Revista Exame

Cassino, Loterj e portarias: as articulações — e preocupações — do mercado bilionário das bets

As onipresentes casas de apostas se preparam para um novo cenário após a regulação prevista para os próximos meses. Sobram dúvidas num mercado de 22 milhões de clientes

Marcos Sabiá, CEO do Galera Bet: pastor evangélico, ele vê espaço  para um mercado “calcado na ética” (Leandro Fonseca/Exame)

Marcos Sabiá, CEO do Galera Bet: pastor evangélico, ele vê espaço para um mercado “calcado na ética” (Leandro Fonseca/Exame)

André Martins
André Martins

Repórter de Brasil e Economia

Publicado em 23 de maio de 2024 às 06h00.

Quem entrava pelo acesso de neon da BIS Sigma 2024, maior feira de casas de apostas da América Latina, poderia imaginar que estivesse em um cassino de Las Vegas. Robôs dançarinos, ex-jogadores de futebol, influenciadores, roletas, mesas de pôquer e desafios dos mais diversos simulavam na vida real os milhares de jogos disponíveis nas casas de apostas online que movimentam bilhões no Brasil — e no mundo. Para as “bets”, como são conhecidas as empresas de apostas online, mostrar que tudo segue às mil maravilhas é parte importante da narrativa. Enquanto isso, longe das luzes de neon, uma intensa articulação toma conta dos bastidores.

Jogo do Brasileirão: expectativa de que a regulamentação leve a uma redução no número de empresas em atuação no país (Wagner Meier/Getty Images)

Em abril, o primeiro passo do governo rumo à legalização do jogo online no Brasil foi dado. Foi quando começaram a ser divulgadas as primeiras portarias do Ministério da Fazenda sobre o tema. A primeira delas definiu a proibição de uso de cartão de crédito para apostas e a vedação de oferta de bônus de entrada — valor extra para o apostador no primeiro acesso ao site.

No início de maio, a portaria referente à infraestrutura de tecnologia dos sistemas de apostas foi publicada e tratou de questões técnicas sobre os jogos. São esperadas ainda para maio as portarias que vão definir quais tipos de jogos online serão liberados para operação, num debate que inclui uma infinidade de apostas nos chamados cassinos online, e o requerimento de autorização de operação.

As normas completas para as bets devem ser publicadas até o fim de julho, e o credenciamento final é esperado pelas empresas entre setembro e outubro. A partir daí, elas começam a pagar impostos e estarão liberadas para funcionar oficialmente — até hoje, mantêm suas operações no exterior, embora sejam onipresentes no mercado publicitário e na rotina de milhões de brasileiros.

Cerca de 22 milhões de brasileiros fizeram apostas esportivas pelo menos uma vez em 2023, segundo o Raio X do Investidor Brasileiro, da -Anbima, divulgado em abril. O BNL Data, portal que realiza análise do mercado de apostas, mostra que no ano passado as casas movimentaram 120 bilhões de reais, alta de 71% na comparação com estimativas de 2020.

A modalidade, liberada para funcionamento em 2018 pelo então governo Michel Temer (MDB), ficou sem regulamentação por quatro anos, o que resultou em uma “zona cinzenta”. Mais de 1.500 sites operam no Brasil por meio de licenças de paí-ses como Curaçao, Gibraltar, Malta e Reino Unido.

Com a necessidade de regulamentação, o Ministério da Fazenda de Fernando Haddad uniu o útil ao agradável. Com a meta de diminuir o déficit fiscal do país, o governo federal viu a organização do setor como uma oportunidade de aumentar a arrecadação.

São esperados 10 bilhões de reais por ano a mais nos cofres públicos com o recolhimento de 15% sobre o GGR — a receita das casas após o pagamento dos prêmios aos apostadores — e o imposto de renda de 15% em cima dos ganhos do apostador. Segundo estudo da International Betting Integrity Association (Ibia) e da consultoria inglesa H2 Gambling Capital, o valor de arrecadação em 2028 pode atingir 15 bilhões de reais em um mercado regulado.

Marcos Sabiá, CEO do Galera Bet, atua no diálogo com o governo desde o início das negociações, em meados de fevereiro de 2023. Advogado de formação, com passagem de quase 20 anos pelo antigo grupo Odebrecht, Sabiá é pastor evangélico e vê a regulamentação como o caminho para estabelecer um mercado calcado na ética.

“Existe uma grande ansiedade sobre o avanço das portarias para que tenhamos um mercado regulado o mais rápido possível”, diz. “Queremos separar as empresas que estão desejosas de uma regulamentação e outro grupo que aproveita o ‘canto dos cisnes’ para fazer seus últimos movimentos pensando em operar à margem do mercado legal ”, afirma.

Darwin Filho, CEO da Esporte da Sorte: bet criada em Pernambuco já tem três empresas e 800 funcionários (Esporte da Sorte/Divulgação)

Preocupações das Bets

Ainda há pontos em aberto. O assunto em que as empresas concentram esforços no momento é o debate com a Fazenda sobre quais jogos online serão permitidos. O texto da lei define que as casas podem explorar apostas de quota fixa, ou seja, o apostador precisa saber qual valor ele pode ganhar ao fazer a sua fezinha. Hoje, existem as apostas esportivas em eventos reais e as apostas em cassinos online, que contemplam desde caça-níqueis até apostas em bingo, cartas, roleta e crash games — jogos que envolvem multiplicadores.

Os mais conhecidos são o “jogo do tigrinho”, em que para ganhar os apostadores devem alinhar três símbolos idênticos em três linhas no estilo caça-níquel, e o do “aviãozinho”, em que o jogador aposta um valor e assiste a um avião em decolagem: quanto mais alto ele for, maior será o prêmio; porém, é preciso pressionar o botão de saída antes que a palavra “crashed” surja na tela. Se não conseguir, o apostador perde o dinheiro apostado.

As casas temem que esses jogos, que são quase 70% da receita das bets, tenham sua exploração limitada. Ou seja, o debate mais visível é sobre as apostas que envolvem jogos de futebol, mas elas representam apenas 30% desse mercado bilionário. As casas afirmam que a principal porta de entrada nas bets são as apostas em esportes reais, mas que o grosso da receita vem, principalmente, dos jogos eletrônicos.

“Sabemos que existe uma interrogação na Fazenda sobre os cassinos online. O nosso papel é mostrar enquanto classe o que funciona no mundo”, explica Darwin Filho, CEO da Esporte da Sorte, casa de apostas brasileira com sede em Pernambuco. Darwin começou a Esporte da Sorte em 2018, vendo a oportunidade de trazer ao Brasil o mercado de apostas esportivas que faturava alto na Europa.

A criação do Pix, a mudança de hábitos de consumo e a digitalização com a pandemia foram um divisor de águas. Hoje, a Esporte da Sorte se transformou em um grupo, com outras duas empresas e mais de 800 funcionários. Questionado pela EXAME sobre as demandas das bets e o processo de regulamentação, o Ministério da Fazenda afirmou por meio de nota que mantém reuniões de trabalho regulares com associações de operadoras e tem escutado suas sugestões.

Reino Unido: país é referência na regulamentação de jogos online e sede de algumas das maiores empresas do mundo (Alexander Spatari/Getty Images)

Enquanto a decisão não vem, as indefinições ganham corpo. Um exemplo concreto está no Rio de Janeiro. A Loterj, autarquia de loterias do governo do Rio, oferece por 5 milhões de reais um credenciamento a casas de apostas esportivas online. Na prática, as bets que se credenciam no Rio podem atuar em todo o território nacional, o que a Fazenda alega ser proibido por entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF). Das grandes casas, apenas a PixBet, patrocinadora master do Flamengo, se credenciou na Loterj.

A preocupação da Fazenda é que a situação gere uma guerra fiscal entre os estados e desmonte a regulamentação preparada por quase dois anos pelo governo. Em março, a Secretaria de Apostas Esportivas notificou o governo do Rio para barrar esse credenciamento. Procurada, a Loterj afirma que “atua em total legalidade e não está se dispondo a nenhuma aventura jurídica”, e rebateu a acusação de que estaria realizando credenciamentos ilegais. “A ilegalidade está nas bets, que acusam a Loterj, mas operam em ambientes sem qualquer controle ou restrição, representando um desafio significativo para as autoridades fiscais e regulatórias do país”, escreve em nota. A Fazenda afirma que espera que não seja necessária a judicialização do tema.

O dia seguinte à regulamentação

O principal efeito esperado pelas maiores empresas do setor pós-regulamentação é a diminuição do número de bets. Nem todos os sites e grupos terão capacidade financeira para seguir as regras do governo ou pagar o valor de outorga de 30 milhões de reais. A estimativa dos grandes operadores é que restem entre 50 e 100 bets em um mercado legal. Com cada licença podendo explorar três marcas, o Brasil deve ter no final desse processo até 300 sites de apostas, saindo dos 1.500 mapeados em 2023.

Na avaliação de André Gelfi, presidente do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR) e CEO do grupo Betsson, os ajustes regulatórios vão qualificar o mercado, pois vai possibilitar a chegada de grandes players internacionais, além de acelerar fusões e aquisições. “O Brasil tem muito potencial ainda inexplorado”, afirma Gelfi.

Um efeito cascata da regulamentação e maturidade das bets deve ser a chegada de bancos tradicionais ao setor. Hoje, plataformas de meios de pagamentos, como a Pay4Fun, que atende 430 bets, devem sofrer a concorrência de instituições financeiras tradicionais do Brasil. Executivos das principais casas afirmam que as conversas já começaram. Outro reflexo esperado é um combate mais efetivo a crimes como lavagem de dinheiro por meio das apostas e manipulações esportivas, além da ludopatia, o vício em jogos.

Hoje, os líderes de preferência dos apostadores são a tradicional Bet365, plataforma britânica no mercado desde 2000, e a Betano, criada em 2013 na Grécia e patrocinadora das principais competições da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Segundo levantamento da EXAME na plataforma Google Ads, o volume de pesquisas pelas 14 principais casas de apostas brasileiras somou 570 milhões de visitas no primeiro trimestre de 2024, uma leve queda de 2% na comparação com o mesmo período de 2023.

Para seguir relevante no médio prazo e atrair cada vez mais apostadores, as bets vão precisar se reinventar. Uma das portarias do governo, por exemplo, proibiu a oferta dos chamados bônus de entrada, valor extra liberado após o primeiro depósito. Para esse problema, o Galera Bet aposta no programa de fidelidade.

A empresa tem uma parceria com a CRM bônus, conhecida por popularizar o gift-back no varejo brasileiro, para oferta de cash-back para os apostadores. Um marketing cada vez mais associado ao entretenimento também está nos planos das empresas. “O jogo é para diversão. Não é para ter ganho financeiro. Queremos essa cultura para que o Brasil seja um dos principais mercados do mundo calcado pelo jogo responsável”, diz Sabiá. É uma aposta de bilhões de reais.   


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