram as doações destinadas à reconstrução da Notre Dame, em Paris. Nem bem as chamas haviam sido dominadas, anunciou-se que cerca de 1 bilhão de dólares haviam sido arrecadados para as futuras obras da catedral. Boa parte dessa soma veio dos milionários François-Henri Pinault, dono do grupo Kering, que tem entre suas grifes Gucci e Yves Saint-Laurent, e Bernard Arnault, dono do conglomerado LVMH.
A fonte dos recursos destinados à catedral logo foi revelada, e na sequência surgiram críticas de diversas naturezas: suposto oportunismo dos doadores, o montante poderia ser destinado para outros fins etc. Para evitar repercussões negativas, muitos filantropos acabam atuando no anonimato, e por aí entende-se a discrição que é praxe no segmento. Anand Giridharadas, autor do livro Winners Take All: The Elite Charade of Changing the World (não publicado no Brasil), considera esse debate saudável e necessário. “Não é hostilidade gratuita dos críticos”, disse Giridharadas, por ocasião do incêndio. “É simplesmente uma dose de ceticismo em relação a essa forma de exercer o poder.”
Curiosamente, a cerimônia de entrega do Prêmio Rolex deste ano aconteceu em Washington, uma cidade que transpira filantropia. A capital americana abriga dezenas de museus, boa parte com entrada gratuita e construída com fundos privados. Ao entrar no Museu de História Americana ou no Museu de História Natural, pertencentes ao Smithsonian Institution, por exemplo, é possível ver em cada galeria os nomes das famílias doadoras — a começar por James Smithson, que deixou seu patrimônio ao governo americano para a criação de um centro de difusão de conhecimento, no início do século 19. Ele cumpria assim, sem saber, um ensinamento de Warren Buffett, grande filantropo da atualidade: “Se você está entre o 1% com mais sorte da humanidade, deve ao mundo pensar nos outros 99%”.