Revista Exame

Esta é a foto do caos no Brasil. E prepare-se: ainda pode piorar

A poucos meses da eleição, cresce o risco de vitória de um candidato que proponha saídas fáceis — e erradas — para os problemas do Brasil

Paralisação de caminhoneiros em Pelotas, no Sul do país: solução de curto prazo | Fábio Motta/Estadão Conteúdo /  (Fábio Motta)

Paralisação de caminhoneiros em Pelotas, no Sul do país: solução de curto prazo | Fábio Motta/Estadão Conteúdo / (Fábio Motta)

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Letícia Toledo

Publicado em 7 de junho de 2018 às 05h00.

Última atualização em 7 de junho de 2018 às 16h56.

Uma sensação de alívio tomou conta do brasil quando, no dia 30 de maio, depois de quase dez dias de paralisação, os caminhoneiros finalmente começaram a sair das estradas e a abastecer postos de combustíveis, lojas e indústrias. A impotência do governo diante da greve havia provocado uma onda de pânico e cenas deprimentes. Parte da população achou prudente estocar comida. Muitos motoristas passaram horas em filas nos postos para abastecer o carro — uma imagem que parecia flashback dos anos 80. Dezenas de cidades, São Paulo entre elas, decretaram estado de emergência, o que significa que a prefeitura poderia apreender combustível e fazer compras sem licitação. No interior, donos de granjas relatavam que animais estavam morrendo por falta de ração. Quando o governo concordou em atender a uma série de reivindicações dos caminhoneiros e a greve terminou, o problema imediato, mal ou bem, foi resolvido. Mas, como costuma acontecer no Brasil, a solução criou outras dificuldades. Tanto a paralisação quanto seu desfecho transformaram um ano que já estava mais difícil do que o esperado num período extremamente complicado, na economia e, mais ainda, na política. Faltando apenas quatro meses para a eleição presidencial, o país se vê tomado por uma total incerteza sobre como será governado de 2019 em diante. “Ainda não sabemos claramente quais são os candidatos ou as alianças”, diz o cientista político Bolívar Lamounier (leia entrevista abaixo). “A única certeza é que o governo que vai sair da eleição será fraco, manipulado pelas corporações, e terá um Congresso que às vezes coopera, mas às vezes chantageia.”

Nesse ambiente, ficou mais difícil a aposta de que a passagem de bastão poderá se dar para uma liderança disposta a tocar uma agenda austera, com reformas estruturais impopulares — mas considerada essencial para uma volta firme ao crescimento. Os sinais indicam que estão se tornando mais encantadores os que prometem vir com soluções milagrosamente fáceis, que deixem de lado a racionalidade das contas. Ou que apelem para conceitos difusos e manipuláveis, como o nacionalismo e o personalismo — como fazia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em outras palavras, propostas populistas, que invoquem o emocional de um eleitorado frustrado com tudo o que está aí: do desemprego à má qualidade dos serviços recebidos em troca dos impostos, passando pela interminável revelação de roubalheira do dinheiro público. No panorama atual, a tentação populista pode vir tanto do lado direito quanto do lado esquerdo do espectro ideológico — o Brasil já conheceu exemplos populistas de ambas as vertentes, como os presidentes que se sucederam no início dos anos 60, Jânio Quadros, da direita, e João Goulart, esquerdista.

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Até pouco tempo atrás, cientistas políticos e analistas do mercado financeiro acreditavam que o país tinha um trunfo: o fato de candidatos de diferentes partidos então se mostrarem comprometidos com o equilíbrio fiscal e com a realização de reformas. O ápice da confiança se deu quando o candidato Jair Bolsonaro — um pré-candidato com um discurso populista baseado no combate aos criminosos —, hoje líder nas pesquisas de intenção de voto, escolheu o economista liberal Paulo Guedes, sócio da empresa de investimentos Bozano, para coordenar seu programa econômico, no fim de 2017. A avaliação era que a população poderia aceitar a austeridade desde que ela viesse acompanhada de alguma melhora na economia — o que vinha acontecendo até o começo do ano. Mas a recuperação foi perdendo força, assim como a disposição das pessoas para fazer sacrifícios. E a greve escancarou a insatisfação com o governo. Mesmo prejudicada pelos efeitos da paralisação, a maioria da população apoiou o movimento. Numa pesquisa feita pelo instituto MindMiners a pedido de EXAME, 91% dos 900 entrevistados disseram considerar a greve justa e necessária. Outro levantamento, feito pelo Datafolha, revelou que, após nove dias de bloqueios, mais da metade da população achava que os protestos deveriam continuar. “O desfecho da greve mostrou que os sinais do populismo estão aí e são preocupantes”, diz Armínio Fraga, sócio da gestora Gávea e ex-presidente do Banco Central. “A probabilidade de vitória de um candidato capaz de enfrentar com firmeza os desafios do país na área fiscal diminuiu.”

Eleitorado raivoso

A Eurasia, uma das principais consultorias políticas do mundo, quantificou essa probabilidade: sua última pesquisa mostra uma chance de 30% de ser eleito um presidente “não reformista”. Para a Eurasia, fazem parte desse grupo Ciro Gomes, Jaques Wagner, Fernando Haddad e também Luiz Inácio Lula da Silva, entre outros. É a mesma probabilidade atribuída a reformistas como Geraldo Alckmin e Henrique Meirelles. Em março, os reformistas estavam com 40% de chance, enquanto os contrários tinham 20%. “Estamos com um eleitorado raivoso, o que não ajuda as candidaturas tradicionais nem aquelas que defendem a mesma agenda do governo atual”, diz Christopher Garman, diretor da Eurasia.

Outra incerteza diz respeito às condições que o futuro eleito terá para governar e impor sua agenda frente a um Parlamento fragmentado e com uma qualidade cívica baixa. Nesse aspecto, as perspectivas são diferentes também conforme o perfil pes-soal, a base partidária e a experiência política de cada postulante à Presidência. Para a consultoria Tendências, entre os candidatos mais bem posicionados nas pesquisas de intenção de voto, apenas Alckmin não teria um “risco de governabilidade”, ou seja, conseguiria articular a aprovação no Congresso de medidas propostas por seu governo. Já Bolsona-ro, Marina Silva, Ciro Gomes, Álvaro Dias e qualquer candidato indicado pelo PT, com exceção do próprio Lula, teria dificuldade para governar. “Os candidatos que hoje despontam nas pesquisas têm menos apoio no Congresso e menos capacidade de articulação política”, diz Alessandra Ribeiro, sócia da Tendências. “É por isso que elevamos o risco de nosso cenário pessimista para a eleição de 30% para 35%.” Esse cenário representa a eleição de um candidato avesso a reformas e com baixa interlocução com os congressistas — Ciro Gomes ou alguém do PT, exceto Lula, por exemplo. Na economia, segundo Alessandra, isso significaria uma perspectiva de crescimento médio perto de 1% nos quatro anos do próximo governo. O desfecho ainda considerado mais provável, com 55% de chance de ocorrer, seria o da eleição de um candidato disposto a fazer um mínimo de reformas e com capaci-dade de articulação política, como Geraldo Alckmin ou Rodrigo Maia. Com isso, seria possível esperar um avanço do PIB próximo à média de 3% ao ano. Candidatos como Jair Bolsonaro ou Marina Silva, com menos trânsito político, poderiam levar o país a crescer menos, de 1% a 3%. Existe ainda a hipótese mínima de um eleito bem articulado avançar mais com a agenda de reformas. Nesse cenário mais otimista, com 10% de chance de ocorrer, o crescimento econômico poderia chegar à média de 4% ao ano.

Pedro Parente, ex-presidente da Petrobras: demissão em meio à crise | Fabiano Accorsi

O populismo vem ganhando espaço em diferentes países, capitalizando a insatisfação do cidadão comum com a política tradicional. É um movimento caracterizado, basicamente, pelo pouco ou nenhum compromisso com a responsabilidade fiscal, a crença num salvador capaz de resolver todos os problemas de um país e uma retórica do “nós contra eles” — por exemplo, população versus políticos, ou nacional versus estrangeiro. “O populismo é um estilo de liderança caracterizado por um discurso que venera o povo e critica o establishment. O líder representa o povo e a nação; por esse motivo, a oposição é contra o povo e a nação. Por fim, é ilegítima”, diz Scott Mainwaring, professor na Escola de Administração Pública da Universidade Harvard. Nos Estados Unidos, é o que está por trás da vitória de Donald Trump — que, ficando apenas num dos absurdos mais recentes, chegou a insinuar que poderia barrar a importação de carros alemães porque eles são “muito ruins”. Na Inglaterra, o nacionalismo foi o que motivou a vitória do Brexit, referendo em que a maioria da população decidiu pela saída do país da União Europeia. A América Latina tem uma longa tradição de lideranças populistas — Hugo Chávez, da Venezuela, é uma das mais marcantes. No Brasil, o período de 1930 até o golpe militar de 1964 foi dominado por governos populistas — o mais longevo foi o de Getúlio Vargas, até hoje chamado de “pai dos pobres” por ter instituído o salário mínimo e criado uma estrutura sindical que envolveu tanto empregados quanto patrões. Mas, nos dias atuais, a vitória, aqui, de um populista, que resista a fazer reformas necessárias, mas impopulares, pode significar que teremos mais alguns anos de atraso. “A pobreza, a desigualdade e a carência de políticas sociais levam a sociedade brasileira a pressionar por medidas populistas. É até compreensível, mas isso acaba diminuindo as perspectivas de resolver os problemas do país”, diz Mainwaring. Por enquanto, as pesquisas mostram que quase metade dos eleitores está indecisa. “Esse espaço vai ser ocupado por quem conseguir entender os desejos da população”, diz Gustavo Franco, sócio da gestora Rio Bravo e responsável pelo programa econômico do Partido Novo. “O desencanto com os políticos está assumindo diferentes formas no mundo. Podemos ter uma surpresa aqui.”

O aumento da incerteza na política teve reflexos imediatos no mercado financeiro. O risco-país, que mede quanto o governo brasileiro paga mais que o Tesouro americano para captar recursos no exterior, atingiu o maior nível desde maio de 2017, quando foram divulgadas as gravações entre o presidente Temer e o empresário Joesley Batista. A bolsa caiu 11% nas duas últimas semanas de maio, e o real perdeu valor — afetado também pela valorização do dólar no mundo. Além disso, os impactos na economia nos próximos meses devem ser significativos. Dados da consultoria 4E mostram que, em cada dia de greve, o país deixou de gerar 3 bilhões de reais de riqueza em razão da perda de produtos perecíveis, da paralisação de indústrias e do comércio e da dificuldade de prestar serviços com mobilidade reduzida. Na construtora MRV, o copresidente Eduardo Fischer avalia que a produção caiu 20% em maio porque canteiros de obras ficaram sem matéria-prima. Segundo a processadora de compras com cartões Cielo, as vendas do varejo caíram 15% entre 25 e 28 de maio, auge da greve, em relação aos dias anteriores à paralisação — isso apesar de as vendas dos supermercados terem aumentado com a corrida de alguns consumidores para estocar mantimentos. Tudo isso terá reflexos no PIB.

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O mais provável é que venha aí mais uma vez um “pibinho”. Depois da greve, a maioria dos analistas reduziu as previsões de crescimento para este ano e piorou as projeções do emprego e da inflação. Estimativas feitas a pedido de EXAME pela consultoria MB indicam que o crescimento do PIB em 2018 ficará no máximo em 1,9%. No começo do ano, a MB previa uma expansão de 3,5%. Já a expectativa da taxa de desemprego subiu para 12,5%. “A paralisação dos caminhoneiros criou um choque abrupto de desconfiança no país”, diz Sergio Vale, economista-chefe da MB. Os impactos devem ser diferentes dependendo do setor da economia. Para os analistas do Credit Suisse, o efeito será maior na indústria, bastante prejudicada pelo desabastecimento: a previsão de crescimento do setor caiu de 3,3%, antes da greve, para 2%, hoje. Para o agronegócio, porém, o banco espera uma melhora. Apesar de a paralisação dos caminhoneiros ter afetado o transporte de carnes e derivados de leite, teve poucas consequências no mercado de grãos, porque boa parte da safra foi escoada no começo do ano. “Além disso, a colheita de soja foi melhor do que se imaginava. Também exportamos mais porque houve uma seca forte na Argentina, e a valorização do dólar aumentou as receitas com as vendas externas”, diz Aurélio Pavinato, presidente da SLC, uma das maiores produtoras de grãos do país.

A dúvida é como a situação evoluirá nas próximas semanas. Como uma das concessões para encerrar a greve, o governo concordou em fixar um preço mínimo para o frete — medida que está sendo analisada pelo Cade, o xerife das práticas concorrenciais no país. Empresários ouvidos por EXAME disseram que as tarifas do transporte em alguns trechos já subiram mais de 50% — e alguns produtores estão segurando o escoamento para não pagar fretes tão elevados. Outra medida controversa tomada pelo governo para acabar com a paralisação foi obrigar a Companhia Nacional de Abastecimento a reservar aos caminheiros autônomos 30% do que transporta. Além disso, como não acontecia desde 2014, cortou impostos e criou subsídios para reduzir o preço do diesel. Por fim, resolveu intervir na política de preços da Petrobras. Os resultados de curto prazo são danosos. A conta do subsídio e da redução de impostos vai ser paga com a volta da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos de empresas de 39 setores e também com a diminuição de gastos em infraestrutura e educação, entre outros. Ainda assim, o banco Credit Suisse estima que as medidas aumentarão o déficit fiscal deste ano de 138 bilhões de reais para 154 bilhões. Pedro Parente, presidente da Petrobras responsável por reduzir o endividamento da estatal e elevar seu lucro trimestral para 7 bilhões de reais, pediu demissão depois de a empresa perder 100 bilhões de reais em valor de mercado.

Protesto a favor do Brexit, na Inglaterra: uma vitória do populismo | Jack Taylor/Getty Images

Temer já disse que preferia ser impopular a populista, e estaria disposto a adotar medidas duras para colocar o país nos eixos. O caos provocado pela greve parece ter mudado sua opinião. A dúvida, agora, é se o governo poderá adotar expediente semelhante para reduzir o preço da gasolina e do gás de cozinha. Para o cientista político Carlos Pereira, da Escola de Administração da Fundação Getulio Vargas, ações assim são comuns a governos impopulares em fim de mandato — os “patos mancos”, como são chamados nos Estados Unidos. “Eles acabam cedendo porque sabem que não terão de lidar com suas consequências, já que não podem se reeleger”, diz Pereira. “Já os parlamentares cedem porque querem se reeleger e temem se indispor com a população.”

Mas o problema vai além do governo atual, já que os candidatos, mesmo os de partidos que defendem regras de mercado, embarcaram na onda de criticar a política de preços da Petrobras. Para Marina Silva, faltou “sensibilidade ao presidente da Petrobras”. Ciro Gomes disse que a gestão da estatal fez a “nação refém para beneficiar meia dúzia de acionistas minoritários”. E Bolsonaro, que apoiou a paralisação desde o início, disse que o aumento dos valores dos combustíveis foi feito para tapar o buraco da corrupção na empresa. Geraldo Alckmin demorou a falar sobre a greve e, quando falou, defendeu reajustes de preços menos frequentes. É verdade que poucos países repassam a variação internacional do petróleo, sem filtros, aos preços domésticos. Muitos, entre eles Estados Unidos e Canadá, adotam mecanismos para atenuar as flutuações (leia mais sobre o tema na pág. 94). O problema é pensar no assunto apenas quando o petróleo valoriza, e não com o objetivo de criar uma política de longo prazo.

As eleições deste ano vão testar o futuro da democracia no Brasil. O país vive seu período mais longo como uma nação democrática, mas crises costumam ser um terreno fértil para o surgimento de salvadores da pátria que conseguem convencer a população de que vale a pena mudar as regras do jogo para melhorar a situação — o que costuma ser o primeiro passo rumo ao desastre. Como diz o americano Steven Levitsky, autor de How Democracies Die (“Como as democracias morrem”, numa tradução livre), “todas as democracias enfrentam crises”. “O essencial para uma consolidação democrática duradoura é ter a capacidade de sobreviver a essas crises. Ou seja, manter as regras intactas até que a tempestade passe.” O processo de recuperação deve ser lento e difícil. Mas, com as políticas certas, pode ser duradouro. 

“O BRASIL É UM PAÍS REFÉM DO CORPORATIVISMO”

Lamounier: “A sociedade brasileira tem uma veia populista” | Germano Lüders

No Brasil, dois terços dos gastos públicos beneficiam os 20% mais ricos da população. De acordo com o cientista político Bolívar Lamounier, isso mostra a força das corporações no país. Outra demonstração de corporativismo foi dada pelos caminhoneiros, que numa greve de dez dias interromperam o abastecimento de alimentos e de combustíveis. “Na realidade, os pequenos caminhoneiros teriam é de mudar de atividade, porque não há demanda para seus serviços, mas eles preferem ficar numa categoria que tem uma capacidade forte de defesa de seus interesses.” Essa batalha entre grupos de pressão e o poder público dá um sinal do que será o próximo governo. “Quem sair vencedor do pleito terá um governo fraco, manipulado pelas corporações e com um Congresso que às vezes coopera, mas às vezes chantageia”, diz Lamounier na entrevista a seguir.

Qual é sua avaliação sobre a greve dos caminhoneiros?

No Brasil, as greves desse vulto são empreendidas não por grupos ou partidos políticos, mas por setores sociais. Estou cada vez mais convencido de que entender o país em termos ideológicos de esquerda ou de direita é perda de tempo. O Brasil é um país refém do corporativismo, com grupos de interesse que se organizam para exigir recursos públicos. Esses são os atores reais da política. Dois terços dos gastos públicos vão para os 20% mais ricos, para as corporações.

Qual o resultado desse corporativismo para o país? 

Um país assim é inviável. Os pequenos caminhoneiros, por exemplo, teriam de mudar de atividade. O festival de financiamento para a compra de veículos no governo Dilma Rousseff inviabilizou esse negócio por enquanto. Esse cidadão foi ao BNDES obter crédito para comprar um caminhão para transportar uma carga que não seria produzida. Mas aí  entra o corporativismo: os caminhoneiros estão num grupo com capacidade de defe-sa, então eles preferem ficar nele a procurar outro.

Qual é a capacidade de organização desses grupos?

O governo foi submetido a uma chantagem. A tática usada pelos caminhoneiros é chamada na literatura política de anarcossindicalismo, que é levar a situação a um caos de tal maneira que o governo cede. O governo tem de abrir o olho: é possível convocar um movimento desse tamanho por aplicativos. No passado, era necessário um trabalho de panfletagem que durava até 20 dias. O corporativismo sai dessa situação multiplicado por 1 000. Daqui para a frente, o jogo mudou completamente.

Parte da população apoiou o movimento. O que isso diz sobre a sociedade brasileira?

Nossa sociedade tem uma veia populista, se quiser chamar assim. Ela quer tudo mais barato, mas com menos impostos. A origem disso vem da ideia de que o Estado pode distribuir o que quiser e é uma fonte de benefícios. Outro traço disso é achar que o presidente, por ostentar esse título, é forte e consegue resolver sozinho os problemas do país, um ranço do caudilhismo [as lideranças políticas carismáticas] na América Latina.

A Petrobras é estatal e tem o monopólio do refino. É um traço de nosso populismo?

A origem está na década de 50, no conceito de empresa estratégica nacional, que não faz sentido. Por que uma empresa privada não vai querer vender o óleo explorado no país para os brasileiros? Ela existe para vender. Tenho mais receio das empreiteiras, porque ninguém sabe quanto custa uma estrada, e isso pode levar a um cartel e à situação inacreditável que tivemos no país da Lava-Jato.

Como outros países conseguiram superar o corporativismo?

Com um modelo de gestão econômica apropriado e com uma política séria. O melhor exemplo é Margaret Thatcher, na Inglaterra. Ela quebrou o corporativismo negociando de forma dura com os trabalhadores, principalmente os do setor de carvão, que chantageavam o país. Ela deixou a situação chegar ao extremo. Se tivéssemos um pouco de senso, enfrentaríamos também nossas corporações.

De que maneira esse episódio da greve pode influenciar a corrida eleitoral?

Esta é a eleição mais clandestina de nossa história: não sabemos ainda claramente quais são os candidatos ou as alianças. A única certeza é que o governo que sair dela será fraco, manipulado pelas corporações, com um Congresso que às vezes coopera, mas às vezes chantageia. Se Lula não for can-didato, e Fernando Haddad entrar no jogo, ele não terá apoio do partido, no qual muita gente o classifica como tucano. Bolsonaro escolheu um economista ultraliberal, e um deles durará pouco. Já Ciro Gomes vem de um partido pequeno, o PDT, e teria dificuldade em lidar com o Congresso. O candidato pode ter mais de 50% no segundo turno, mas não força política. Além disso, temos uma pauta de reformas ardida. Acho que o Brasil vai passar por um período difícil.

Qual o resultado disso tudo para o Brasil?

Com esses valores e essa organização política, vamos ser um país pobre durante muito tempo. O Brasil tem uma renda de 10 000 dólares per capita e, para dobrar, precisa crescer 3% ao ano, em média, pelos próximos 23 anos para chegar ao produto per capita de Portugal hoje. Então, o país tem de fazer as reformas dolorosas, mas rapidamente. Ele tem de pegar no tranco.

A ELETROBRAS DE VOLTA AO JOGO POLÍTICO

Ferreira: ele reconhece que os projetos para mudar a Eletrobras são de difícil aprovação | Germano Lüders

As viagens a Brasília de Wilson Ferreira Júnior, presidente da estatal Eletrobras, têm se tornado cada vez mais frequentes. Uma vez por semana, o executivo vai à capital para se encontrar com parlamentares. “O que precisa ser feito na Eletrobras agora depende da política”, diz. Prestes a completar dois anos à frente da problemática companhia de energia elétrica, Ferreira mudou a governança da Eletrobras para diminuir a interferência de políticos. Criou, por exemplo, comissões internas responsáveis por aprovar a contratação e a promoção de executivos. Também conseguiu reduzir a relação entre a dívida e a geração de caixa de oito para menos de quatro vezes e cortou 20% dos custos da companhia. Para a melhoria continuar, porém, a ajuda do Congresso é fundamental. Há três projetos de lei relacionados à Eletrobras tramitando em Brasília. Um deles trata da privatização de seis distribuidoras controladas pela estatal, que, em 2017, geraram juntas um prejuízo de 4 bilhões de reais. Para conseguir vendê-las, e estancar a sangria, a Eletrobras precisa do aval dos parlamentares. “O problema está em políticos locais que costumam indicar profissionais para essas empresas e não querem perder isso. É difícil que essa privatização saia”, afirma Elena Landau, ex-presidente do conselho de administração da Eletrobras. A venda se tornou ainda mais complicada depois de o Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro determinar a suspensão do processo de privatização no dia 5 de junho. A decisão atendeu a um pedido do Coletivo Nacional dos Eletricitários, que questiona o impacto de uma venda nos contratos atuais das empresas. A Eletrobras tem até 90 dias para apresentar um estudo sobre os possíveis efeitos.

O segundo projeto do qual a Eletrobras depende é o que prevê reformas no setor de energia elétrica e, com isso, a liberação de 14 de suas usinas da obrigação de vender cotas de energia por preços mais baixos para algumas distribuidoras — compromisso assumido em 2011, o primeiro ano do governo Dilma -Rousseff. O terceiro e mais emblemático projeto de lei é o da privatização da própria holding Eletrobras, contestada não apenas por congressistas mas também por sindicatos. O projeto prevê que a privatização seja executada via aumento de capital, do qual a União não poderia participar. Assim, sua fatia na empresa seria diluí-da. Com isso, a Eletrobras conseguiria se capitalizar para realizar investimentos. “Reconheço que é difícil, mas não é impossível tirar esses projetos do papel”, afirma Ferreira, quando questionado sobre a possibilidade de aprovar tudo ainda no governo Michel Temer. Analistas, investidores e especialistas do setor discordam: para eles, se a Eletrobras conseguir vender suas distribuidoras, já será um grande avanço. Até o governo já deu sinais de abandono da agenda. No dia 22 de maio, o Ministério do Planejamento retirou do Orçamento de 2018 a previsão de receita com a privatização da Eletrobras, de 12 bilhões de reais, por uma questão de “prudência”. De lá para cá, as ações da estatal acumulam perdas de 16%. “As melhorias feitas por Wilson Ferreira são importantes, mas insuficientes para dar um futuro sustentável à companhia”, diz Alexandre Montes, analista da consultoria Lopes Filho. A luta vai continuar.

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