Revista Exame

Julian Assange, o australiano messiânico

Julian Assange, do WikiLeaks, quer simplesmente mudar o mundo. Poderia ser apenas um louco a mais, mas...

Julian Assange: criador, editor e porta-voz do WikiLeaks, site que tem por objetivo divulgar documentos secretos de governos, organizações e empresas (Dan Kitwood/Getty Images)

Julian Assange: criador, editor e porta-voz do WikiLeaks, site que tem por objetivo divulgar documentos secretos de governos, organizações e empresas (Dan Kitwood/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 8 de abril de 2011 às 17h54.

"Os gênios são como as tempestades: vão contra o vento; aterrorizam a humanidade; purificam o ar”, escreveu o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard. Julian Paul Assange, editor do WikiLeaks, o site que revolucionou o jornalismo investigativo com a divulgação de vazamentos (leaks, em inglês), preenche pelo menos dois dos três requisitos de Kierkegaard. Talvez Assange, australiano de Queensland, de 39 anos, hacker de formação e nômade por opção, não purifique o ar — mas ele com certeza vai contra o vento e aterroriza a humanidade. (Ou pelo menos a parte mais poderosa dela: governos — sobretudo o americano — e o chamado big business.) “Tenho prazer em esmagar canalhas”, diz Assange, em sua voz pausada e monocordiamente grave.

Neste final de 2010, Assange tem alternado momentos de esplendor e de miséria. O esplendor veio com o vazamento, pelo WikiLeaks, de 250 000 documentos da diplomacia americana ao redor do mundo. Assange e o WikiLeaks têm estado nas primeiras páginas da mídia em virtualmente todos os países relevantes, dado o alcance planetário do material. São tele gramas confidenciais de múltiplas embaixadas americanas dirigidos ao Departamento de Estado, em Washington. Neles se fazem avaliações políticas e pessoais que mostram a opinião — frequentemente pouco elevada — que os americanos têm para além deles mesmos.

A miséria de Assange, nestes dias voluptuosos para o WikiLeaks, veio de um país que ele, paradoxalmente, sempre encarou como um santuário: a liberal e permissiva Suécia. Duas mulheres suecas acusaram Assange, numa passagem pelo país há poucos meses, de violência sexual. Uma delas diz ter sido estuprada. A outra afirma que foi molestada. Assange sumiu. Nas raras vezes em que tratou do assunto, disse que era uma retaliação dos americanos. Como não prestou esclarecimentos à Justiça, a Suécia expediu uma ordem internacional de captura.

Tecnicamente, Assange — de longe a maior estrela do jornalismo mundial, hoje — é um foragido. Um homem procurado. No começo de dezembro, especulava-se que ele estivesse na Inglaterra. Por Skype, de lugares secretos, ele concedeu algumas raras entrevistas. Numa delas, à revista Time, que o colocou na capa de sua mais recente edição, ele sugeriu petulantemente que a secretária de Estado Hillary Clinton renunciasse. Isso porque alguns documentos vazados sugeriam que os Estados Unidos estavam praticando espionagem na ONU. (Nada indica que Hillary irá atender a sugestão de Assange.)


Os documentos diplomáticos vazados estão sendo ainda processados. Desde já, o que se pode dizer é que, no conjunto, eles constituem uma aula magna de história moderna. Lendo-os, você fica sabendo, por exemplo, que a China se cansou de fazer o papel de babá da Coreia do Norte, à qual se refere como “criança mimada”. Os chineses gostariam que as duas Coreias se unificassem, sob o comando de Seul. Você também aprende que, na visão americana, a Rússia é um país em que a administração oficial e o crime organizado se confundem. Você é inteirado, igualmente, de que os sauditas gostariam que os americanos bombardeassem o Irã.

Você também conhece a opinião de Washington sobre líderes mundiais: Angela Merkel, chanceler alemã, é “avessa a riscos”. Silvio Berlusconi, premiê italiano, é “irresponsável, vaidoso e ineficiente”. (Um integrante do gabinete de Berlusconi disse que o vazamento é o “11 de Setembro da diplomacia internacional”. Assange, segundo ele, “quer destruir o mundo”.) Algumas revelações são particularmente embaraçosas. Uma mensagem mostra que o veterano presidente do Banco Central britânico, Mervyn King, considera o premiê David Cameron, de 42 anos, “inexperiente”, bem como seu braço direito, George Osborne, chanceler (o equivalente a ministro da Economia), também na faixa dos 40.

Pela primeira vez, numa honraria duvidosa, o Brasil aparece no mapa dos vazamentos do WikiLeaks. Um documento da embaixada americana diz que o país trata da proteção da Amazônia com sua “tradicional paranoia”. O Itamaraty é visto — não sem alguma razão — como um reduto de antiamericanismo. Mas o ministro da Defesa, Nelson Jobim, é um “aliado”. É provável que o tema permaneça com destaque na mídia internacional por mais algum tempo, à medida que a maçaroca de 250 000 mensagens for sendo digerida. Em relação ao Brasil, serão particularmente interessantes as avaliações que eventualmente tiverem sido feitas sobre a presidente eleita, Dilma Rousseff.

O cerco a Assange vai se intensificando. Num programa de televisão no Canadá, um exassessor do governo disse que gostaria de vê-lo “assassinado”. A Amazon.com — dona de um dos servidores utilizados pelo WikiLeaks — retirou-o do ar. Numa entrevista online concedida aos leitores do Guardian — um dos parceiros impressos do WikiLeaks —, Assange afirmou que a escolha da Amazon.com como um dos servidores fora deliberada. Era uma forma de testar a liberdade de expressão americana, “deficitária”.


Aos leitores do Guardian, ele fez um elogio retumbante ao soldado americano Bradley Manning, preso sob a acusação de ter sido o responsável pelo vazamento não só destes papéis mas também dos relativos às guerras no Iraque e no Afeganistão. “Procuramos sempre destacar a fonte, que sempre corre o risco em toda revelação jornalística, e sem cujo esforço os jornalistas não seriam nada”, disse Assange. “Se é verdade, como alega o Pentágono, que Manning está por trás de alguns de nossos furos, então ele é um herói sem paralelo.” É previsível que Manning sofra uma punição exemplar caso condenado pelos vazamentos. Algumas pessoas falam em pena de morte, por “alta traição”.

Assange claramente não gosta dos Estados Unidos, para ele um “país militarista” que “ameaça a democracia”. É certo que Washington o abomina. Mas a sociedade americana parece dividida em relação a ele e ao WikiLeaks. Na votação popular da revista Time para o título de Pessoa do Ano, ele aparecia, no início de dezembro, na segunda colocação. Um editorial do jornal do prestigioso MIT afirmava, no mesmo período, que o WikiLeaks tem feito “bem para o mundo”, em seus quatro anos de existência. A revista Forbes colocou Assange na capa e o declarou “profeta da transparência involuntária”.

O próximo alvo de vazamentos é corporativo. Os bancos, a indústria farmacêutica e as empresas de energia lideram as listas de especulação. Tem-se falado, especificamente, no Bofa, o Bank of America. O falatório foi suficiente para derrubar o valor das ações do Bofa. Messiânico, ares de anjo vingador, Assange afirma que ao punir as “más empresas” irá, automaticamente, premiar as “boas”.

Ele age, compreensivelmente, como um paranoico. Troca de celulares “como quem troca de roupa”, segundo um perfil do The New York Times. Não usa cartão de crédito. Paga tudo com dinheiro. Usa nomes falsos nos hotéis em que se hospeda. É desconfiado. Muitas vezes, diante de uma pergunta de um jornalista, responde com outra: “Por que você quer saber isso?” Um jornalista inglês que almoçou com ele num restaurante etíope de Londres antes da encrenca sueca embra que seu tom de voz era um quase sussurro, para que eventuais agentes americanos não ouvissem nada.

Você não pode vacilar quando sua missão, como é o caso desse australiano que leva uma vida de filme inverossímil de espionagem, é simplesmente “mudar o mundo”. Você pode admirar ou detestar Assange, mas é inegável que, para o bem ou para o mal, ele vem trabalhando consistentemente — e com extraordinária repercussão — para cumprir a missão portentosa que se outorgou.

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