A expectativa por queda da Selic acontece, segundo o governo, porque o Brasil superou uma administração obscurantista. Será mesmo? (MirageC/Getty Images)
Colunista
Publicado em 25 de maio de 2023 às 06h00.
Hoje vou contar uma história. Talvez haja um exagero aqui, outro ali, mas a essência é verdadeira.
Tínhamos jantado cedo por causa dos filhos pequenos. Saímos em direção ao manobrista no meio daquele caos da Rua Ferreira de Araújo, no bairro paulistano de Pinheiros, onde é difícil calcular se há mais restaurantes, valets, carros ou petlovers. Desviando da micareta em plena sexta à noite, fui até o manobrista. Enquanto isso, um carro preto estacionou de esguio, 45 graus, e um senhor bem vestido, acompanhado de uma senhora elegante, saiu do automóvel. Ele também tentava se comunicar com o manobrista.
Notei que o educado senhor ainda tentava se aproximar da famigerada retirada do tíquete, para a posterior cobrança de 50 reais em troca de uma baliza malfeita na própria rua. Depois de alguns minutos ali sem solução, fui tomado por uma atitude espontânea, com a voz saindo mais alta do que eu gostaria: “Alguém pode ajudar o professor Pérsio Arida, por favor? Este homem é um patrimônio brasileiro…” Numa autocensura súbita, lembrei de James Hillman: “Nós somos vividos por poderes que fingimos compreender”. Certas paixões e admirações se manifestam sozinhas.
Nunca tive aula com Pérsio Arida, mas sempre o considerei um grande professor, desde que li o artigo A História do Pensamento Econômico como Teoria e Retórica. O texto foi escrito em 1983 e, para mim, é o melhor artigo na ciência econômica já publicado por um brasileiro. Além de erudição sem precedentes, o paper traz um magnífico insight, que viria a ser precursor, junto com os escritos de Deirdre McCloskey, da importância da retórica na economia.
Só em 2019 Robert Shiller, Prêmio Nobel de Economia, veio a escrever o best-seller Narrative Economics. Nassim Taleb também trouxe argumentação semelhante com a ideia da “falácia da narrativa”, uma historinha crível muitas vezes inventada num desencadeamento causal verossímil para explicar um fenômeno muitas vezes aleatório.
Numa argumentação bem-feita depois de profunda investigação histórica, Pérsio conclui que, ao longo da história, os embates dialéticos na economia não foram definidos por superação positiva. Ou seja, não venceu a teoria ou a corrente melhor ou mais bem fundamentada, mas, sim, aquelas com as melhores regras de retórica. Em linguagem mais de rua, quem ganha a discussão não é o melhor argumento; vence quem é mais eloquente.
Assim como no capítulo da série Succession em que o candidato perdedor das eleições presidenciais americanas está mais preocupado com a narrativa de sua derrota, tudo parece estar ainda mais condenado à retórica agora.
Para nossos fins, estamos neste exato momento sob a persuasiva ideia de “o Brasil voltou”. O país tenta retomar algum protagonismo em reuniões supranacionais e acordos internacionais, além de, talvez com alguma mania de grandeza, se declarar como potencial mediador nas negociações de paz entre Rússia e Ucrânia.
Em níveis menos sonháticos e mais tangíveis, voltamos a fazer parte das discussões de comitês de alocação global de recursos. O dólar veio abaixo de 4,90 reais, nosso principal índice de ações saiu de 102.000 para 109.000 pontos, e o juro real de longo prazo caiu abaixo de 6% pela primeira vez desde novembro.
Por trás do movimento, estão a inflação cadente no mundo e uma maior confiança na trajetória fiscal brasileira — por mais que o novo arcabouço passe longe do ideal, ele evita trajetória explosiva e um teto de gastos com inclinação, como resumiu meu amigo Tony Volpon. Evitamos o cenário de cauda, desviamos da Argentina e esperamos por um maior controle anos à frente.
A soma alimenta a expectativa por queda da Selic. E isso muda muita coisa, porque está no epicentro dos ciclos econômicos e dos mercados. O governo tenta atribuir a melhora a si. A narrativa é de que o Brasil teria voltado pela superação de uma administração obscurantista e por um Estado que tenta tomar para si a indução do desenvolvimento. Será mesmo?
Parece importar mais a retórica do que a realidade factual. Já escolhemos pelo menos três inimigos públicos sucessivos: o mercado, o BC, a privatização da Eletrobras. Agora, Gabriel Galípolo, o discípulo desenvolvimentista de Belluzzo, deve se tornar diretor do Banco Central. A Selic tende a cair no segundo semestre. Bingo! Temos a história já contada: “Foi só Galípolo entrar para conseguirmos abaixar os juros!” Incorremos, assim, na falácia post hoc, propter hoc. Sequenciamento temporal não implica causalidade. A Selic vai cair porque as condições cíclicas e os fundamentos materiais permitem.
Esclarecimento: por mais críticos que possamos ser à nomeação de um desenvolvimentista clássico à diretoria de política monetária do BC, tipicamente ocupada por um ortodoxo, não acho a nomeação de Galípolo de todo ruim. O BC tem cultura muito forte, de tal modo que a instituição sobrepuja comportamentos e inclinações pessoais. Além disso, uma forma típica de abrandar preconceitos se dá por meio da aproximação entre os diferentes.
Dinâmica semelhante contornou a mudança da política de preços da Petrobras. Seja lá qual fosse o regime, a queda do petróleo e a apreciação do câmbio justificavam combustíveis mais baratos. Fez-se um alarde danado contra o PPI, “em prol dos interesses do capital internacional”, para adotar uma política que, a princípio, acabou bem-recebida pelo próprio mercado de capitais, com alta subsequente das ações da Petrobras.
A realidade se impõe, bem como a aritmética elementar das contas públicas. Comemoramos em 2023 os 300 anos do nascimento de Adam Smith. Infelizmente, nem todo mundo parece ter lido A Riqueza das Nações.
Como citou Eduardo Giannetti em artigo recente, “sua principal contribuição (…) foi mostrar em detalhes como a interação das atividades de um sem-número de indivíduos e empresas, cada qual buscando apenas defender o que acredita ser o seu próprio interesse em um ambiente competitivo, conduz à formação de um sistema governado por mecanismos de autocorreção, capaz de garantir, por meio dos sinais de preço, uma alocação eficiente dos recursos produtivos e o aumento da riqueza social”.
Talvez o Brasil tenha mesmo voltado, mas não por causa da maior intervenção do Estado na economia, e sim apesar dela.