Revista Exame

Elon Musk, o capitalista preferido dos chineses

O bilionário dono da Tesla ama a China. Pelo menos por enquanto, esse amor é plenamente correspondido

Elon Musk na China: sucesso nas lojas e nas redes sociais (Aly Song/Reuters)

Elon Musk na China: sucesso nas lojas e nas redes sociais (Aly Song/Reuters)

DR

Da Redação

Publicado em 11 de fevereiro de 2021 às 05h02.

Última atualização em 27 de fevereiro de 2021 às 10h25.

Em 10 de fevereiro de 2020, enquanto as autoridades da China colocavam fim às interrupções no expediente destinadas a conter o novo coronavírus, grande parte do país permanecia quieta. O sistema de transportes continuava paralisado, e muitos trabalhadores estavam presos às províncias em que moravam. Outros foram orientados a evitar suas fábricas e seus escritórios até que os gestores formulassem planos para reabrir em segurança.

Porém, em uma planície pantanosa nos subúrbios da maior cidade da China, a Giga Shangai da Tesla estava fervendo. Milhares de trabalhadores estavam de volta à linha de produção, muitos deles transportados em ônibus fornecidos pelo governo e vindos de dormitórios vigiados por autoridades para impedir que se misturassem à comunidade. Os funcionários tinham fartura de máscaras N95. Ao contrário de muitas empresas, a Tesla recebeu vasto suprimento dos burocratas que assumiram o controle do suprimento de equipamentos de proteção individual. A fábrica foi limpa com um desinfetante que também necessitava de autorização do órgão regulador para ser comprado.

A rápida volta ao normal da Tesla foi consistente com a relação que a fabricante de veículos elétricos tem desfrutado com o Estado chinês desde 2018, quando a empresa anunciou planos de construir a fábrica de Xangai. Em mais de uma ocasião, a Tesla obteve benefícios que outras companhias internacionais têm lutado para conseguir, como isenções fiscais, empréstimos baratos e permissão para ter domínio absoluto de suas operações no país, além de apoio para construir uma fábrica enorme em uma velocidade espantosa. O apoio do governo está ajudando a Tesla a transformar a China em seu mercado mais importante fora dos Estados Unidos. O Modelo 3 está hoje entre os veículos elétricos mais vendidos no país mais populoso do mundo e, nos balanços recentes da Tesla, a China já responde por um quinto da receita da empresa — desempenho que ajudou a tornar Elon Musk o homem mais rico do mundo. 

À medida que cresce a presença da Tesla no país, é razoável perguntar se Musk está se tornando o capitalista estrangeiro preferido de Xi Jinping. Porém, embora a posição de Musk seja privilegiada, ela também é incômoda. As relações entre os Estados Unidos e a China estão em sua pior fase desde pelo menos o início da década de 1990, tendência intensificada pelo presidente Donald Trump mas que terá continuidade quase certa com o presidente Joe Biden, com legisladores dos dois partidos pedindo atitudes mais agressivas em relação ao país asiático. Incomodados com anos de protecionismo e roubo de propriedade intelectual, e cientes de que a China tem sido acusada de violação de direitos humanos em larga escala em Xinjiang e Hong Kong, poucos CEOs americanos têm se mostrado dispostos a elogiar o país hoje em dia. 

Linha de produção em Xangai: fábrica construída em tempo recorde com a ajuda dos chineses (TPG/Getty Images)

Até agora, as relações de Musk com a China não abalaram sua posição nos Estados Unidos. Amado por muitos liberais por suas credenciais ambientais, louvado por conservadores alinhados com Trump por seus esforços em restaurar a produção americana e — por meio da SpaceX — digno da confiança do Pentágono para lançar satélites espiões, Musk parece tão popular em Washington quanto em Pequim. Porém, à medida que as relações entre os dois países se deterioram e uma China cada vez mais autoritária busca conquistar a liderança global em tecnologias-chave, como os setores de veículos elétricos e de inteligência artificial, não está claro até quando Musk será capaz de se equilibrar nessa falha sísmica geopolítica. 

A China é o maior mercado do mundo para veículos elétricos por uma larga margem, respondendo por cerca de 1,2 milhão de unidades comercializadas em 2020, mais de 40% do total vendido no mundo. Em grande parte, a popularidade do país vem da política de governo. Durante uma década, governos centrais e locais têm oferecido uma combinação complexa de subsídios e incentivos para a compra de veículos híbridos ou totalmente elétricos. Algumas cidades grandes também estão implementando sistemas que punem proprietários de veículos convencionais. Em Xangai, por exemplo, placas para novos veículos a gasolina precisam ser compradas em leilão, com preços que estão hoje na casa dos 14.000 dólares, enquanto as placas para veículos elétricos saem de graça.

No entanto, mesmo nas cidades mais conectadas, veículos da Tesla eram raros até recentemente. Em 2015, a empresa vendeu cerca de 3.700 carros na China, comparados aos quase 33.000 da então líder Zhidou Auto, fabricante de veículos elétricos compactos do tamanho de carros de golfe. Houve alguns erros iniciais que custaram caro à Tesla. Quando ela começou a vender seu primeiro sedan na China, o Modelo S, em 2014, os designers da empresa ainda não tinham entendido que chineses ricos o suficiente para comprar o carro costumavam ter motoristas particulares e, portanto, queriam bancos traseiros mais sofisticados. A suíte de soft­wares do veículo também não tinha alguns apps chineses populares, e as tomadas dos carros eram compatíveis somente com os carregadores da Tesla, e não com o padrão usado na China.

(Arte/Exame)

O grande problema era que todo Tesla vendido em Pequim ou em Xangai era fabricado nos Estados Unidos. Como a maioria das iniciativas do governo chinês, os subsídios a veículos elétricos foram criados para ampliar a base industrial do país e fortalecer as empresas estatais. Ou seja, em geral, os incentivos não valiam para veículos importados. Fabricantes chineses como a BYD Auto e o Baic Group, em comparação, se beneficiaram imensamente do auxílio, que lhes permitiu vender veículos elétricos intermediários pelo equivalente a 20.000 dólares ou menos, com os subsídios.

Em 2017, a orientação da Tesla em relação à China começou a mudar. Em março daquele ano, a Tencent, emblemática empresa de tecnologia com fortes ligações com o Estado, comprou uma participação de 5% na Tesla, levando Musk a declarar no Twitter que a Tencent seria “uma investidora e consultora”. Ele não detalhou o tipo de consultoria que a Tencent faria, mas o acordo parecia presságio de um investimento considerável na China.

Clientes observam modelos da Tesla à venda na China: entre os mais vendidos no país (Sun Yilei/Reuters)

Fora da vista pública, a Tesla estudava de que modo poderia construir uma presença mais robusta no país asiático, com executivos vistoriando cidades da região metropolitana em busca de potenciais locais para suas fábricas. Xangai, tradicionalmente a metrópole mais voltada para fora e cidade natal de Robin Ren, engenheiro treinado em Stanford que comandou a operação da Tesla na Ásia e no Pacífico, era um nome óbvio. Em suas conversas com potenciais anfitriões chineses, a Tesla tinha uma condição inegociável: 100% de controle de sua operação, para proteger a propriedade intelectual da marca automotiva mais desejada do mundo. 

A exigência de Musk ocorreu em um momento oportuno. A guerra comercial entre os Estados Unidos e a China estava se intensificando, com Trump amea­çando tarifas de grande alcance e empresas americanas deparando com um ambiente mais hostil na República Popular. “A China buscava manchetes para dizer que as empresas americanas ainda queriam vir para cá”, afirma Kenneth Jarrett, ex-cônsul-geral americano em Xangai e hoje consultor sênior no Albright Stonebridge Group. “A Tesla entendeu isso e percebeu que podia negociar de modo mais duro e ganhar.”

Musk bateu o pé na questão do controle pleno, e em abril de 2018 ele conseguiu. Naquele mês, a poderosa Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma da China anunciou que a exigência de 50% de posse estrangeira de empresas automotivas desapareceria até 2022, com as operações dedicadas integralmente a veículos elétricos isentas do requisito quase imediatamente. Três meses depois, a Tesla assinou um acordo com o governo de Xangai para construir uma fábrica capaz de produzir 500.000 veículos por ano.

No início de 2019, Musk e um séquito de pessoas importantes se reuniram em frente a um campo lamacento na Nova Região de Lingang, um canteiro de obras a 1 hora e meia de carro do centro de Xangai. A nova fábrica, disse Musk, seria “talvez a mais avançada” do mundo. Em Pequim, cada movimento seu era registrado nas redes sociais por fãs chineses. O ponto alto da viagem foi uma audiência com o premiê Li Keqiang. “Amo a China”, disse Musk quando os dois se encontraram, dando uma declaração que seria distribuída de modo entusiasmado pela imprensa estatal. Logo se tornou claro que a China o amava também.

Em março daquele ano, vários bancos público-privados finalizaram um acordo com a Tesla de até 521 milhões de dólares em financiamento para construção. Eles concordaram em emprestar o dinheiro por um valor subsidiado e sem direito a reivindicar nada da Tesla além daquilo oferecido como garantia. A fábrica já estava sendo construída em ritmo frenético, com o governo de Xangai ajudando em tudo que podia. Conectar a fábrica à rede de saneamento demorou apenas quatro dias, e o State Grid, estatal de energia elétrica, disse ter completado a instalação da rede elétrica da Tesla mais depressa do que qualquer outro projeto do mesmo porte.

(Arte/Exame)

À medida que avançavam os planos de produção em Xangai, a ajuda continuava chegando. Em dezembro de 2019, o Modelo 3 fabricado na China foi aprovado para subsídios de compra de pouco menos de 25.000 iuanes (3.900 dólares) por veículo, apesar do esforço governamental para conter tais benesses à medida que os veículos elétricos se tornavam mais competitivos com os carros convencionais. Logo depois, a Tesla conseguiu outra rodada de financiamento dos bancos público-privados, dessa vez no valor de mais de 1 bilhão de dólares.

A promessa de Musk de que a fábrica de Xangai ficaria pronta em tempo recorde foi cumprida. Os carros começaram a sair da fábrica antes do fim de 2019, menos de um ano após o início da preparação do terreno. Conforme a tradição, os primeiros veículos foram reservados para funcionários, um dos quais, durante o evento de lançamento, pediu a namorada em casamento, oferecendo o carro como presente de noivado. Ela aceitou.

Até aqui, os consumidores chineses — que, em razão da quase eliminação do coronavírus em suas fronteiras, estão mais próximos da normalidade econômica do que cidadãos de qualquer outro país grande — têm reagido com entusiasmo à presença ampliada da Tesla. O Modelo 3 foi o veículo elétrico mais popular da China durante boa parte de 2020, e a fábrica de Xangai também começou a produzir o utilitário esportivo Modelo Y. 

O mercado chinês já se tornou crucial para o negócio da Tesla. Recentemente, a empresa mudou a forma como registra seus dados financeiros e tornou a China o único país, fora os Estados Unidos, em que divulga a receita trimestral. No país asiático, o valor cresceu de 669 milhões de dólares no terceiro trimestre de 2019 para 1,74 bilhão de dólares no mesmo período de 2020. Em outras palavras, a aposta de Musk está se pagando.

Um dos modelos que disputam o mercado de carros elétricos na China: forte concorrência (Nicolas Asfouri/AFP/Getty Images)

A pergunta sobre o que a China está ganhando com isso é mais complicada de responder. Para muitos especialistas, o motivo principal do governo está claro: melhorar a capacidade da indústria chinesa de carros elétricos, forçando rivais e fornecedores da Tesla a melhorar seus produtos. Nos últimos anos, Pequim vem gradualmente retirando seu apoio às companhias de veículos elétricos, visando consolidar um setor que, em certo momento, teve quase 500 empresas nacionais. A Tesla, segundo essa hipótese, será o ponto de referência com o qual as empresas restantes vão se comparar. 

“A ideia da presença da Tesla é ajudar a desenvolver toda a cadeia de fornecedores”, afirma Scott Kennedy, consultor sênior no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. Há um precedente no setor de smartphones. A maioria dos iPhones é fabricada na China, o que beneficia um imenso grupo de fornecedores internos. Porém, o setor é dominado por empresas locais como Huawei, Oppo e Vivo, que têm prosperado na esteira da rival americana. “Por um lado, você tem acesso a essa rede de suprimento e produção extremamente eficaz e a um mercado imenso”, diz Kennedy. “Por outro, você está a milímetros de adversários que podem arruinar seu negócio.”

Elon Musk na sede da SpaceX, na Califórnia: tecnologia espacial pode virar tema controverso (Patrick T. Fallon/Bloomberg/Getty Images)

O desafio mais imediato para os negócios da Tesla na China pode vir de Washington. Durante grande parte de sua carreira, Joe Biden foi um entre vários democratas mais experientes que defendiam laços mais próximos com Pequim, argumentando que o melhor jeito de empurrar o país na direção de valores democráticos seria inseri-lo no sistema internacional. Ele mudou de tom nos últimos meses, chamando Xi de “bandido” e prometendo forçá-lo a “jogar o jogo” — atitude que o próximo líder dos democratas no Senado, Chuck Schumer, provavelmente imitará. Muitos dos candidatos a liderar o Partido Republicano pós-Trump são, no mínimo,  tão agressivos com a China quanto foi Trump.

No momento, o controle sobre o que empresas americanas podem fazer e vender no continente tende a focar tecnologias como a de semicondutores, e não de automóveis. Porém, à medida que os carros evoluem para se tornar plataformas rolantes com sensores avançados e inteligência artificial, não é difícil imaginar o dia em que autoridades americanas poderão adotar uma visão mais restritiva — ou quando, no mínimo, será politicamente controverso que uma montadora americana, especialmente uma comandada por um CEO que também administra a SpaceX, com seus vínculos de proximidade com o Exército americano, se envolva de modo tão íntimo com a China como a Tesla tem feito.

Veteranos do setor automobilístico chinês, que já viram empresas líderes de mercado como Volkswagen e Toyota lutar durante décadas para obter o que Musk conseguiu em poucos anos, estão impressionados com a agilidade do americano para navegar pelo sistema do país asiático. Contudo, os elogios deles vêm acompanhados de uma ressalva. “Elon está jogando o jogo muito bem”, diz Bill Russo, ex-executivo da Chrysler e atual CEO da Automobility, consultoria sediada em Xangai. “Mas a Tesla só conseguiu tudo isso porque era do interesse da China que a Tesla conseguisse.”  

(Nota do editor da Bloomberg: Haze Fan, da ­redação da Bloomberg News em Pequim, colaborou nesta reportagem antes de ser detida por autoridades chinesas, em dezembro.)


Colaborou Dana Hull

Tradução de Fabrício Calado Moreira 

Leia a reportagem completa na EXAME.com

Acompanhe tudo sobre:BilionáriosChinaElon MuskEXAME-no-Instagram

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda