Revista Exame

O capitalismo no divã

As empresas já não podem mais ignorar o impacto das transformações ambientais, sociais e tecnológicas em seus negócios

Protesto contra o aquecimento global em Londres (à esq.) e manifestantes do movimento #MeToo, em Nova York
 (Henry Nicholls/Reuters)

Protesto contra o aquecimento global em Londres (à esq.) e manifestantes do movimento #MeToo, em Nova York (Henry Nicholls/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 13 de fevereiro de 2020 às 05h15.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 15h43.

Nunca o papel dos conselhos de empresas foi tão importante, ou esteve submetido a análises tão minuciosas, quanto é hoje. As transformações tecnológicas, ambientais, geopolíticas e socioeconômicas das últimas duas décadas têm levado a uma reavaliação do modelo predominante de governança corporativa, no exato momento em que essas mudanças apresentam desafios fundamentais a áreas de políticas públicas e gestão.

Em especial, essas transformações vêm tornando a gestão social, ambiental, administrativa e de dados cada vez mais importantes para o desempenho financeiro e resiliência das empresas. Esta vasta mudança vem implodindo a divisão tradicional entre um modelo de governança corporativa (focado em custos e benefícios financeiros e operacionais), em que o acionista da companhia reina supremo, e um modelo de responsabilidade corporativa (focado em riscos e oportunidades sociais e ambientais) orientado pelos acionistas.

Questões que anteriormente eram consideradas secundárias por presidentes executivos e pelas diretorias — temas que no passado ficavam a cargo dos departamentos de relações com investidores, de filantropia e de tecnologia da informação das empresas — vêm se tornando fatores decisivos e importantes para a capacidade da companhia de criar e manter valor econômico. Por exemplo, as mudanças climáticas, o uso racional da água e outros aspectos de gestão ambiental são cada vez mais reconhecidos como questões fundamentais em um mundo em que a tecnologia, a regulamentação e outras características do ambiente operacional podem mudar rapidamente.

As questões ambientais e sociais entraram de vez no cotidiano dos negócios | Kena Betancur/Getty Images

Desafios semelhantes se aplicam à gestão de ativos intangíveis nas companhias — uma fonte-chave de vantagem competitiva na Quarta Revolução Industrial e cada vez mais decisiva. O talento e a motivação da força de trabalho de uma empresa, uma cultura corporativa de inovação, a experiência individual e os dados estão se tornando fontes cada vez maiores de valor nos negócios.

Do mesmo modo, a abordagem de uma companhia em relação a seus funcionários, ao planeta e à inovação — inclusive como ela protege e aplica o valor agregado de seus dados — deve aparecer com grande destaque nas decisões de alocação de capital. Com isso em vista, as lideranças empresariais precisam melhorar sua compreensão das vantagens entre o investimento de médio e longo prazo em novas capacidades e competências comparada à racionalização de curto prazo das operações e ativos existentes. Com o tempo, deve ser dada mais ênfase para o investimento de médio e longo prazo.

Uma administração eficiente das questões sociais, ambientais e de dados é igualmente importante para a gestão de risco de uma companhia. Alguns setores e empresas estão aprendendo do pior jeito que deixar de lado a devida atenção a essas demandas pode resultar em uma queda acelerada da confiança dos investidores, dos empregados, dos clientes e da sociedade, podendo inclusive- levar a uma perda significativa de valor.

Por exemplo, o Relatório sobre Custos de Vazamentos de Dados de 2019, patrocinado pela área de soluções de segurança da empresa de tecnologia IBM, estima que o custo global médio de uma invasão a bancos de dados vêm aumentando 12% ao ano desde 2014, o que significa que as empresas hoje podem esperar gastos médios de 3,9 milhões de dólares em custos ligados a ataques digitais desse tipo. De modo semelhante, a empresa de software americana ForgeRock concluiu que mais de 2,8 bilhões de registros de dados de consumidores foram expostos em 342 violações só em 2018 nos Estados Unidos, a um custo estimado de 654 bilhões de dólares.

De acordo com uma pesquisa publicada pelo grupo ambiental Ceres, com sede em Boston, mais de 60 das 500 empresas listadas no índice S&P500 — que reúne as principais companhias de capital aberto na Bolsa de Nova York e na Nasdaq — revelaram publicamente terem tido algum efeito material negativo em seu faturamento causado por eventos climáticos. E não só isso. As interrupções na cadeia de fornecedores também relacionadas às mudanças climáticas cresceram 29% de 2012 a 2019 e, nos Estados Unidos, em maio de 2019 já passava de 100 o número de ações na Justiça por causa de questões climáticas. No mundo, o número de regulamentações ambientais de que se tem registro chegou a 1.500, comparada a 72 em 1997.

Na mesma linha, o movimento -#MeToo — que levou mulheres de todo o planeta a denunciarem casos de abuso sexual — vem revelando os crescentes riscos financeiros, reputacionais e operacionais que correm as empresas que deixarem de tratar problemas ligados a discriminação, assédio ou mau comportamento no ambiente de trabalho. A revista Fortune, em sua cobertura do relatório de Práticas de Sucessão de Presidentes Executivos da The Conference Board de 2019, destaca que “entre as 18 saídas involuntárias de presidentes executivos, cinco tinham ligação com conduta pessoal e alegações do #MeToo”, diz a revista. “Isso é especialmente notável quando se considera que só um presidente executivo foi demitido de 2013 a 2017 como resultado de conduta pessoal não ligada ao desempenho [da companhia].”

Fórum Econômico Mundial, em Davos: a nova visão de capitalismo responsável precisa ser incorporada pelas lideranças das empresas | Divulgação

Claramente, no novo contexto ambiental, social, geopolítico e tecnológico dos anos 2020, questões desse tipo não são apenas problemas éticos ou de relações públicas das empresas. Elas são essenciais para o exercício do dever de confiança na distribuição dos recursos corporativos. Ainda assim, entender o potencial pleno do capitalismo dos stakeholders (os acionistas, funcionários, clientes, empresas, organizações e pessoas envolvidos na operação de uma empresa ou impactados por ela) vai exigir das empresas que apliquem, na prática, seus princípios fundamentais. Isso começa pela diretoria. Os conselhos administrativos têm de superar a segmentação tradicional de considerações de acionistas e stakeholders, exemplificada pelos conceitos de valor para os acionistas e de responsabilidade corporativa, e integrar estes princípios.

A governança corporativa integrada se distancia da mentalidade e das práticas associadas à supremacia dos acionistas e da responsabilidade social corporativa, que acabam considerando as questões ambientais e sociais como temas primariamente pré ou não financeiros. Em comparação, uma abordagem integrada adota uma visão holística dos interesses de acionistas e stakeholders ao internalizar de modo sistemático as considerações ambientais e sociais na estratégia, na alocação de recursos, na gestão de risco, na avaliação de desempenho e nas políticas de processo e de relatórios financeiros da empresa.

Alagamento em linha de trem em São Paulo: no Brasil e no mundo tem aumentado o número de empresas que têm tido prejuízos causados por eventos climáticos | Aloisio Mauricio/Fotoarena

Se a intenção é que o capitalismo de stakeholders seja mais do que uma visão otimista do futuro, a integração e a incorporação desses preceitos precisa ser mais bem definida em termos operacionais, e tais práticas têm de ser adotadas em grande escala pelas diretorias, sejam de empresas privadas, estatais ou das organizações não governamentais. É isso o que falta para que haja um efeito prático dos princípios estabelecidos no Manifesto de 2020 do Fórum Econômico de Davos e na declaração revisada sobre o propósito de uma empresa da United States Business Roundtable (uma associação americana de empresas públicas, privadas e não governamentais). São conceitos que também têm sido incorporados por um número crescente de regulações pelo mundo, como o Código de Governança Corporativa e o Código de Gestão 2020, ambos do Reino Unido. É desta maneira que as empresas podem “falar muito e fazer muito” no capitalismo de stakeholders.


Richard Samans é diretor executivo do Fórum Econômico Mundial e presidente da Climate Disclosure Standards Board (Conselho de Normas de Divulgações Climáticas).

Jane Nelson é diretora da iniciativa de responsabilidade corporativa da Harvard Kennedy School.

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