Revista Exame

O bê-á-bá para pais e mães

Para diminuir a defasagem educacional entre crianças ricas e pobres, países da América Latina lançam programas focados nos primeiros anos de vida. O alvo são os pais

Atendimento no Rio Grande do Sul: um caso raro de programa no Brasil (Tamires Kopp/EXAME)

Atendimento no Rio Grande do Sul: um caso raro de programa no Brasil (Tamires Kopp/EXAME)

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Da Redação

Publicado em 27 de agosto de 2014 às 18h00.

São Paulo - Um desavisado que escutar o que acontece no Centro de Saúde Familiar da cidade chilena de Los Sauces, uma das mais carentes do país, a 600 quilômetros de Santiago, pode achar que tudo não passa de brincadeira de criança.

Um grupo de pais e mães de baixa renda assiste a um vídeo em que adultos mostram a crianças ainda em fraldas figuras em livros infantis, conversam com elas sobre as atividades do dia a dia e inventam jogos para entretê-las. Ao final do vídeo, uma monitora abre o debate perguntando aos presentes o que acharam do que viram.

Essa atividade é parte do programa do governo chileno criado em 2010, com o objetivo de diminuir a violência contra crianças e ensinar os adultos a brincar com seus filhos. Pela contabilidade oficial, mais de 50 000 pais já participaram de workshops que incluem seis sessões de 2 horas.

Cerca de 85 000 crianças de zero a 5 anos foram beneficiadas, quase 10% do total nessa faixa de idade. No Peru, há um programa com o mesmo objetivo, mas que funciona de forma diferente. São os funcionários do governo que se deslocam até a casa das famílias pobres. Ao todo, 102 000 crianças fazem parte do projeto, criado em 2012. 

A base desses programas é a certeza de que a brincadeira com os pais na primeira infância é algo muito sério no desenvolvimento das crianças. É brincando que elas desenvolvem a linguagem, a coordenação motora, a criatividade e a capacidade de cooperar e interagir socialmente.

Em famílias de baixa renda é mais comum encontrar pais que, por desinformação, não conversam nem interagem com seus filhos pequenos. Pesquisas realizadas nos Estados Unidos confirmam que os filhos dos americanos mais ricos ouvem por hora o dobro de palavras que as crianças pobres.

Sem os estímulos adequados até os 3 anos, essas crianças chegam em desvantagem à idade escolar e, não raro, sofrem por isso o resto da vida. 

É esse desnível logo no início da trajetória escolar que o Chile e o Peru estão tentando eliminar. Nos Estados Unidos, pesquisas apontam que alunos cujo pai ou mãe terminaram a faculdade se saem muito melhor nos vestibulares. Em países em desenvolvimento, essa diferença é ainda maior.

No Brasil é notória a dificuldade de os alunos pobres se alfabetizarem no tempo certo. Só 65% do total conclui o terceiro ano de educação fundamental na idade correta.

“Os estímulos cognitivos na fase certa têm efeitos muito grandes e duradouros”, diz o economista brasileiro Flávio Cunha, professor da Universidade da Pensilvânia que trabalhou vários anos com James Heckman, ganhador do Nobel em 2000 e responsável pelos estudos que provaram que cuidados nos primeiros anos de vida trazem benefícios econômicos de longo prazo.

Heckman analisou a trajetória de crianças pobres americanas que passaram a receber visitas domiciliares a partir dos anos 60. Ao reunir esses dados, ele foi categórico: a atenção dos pais na primeira infância diminui os riscos de as crianças, ao crescer, engravidarem de forma indesejada, cometerem crimes e usarem drogas.

Heckman também percebeu efeitos no mercado de trabalho. Quem teve um desenvolvimento adequado na infância permanece empregado por mais tempo. Um programa na Jamaica, um dos mais estudados pelos economistas, mostrou resultados semelhantes.

Os participantes que receberam visitas de monitores quando criança, há 20 anos, atualmente ganham salários 25% maiores do que pessoas de famílias similares que não tiveram atendimento.

“Infelizmente, ainda há poucos exemplos de iniciativas como essa em larga escala no mundo”, diz a médica britânica Sally McGregor, professora de saúde infantil na University College London e criadora do programa jamaicano. Atualmente, Sally está empenhada na implementação de um programa do gênero na Colômbia. 

Nessa corrida, o Brasil está infelizmente atrasado. O único programa governamental digno de nota é o que atende aproximadamente 60 000 crianças de 268 municípios no Rio Grande do Sul. O Ministério da Saúde começou, em abril, a treinar monitores para dar início a um projeto-piloto em Fortaleza e outro na cidade de São Paulo antes do final do ano.

Com financiamento do Banco Mundial, Recife também deve lançar uma iniciativa semelhante até dezembro. “Nós estamos jogando tempo fora. O país precisa de um programa nacional para a primeira infância”, afirma Naer­cio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas da ­escola de negócios Insper, em São Paulo, e um dos maiores especialistas brasileiros no assunto.

Uma crítica que frequentemente se faz a programas de educação na primeira infância — e que pode ser útil para o Brasil no momento em que dá os primeiros passos nessa direção — é a falta de avaliações periódicas sobre a eficácia de suas estratégias.

Governos de diferentes colorações ideológicas gostam de enfatizar quanto gastam com educação, mas poucos se dedicam a fazer correções de rumo, que são sempre necessárias.

Muita calma nessa hora

Atrair pais pobres para centros de saúde familiar ou visitá-los em casa e falar sobre a educação de seus filhos não é uma tarefa singela, como mostra o exemplo chileno. Lá tomou-se o cuidado de não ferir a suscetibilidade dos pais já na escolha do nome do programa: Ninguém É Perfeito. Durante todo o treinamento, os monitores são orientados a não fazer críticas.

“Nas reu­niões, estimulamos os pais a compartilhar os problemas que têm em casa e como os solucionam. Nunca os recriminamos. Nosso objetivo é reforçar as melhores respostas e fazer com que eles aprendam com a troca de expe­riên­cias”, diz o monitor René Santana, que há dois anos trabalha no Centro de Saúde da Família da cidade de Los Sauces, onde 35% da população está abaixo da linha de pobreza. 

No Chile e no Peru, a atenção é dada às famílias que estão na base da pirâmide social, uma decisão que tem o apoio de quem está envolvido em pesquisas de ponta nessa área.

“Faz todo o sentido focar o investimento nos segmentos da população com maior propensão a obter os maiores ganhos”, diz o economista brasileiro Rodrigo Pinto, pesquisador da Universidade de Chicago.

O argumento é inatacável: a educação é a maior arma contra a desigualdade de renda e, enquanto os filhos dos mais pobres continuarem em desvantagem já na largada da vida escolar, as oportunidades de aumentar a mobilidade social serão mais baixas. Essa é uma lição que mais governos precisam entender. Inclusive, claro, o nosso.

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