Centro de São Paulo em dois momentos de 2020: no auge do fechamento da economia em abril e na reabertura parcial de dezembro (Germano Lüders e Eduardo Frazão/Exame)
Fabiane Stefano
Publicado em 21 de outubro de 2021 às 05h50.
Última atualização em 3 de novembro de 2021 às 10h45.
Na história do capitalismo, poucos eventos tiveram tamanho impacto na economia global como o trazido pela pandemia de covid-19. Guerras e crises financeiras do passado também paralisaram as atividades em maior ou menor grau. Não se tem notícia de um acontecimento que tenha feito governos, empresas e cidadãos em diferentes partes do globo pararem suas atividades simultaneamente, como ocorreu em março de 2020. De forma inédita, o mundo adotou como estratégia o isolamento social para combater o avanço de um vírus desconhecido.
Ao longo de 47 anos, o ranking das MELHORES E MAIORES da EXAME testemunhou os diferentes momentos da economia brasileira. Da hiperinflação dos anos 1980, das seguidas crises dos anos 1990 e dos altos e baixos na economia a partir dos anos 2000, as empresas brasileiras viveram cada uma dessas fases e acabaram sendo um retrato do país que se desenvolveu aos trancos e barrancos. E a pandemia que tirou a vida de 600.000 brasileiros se colocou como um novo desafio para o grupo das 627 maiores empresas do país, que conseguiram se adequar e superar um momento de adversidade singular. Em 2020, as maiores empresas brasileiras faturaram juntas 3,6 trilhões de reais, valor 9,1% maior do que no ano anterior. Quando descontada a inflação do período, o crescimento real das empresas foi de quase 4,5% — isso num ano em que o produto interno bruto (PIB) encolheu 4,1%. O lucro acumulado também surpreendeu: 208 bilhões de reais.
O desempenho dos 18 setores analisados por MELHORES E MAIORES foi desigual. As empresas que atuam na exportação de commodities foram beneficiadas pela demanda chinesa, que após uma retração no início da pandemia voltou a aquecer. Isso fez com que o Brasil registrasse um superávit comercial de 51 bilhões de dólares no ano passado. A desvalorização de 22% do real — a moeda brasileira foi a sexta que mais perdeu valor no ano passado — também contribuiu para ampliar as receitas de setores como o de mineração, que cresceu quase 41% e teve o melhor desempenho na edição deste ano.
O agronegócio também foi beneficiado pelo impacto da demanda por exportações e do dólar valorizado, mas os recordes de produção e produtividade ajudaram — e muito — o desempenho das empresas ligadas ao campo, que ampliaram as receitas em 32%. Em 2020, o país registrou um volume recorde de 245 milhões de toneladas de grãos geradas no campo, elevando a participação do agronegócio no PIB para quase 7%. Mas não foi só isso. As empresas do agronegócio, assim como as do setor de alimentos e bebidas, foram beneficiadas pelas mudanças de comportamento da população durante os períodos de isolamento. Se a alimentação fora de casa caiu drasticamente, as vendas nos supermercados aumentaram quase 10% em 2020. Do mesmo modo, o atacado e varejo e os fabricantes de produtos farmacêuticos e de beleza registraram altas. É fato que os segmentos considerados essenciais absorveram boa parte dos 293 bilhões de reais despejados na economia por meio do auxílio emergencial. A medida que beneficiou 68 milhões de pessoas, concebida para aliviar os efeitos da crise para a população de baixa renda e os trabalhadores informais, foi capaz de ativar uma parte da economia e evitar uma queda maior do PIB em meio à pandemia. Outro setor que conseguiu atravessar a crise sanitária sem grandes percalços foi o imobiliário, cujas empresas de MELHORES E MAIORES cresceram 14%. As obras não pararam em nenhum momento e foi preciso até contratar. A construção civil criou 112.000 novas vagas em 2020, 5% mais em relação ao ano anterior.
Por outro lado, a adoção do isolamento social atingiu de forma impiedosa os segmentos ligados ao setor de serviços, que representa 63% do PIB nacional e 68% dos empregos no país. Com as atividades paralisadas ou sujeitas a duras regras de operação, as empresas dos segmentos de moda e vestuário e de transportes e logística acabaram encolhendo. Os shopping centers, por exemplo, perderam 33% do faturamento no ano que passou. Os hotéis e restaurantes registraram queda de 44% da receita em 2020, um prejuízo acumulado de 274 bilhões de reais. “Houve um deslocamento grande de recursos entre setores na pandemia. Globalmente, 1 trilhão de dólares deixaram de ser gastos no setor de turismo, enquanto 1 trilhão de dólares foram injetados no e-commerce em 2020”, diz Marcel Motta, diretor-geral da consultoria Euromonitor no país. No Brasil, as estimativas apontam um faturamento de 50% a mais no comércio eletrônico em 2020. No primeiro semestre do ano passado, 7,3 milhões de brasileiros compraram online pela primeira vez, segundo um levantamento da Ebit/Nielsen. O pico de compras online aconteceu de 5 de abril a 28 de junho, período que coincide com o auge do isolamento social.
O bom desempenho no conjunto das empresas avaliadas nesta edição diante da pandemia mostra também o aprofundamento da desigualdade entre os grandes grupos e as empresas de menor porte. “No Brasil, as pequenas e microempresas exercem um impacto significativo no PIB, pois movimentam cerca de 27% da economia do país”, diz Samuel Barros, coordenador técnico de MELHORES E MAIORES e pró-reitor de pós-graduação do Ibmec Rio. No momento inicial da pandemia, boa parte das empresas segurou o caixa para enfrentar as incertezas que viriam pela frente — estratégia mais difícil de ser adotada justamente pelas PMEs, que não têm fôlego para sobreviver durante vários meses com receita reduzida. “A dúvida no início da pandemia era se não haveria um movimento de ‘ninguém paga ninguém’. Isso, obviamente, durou uns 15 dias. O que se mostrou ao longo de 2020 foi que as empresas precisavam se aproximar de seus fornecedores para azeitar a cadeia de produção”, afirma João Gumiero, sócio-líder de desenvolvimento de mercado da Deloitte. “Num processo de rápida adequação, as grandes costumam estar muito mais preparadas para responder às crises.”
Outro fator que explica a distância entre as grandes empresas e as demais é que o processo de digitalização dos negócios estava em curso na elite empresarial antes mesmo da pandemia. Muitas companhias já testavam diferentes formatos de home office entre os funcionários e investiam pesado em estratégias de vendas online. “O setor privado é muito heterogêneo. Muitas companhias tiveram dificuldade em migrar para o trabalho remoto porque simplesmente os funcionários ainda usavam computadores desktop nos escritórios. Antes de pensar numa estratégia digital havia empresa correndo para comprar notebook no início da pandemia”, lembra Motta, da Euromonitor. De acordo com o índice de transformação digital da Dell Technologies, 87,5% das empresas no Brasil realizaram alguma iniciativa voltada para a digitalização de seus negócios no ano passado — número superior à média global.
Ainda assim, o setor privado precisou de ajuda para enfrentar o momento. Apenas o Programa Emergencial de Acesso a Crédito (Peac), criado pelo Ministério da Economia, direcionou 154 bilhões de reais em 2020 — 60% desse valor foi para as PMEs — para que as empresas obtivessem financiamentos ou empréstimos por meio da oferta de uma garantia de 80% à instituição financeira dona do crédito solicitado. Um ano após o início da pandemia, o nível de endividamento das empresas no país saltou de 55% do PIB para 61% do PIB, o mais alto em uma década. “O real impacto da pandemia para as empresas, sobretudo as menores, deverá ser medido no prazo de um ano”, diz Barros, do Ibmec.
Se em 2020 as empresas precisaram se adaptar a uma freada brusca na economia causada pela pandemia, agora em 2021 elas interagem com os custos de saída dela. As interrupções na economia global afetaram as cadeias de abastecimento em todos os continentes. Faltam desde microchips até contêineres para transportar a produção pela via marítima. No Brasil, a situação é agravada por uma conjuntura econômica que vem fragilizada anteriormente à covid-19. “Estamos saindo da pandemia, mas agora a população brasileira está diante de uma economia com inflação alta, renda em queda e desemprego persistente”, diz o economista Sérgio Vale, da MB Associados.
A expectativa é que a inflação no Brasil encerre o ano em quase 10%. No momento as projeções para 2022 apontam que o principal indicador de inflação no país, o IPCA, estará próximo de 5%. A taxa de desemprego no Brasil em julho, último dado divulgado pelo IBGE, foi de 13,7%, o que representa uma leve redução em relação aos meses anteriores. O quadro geral, porém, é de um contingente de quase 14 milhões de desempregados e 7,7 milhões de pessoas na condição de subocupação, um recorde na série histórica e que indica recuperação de trabalho de baixa qualidade. Adicione-se ainda uma queda importante na renda dos brasileiros. Um estudo recente da Fundação Getulio Vargas avaliou que a renda individual média do brasileiro, entre informais, desempregados e inativos, está atualmente 9,4% abaixo do nível registrado no final de 2019. Na metade mais pobre da população brasileira, a perda foi ainda mais significativa e houve uma queda de 21,5%.
Todos esses indicadores causam impacto na confiança dos brasileiros no futuro. Um levantamento inédito da empresa de pesquisas de mercado Ipsos Brasil mostra que, pela primeira vez, a pandemia não é a principal fonte de preocupação da população. Se em junho deste ano 59% dos brasileiros apontavam a crise sanitária como o maior problema do país, em outubro esse índice caiu para 36%. Com mais de 100 milhões de pessoas completamente imunizadas e 70% da população com pelo menos uma dose no braço (até o dia 14 de outubro, data de fechamento desta edição), agora são a pobreza e a desigualdade social que mais preocupam a população, com 40%. “O avanço da vacinação no país trouxe alívio e permitiu a reabertura quase completa da economia, mas expôs problemas mais difíceis de serem solucionados individualmente pelo cidadão, como falta de emprego e de oportunidades”, diz Marcos Calliari, presidente da Ipsos Brasil. Outra pesquisa da Ipsos aponta também que o brasileiro, que tradicionalmente aparece como um dos povos mais otimistas do mundo, está menos confiante no futuro. Para 76% dos entrevistados, o país levará dois anos ou mais para se recuperar economicamente dos efeitos da pandemia. “Numa comparação global, o brasileiro foi quem mais perdeu confiança no futuro desde o início da pandemia.”
Tudo isso terá de ser enfrentado pelas empresas brasileiras. “Elas terão de lidar agora com o desafio de crescer no pós-pandemia, sobretudo aquelas que estão sem caixa. Isso ocorre num momento em que a perspectiva de crescimento para 2022 é baixa e os juros seguirão em alta”, diz Vale, da MB Associados. Segundo o boletim Focus, do Banco Central, a expectativa de crescimento do PIB é de 1,5% no próximo ano, após uma expansão prevista para 2021. Sim, a retomada no pós-pandemia não será fácil, mas para as empresas que enfrentaram um dos mais difíceis momentos da história recente do capitalismo e ainda assim não sucumbiram, 2022 significará o começo de um novo — e promissor — capítulo.