Sede da Netflix, na Califórnia: uma cultura de desafios (Netflix/Divulgação)
David Cohen
Publicado em 22 de novembro de 2019 às 05h48.
Última atualização em 22 de novembro de 2019 às 06h48.
Se a guerra pelo mercado de entretenimento em vídeo virasse roteiro de uma série, é provável que seguisse os moldes da história em que o pequeno Davi enfrenta o gigante Golias e o derrota não no combate direto, mas pelo uso de uma arma que não estava nos cálculos do oponente. Davi seria a Netflix, e Golias… bem, há inúmeros candidatos a Golias nesse mercado. O roteiro seguiria de perto a metáfora da empresa disruptiva, aquela que vence as concorrentes mais poderosas sem enfrentá-las diretamente, ao mudar as regras do jogo. Porém, essa seria apenas a primeira temporada da série. Na segunda temporada, percebe-se que os Golias são muitos, sobreviveram à pedrada na testa e estão aprendendo a lutar com fundas, além da espada. Mais interessante que isso: Davi cresceu. Tornou-se rei. Mal completados 21 anos, hoje é ele o incumbente, aquele a quem todos querem (precisam?) desafiar.
Para acompanhar a segunda temporada da guerra pelo entretenimento, é crucial entender como a Netflix chegou a esse ponto. E aí entra o testemunho de Marc Randolph, que fundou a empresa junto com Reed Hastings e ficou nela, primeiro como executivo-chefe, depois como presidente, até 2003. Em setembro, Randolph lançou o livro That Will Never Work: The Birth of Netflix and the Amazing Life of an Idea (“Isso nunca vai funcionar: o nascimento da Netflix e a surpreendente vida de uma ideia”, numa tradução livre).
É comum, nas histórias de empresas fundadas por duplas de amigos, que as pessoas se esqueçam de um deles. Steve Wozniak e Paul Allen ficaram relegados a segundo plano em relação a Steve Jobs e Bill Gates, mas foram cruciais para a criação, respectivamente, da Apple e da Microsoft. De fato, Reed Hastings, pela avaliação do próprio Randolph, tinha mais competência para os diversos desafios de erguer uma empresa. Mas foi Randolph quem deu os passos iniciais da Netflix — até ser não tão delicadamente convencido a ceder as rédeas a Hastings. De qualquer forma, os dois mantiveram a amizade e Randolph tem uma visão privilegiada sobre os lances de sorte, as jogadas visionárias, os erros, as decisões estratégicas, os dramas e os risos que forjaram a Netflix.
Os dois já eram rodados no mundo das startups quando se conheceram. Hastings, um empreendedor serial, dirigia uma empresa que fazia ferramentas de desenvolvimento de software, a Pure Atria. Quando esta comprou uma empresa menor, a Integrity QA, fundada por Randolph, Hastings o manteve como vice-presidente de marketing. Apenas seis meses depois, porém, Hastings vendeu a companhia. No processo, os dois tiveram quatro meses de trabalho já sabendo que iriam embora. Iniciou-se, então, uma dinâmica que culminaria no nascimento da Netflix: Randolph anotava dezenas de ideias de negócios e as testava no carro com Hastings durante o trajeto para o trabalho. Se Hastings não fosse tão rigoroso, Randolph poderia ter seguido o caminho de sua ideia 114, por exemplo: pranchas de surfe personalizadas, adequadas ao tamanho, ao peso e ao estilo do cliente. Mas essa ideia não era escalável. “Você quer algo em que o esforço de fazer um produto seja idêntico ao de fazer uma dúzia”, disse Hastings. “E, já que você está nisso, tente achar algo que signifique mais do que uma única venda, que você possa vender a seu cliente várias e várias vezes.”
Quando surgiu a ideia de alugar filmes por meio de um site, a resposta não chegou a ser entusiasmada, mas Hastings viu alguma possibilidade. Ele acabara de pagar uma multa por atraso na devolução de um filme e queria fazer algo a respeito. O problema é que, em 1997, ainda mal havia DVDs. E o custo de enviar fitas de vídeo pelo correio e depois recebê-las de volta era proibitivo. Daí vem o título do livro: “Isso nunca vai funcionar” foi o comentário que Randolph mais ouviu, inclusive de sua própria mulher.
O problema não era só o peso. Naquela época, ninguém vendia fitas de vídeo para o público consumidor, apenas para as locadoras. Com exceção de filmes infantis (da Disney) que já haviam saído de cartaz muito tempo atrás, as fitas eram caras demais, algo entre 70 e 80 dólares cada uma. E mais: havia a Blockbuster, uma cadeia praticamente onipresente de locadoras. Por que alguém alugaria um filme por um site e depois esperaria dois ou três dias para vê-lo se podia encontrar uma locadora a 10 minutos de distância?
A chegada dos DVDs foi a primeira oportunidade para a Netflix. Os dois parceiros testaram o envio de um disco com um selo de 32 centavos, e ele chegou intacto. Havia esperança. Mas Hastings estava mais interessado em fazer um doutorado em Stanford e promover uma reforma educacional por meio da tecnologia. Por isso concordaram que Randolph tocaria a empresa. Além de sócio, Hastings foi investidor: colocou 1,9 milhão de dólares para financiar os primeiros passos (numa época em que montar um site, por exemplo, exigia programação própria e pelo menos seis meses de trabalho, algo que se faz hoje em um par de horas). Por isso, ficou com 70% das ações, enquanto Randolph tinha 30%.
Encontrar o tempo certo para agir nunca é simples. Demanda um pouco de sorte, além da habilidade. Isso ficou evidente numa das primeiras conversas em busca de financiadores, quando um especialista lhes disse que ninguém adotaria os DVDs porque o grande salto de tecnologia seria do analógico para o digital. Quando os filmes estivessem em formato digital, não faria sentido distribuí-los em pedaços de plástico. Ele estava certo, é claro, mas no tempo errado. Naquela época, os estúdios de Hollywood tinham visto o que acontecera com a indústria da música, destruída por pirataria, e não queriam correr o mesmo risco. Estavam apostando em DVDs, e mais do que isso: em DVDs para ser comprados, não só alugados.
Ainda assim, os obstáculos eram enormes. Quase ninguém tinha aparelhos de reprodução de DVDs (a não ser no Japão). Randolph foi ousado: conseguiu um acordo exclusivo com a fabricante Toshiba, pelo qual entregaria três discos grátis aos compradores de um aparelho. Depois repetiu a dose com a Sony (irritando a parceira anterior), por um preço ainda mais alto, de cinco discos, em troca de colocar também um folheto anunciando o site para alugar mais filmes.
Deu certo. Até demais. Quando o site foi lançado, em 1998, os dois servidores que eles tinham comprado para sustentar o tráfego de internautas não aguentaram o tranco. O sistema caiu. Dois programadores foram até uma loja e compraram, com urgência, mais oito servidores. Era o quíntuplo da capacidade, e só deu para outros 45 minutos. “As caixas acabaram. A fita para embrulhar os discos acabou. O papel acabou. Ficamos sem tinta”, afirma Randolph.
Desde o início, emulando a Amazon, a Netflix foi uma coletora incessante de dados. A empresa sabia onde cada cliente morava, como e quando havia aderido, quantas vezes alugara, o que costumava ver, quanto tempo levava para devolver um disco… Também deu início a uma cultura que depois se espraiou: férias flexíveis, reembolso de despesas sem burocracia etc. “As pessoas não querem lanchinhos grátis, mesas de pingue-pongue ou kombucha na torneira. Elas querem ter uma missão em que acreditam, um problema para resolver e espaço para fazer isso. Querem estar cercadas por outros adultos cujas habilidades elas respeitem”, diz Randolph.
Embora estivessem indo bem, os resultados eram perigosos. De uma receita de 94.000 dólares, quase 99% era de vendas, pouco mais de 1% vinha do aluguel de discos. E a venda era uma atividade que qualquer um podia fazer. Se a Amazon resolvesse concorrer com eles… A primeira ideia foi vender o negócio para a própria Amazon, mas a oferta, algo em torno de 15 milhões de dólares, não lhes apeteceu. Depois da reunião com Jeff Bezos, Randolph sugeriu que a Netflix abandonasse a única parte lucrativa do negócio e focasse apenas o aluguel. Era a chance de se estabelecer como uma companhia única.
Embarcar por essa via, no entanto, exigia uma montanha de capital. Fora a compra de fitas, o custo de atração dos clientes, com as promoções, era altíssimo. Nessa hora, a presença de Reed Hastings era um ativo. Os investidores confiavam nele. Além disso, o acordo com a Sony, embora cruel do ponto de vista financeiro, tornava a Netflix uma empresa de respeito: se a Sony fazia negócio com eles, tinham de ser levados a sério.
A Netflix passava agora a outro patamar. As apostas eram mais altas. E Hastings, com menos de um ano do lançamento da empresa, decidiu que era hora de assumir mais responsabilidades. Em uma conversa dura, disse a Randolph que não confiava integralmente em sua capacidade de liderar a empresa. A proposta era que ele se tornasse presidente, para que Hastings virasse o executivo-chefe. Pior: para fazer isso, exigiu uma parte das ações de Randolph. Os dois acabaram chegando a um acordo e passaram a funcionar como dupla: no dizer de Randolph, como “passado e futuro, coração e cérebro, Lennon e McCartney”.
Nessa nova fase, a dupla criou uma cobrança mensal, por quatro DVDs, e a cada devolução o cliente recebia outro, previamente escolhido. Em pouco tempo, isso se transformou num modelo de assinatura. E Hastings propôs, da mesma forma que eles tinham se concentrado em aluguel e parado de vender, que apostassem apenas na assinatura, deixando de alugar à la carte. Começava um movimento que revolucionaria o modo como nós consumimos filmes e séries.
O negócio ia tão bem que a Netflix sobreviveu ao estouro da bolha da internet, na virada do milênio. Ele até ajudou, por eliminar potenciais concorrentes. Só que o modelo de assinaturas tem um porém. Os custos de aquisição de clientes são imediatos e as receitas pingam aos pouquinhos. O sucesso, num ambiente em que os investidores se retraíram, começou a matar a empresa. E foi então que a Netflix se ofereceu à Blockbuster. E foi então que a Blockbuster se recusou a comprar a Netflix. Seguiu-se um período duro, com a demissão de 40% do pessoal — mas a empresa se safou.
Em 2002, a Netflix abriu o capital e, alguns meses depois, no ano seguinte, Randolph decidiu sair. Passou a se dedicar a ajudar startups como coach, investir nos estágios iniciais de empresas e servir de mentor de alguns empreendedores. Seu relato se assemelha um pouco ao de Peter Thiel, no livro De Zero a Um, em que fala como criou o PayPal e sobre o ofício de criar startups em geral. Na matemática que aprendemos na escola, a distância entre zero e 1 é igual à distância entre 1 e 2, entre 2 e 3, e assim por diante. Na vida raramente acontece desse modo. O primeiro passo é imensamente mais largo que os demais. O primeiro passo é um ato criador.
No caso da Netflix, porém, a história é um pouco diferente. Se o passo 1 foi criar uma locadora digital, o passo 2 foi igualmente transformador. Na famosa frase do diretor de conteúdo da Netflix, Ted Sarandos, a Netflix tinha de se transformar numa HBO antes que a HBO se tornasse uma Netflix. Ou seja, assim como o aluguel era uma atividade única e a venda era uma commodity, assim como a assinatura tornaria a empresa sustentável, era preciso produzir conteúdo, porque distribuí-lo já não era suficiente, era até arriscado. Em 2013, aos 15 anos, a Netflix debutava como concorrente de seus fornecedores.
Durante um período, ela comeu o bolo e guardou o bolo. Chegou a fechar um acordo de exclusividade com a Disney, por exemplo. Mas esse tempo passou. Os concorrentes acordaram. Uma das vantagens de sair do zero a 1 é que ninguém enxerga alguém tão pequeno — como bem sabe a Blockbuster. Mas se há uma certeza agora, nessa passagem de um para 2, 3, 1.000, é que está todo mundo vendo a Netflix.