Revista Exame

J.R. Guzzo: No Brasil, o indivíduo é inocente até seus crimes prescreverem

Embora as leis brasileiras estabeleçam punições para os crimes, também preveem mil e uma tramoias legais

Lula é conduzido pela Polícia Federal para Curitiba: só um louco para prever quanto tempo o ex-presidente ficará preso  (Suamy Beydoun/Agif/Estadão Conteúdo)

Lula é conduzido pela Polícia Federal para Curitiba: só um louco para prever quanto tempo o ex-presidente ficará preso (Suamy Beydoun/Agif/Estadão Conteúdo)

DR

Da Redação

Publicado em 12 de abril de 2018 às 05h55.

Última atualização em 12 de abril de 2018 às 05h55.

Num país em que existe um negócio chamado “embargo dos embargos”, e em que as camadas mais altas e mais decisivas de nosso sistema judiciário levam perfeitamente a sério uma aberração dessas, só mesmo um louco teria coragem de prever quanto tempo o ex-presidente Lula ficará mesmo na prisão onde se encontra trancafiado no momento. Quinze minutos? Quinze dias? Quinze meses? Ninguém sabe, e ninguém pode saber.

Se isto aqui fosse um país decente, onde as autoridades máximas da Justiça agissem de modo a fazer cumprir as leis e garantir o funcionamento de um regime democrático, não haveria problema nenhum. Pegam-se os 12 anos de cadeia que Lula tomou, aplicam-se ao total os cálculos de subtração, divisão e descontos em geral na pena que a bondosa lei brasileira permite, e apura-se quanto tempo ele fica fora de circulação.

Mas isto aqui é o Brasil, e o Brasil não funciona assim. Aqui tudo depende da quantidade de dinheiro e da influência que o criminoso tem, de um lado; de outro, depende da roda da fortuna. Pelas patologias legais que conduzem nossa existência, questões como a atual — decidir se as leis penais devem ou não ser aplicadas, conforme o tamanho do réu — podem ficar por conta da vontade pessoal de um único ministro do Supremo Tribunal Federal. Se ele quiser que seja assim, é assim. Se quiser que seja assado, é assado. Em seguida vêm os discursos, no meio político, na mídia e na “sociedade”, dizendo que “as instituições funcionaram”.

O fato é que as leis brasileiras, embora estabeleçam punições para os crimes, também estabelecem mil e uma tramoias legais, chamadas de “recursos”, para que condenados como Lula e outros magnatas não cumpram nunca a pena a que foram condenados.

Para encurtar o assunto: justo neste momento, o ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo está completando onze (11) anos fora da cadeia desde a denúncia de suas falcatruas. Estimam, nossos cérebros jurídicos, que seria um gravíssimo atentado ao “direito de defesa” mandar o ex-governador para o xadrez depois de um tempo tão curto de processo — uma “rapidez indecente”, gostam de dizer os advogados e os juízes que gostam dos advogados. É preciso “esgotar”, dizem eles, “todos os recursos legais possíveis” antes de fazer alguma coisa mais drástica — olhem só, afirmam horrorizados, o risco intolerável de cometer uma injustiça caso haja qualquer “precipitação punitiva”.

Não faz nenhum sentido lógico, e não é assim em nenhum país bem-sucedido do mundo. Mas muitos ministros do STF, que ameaçam o tempo todo formar uma maioria mínima, e resultante de caprichos individuais, acham que a lógica e a experiência prática dos melhores sistemas judiciais do planeta não valem nada diante da majestade de um artigo velhaco da Constituição brasileira — essa “Carta Magna” tão vagabunda que já foi reformada mais de 100 vezes em seus 30 anos de vida. Tanto faz, dizem os ministros pró-impunidade, que 2 mais 2 são 4. Se na sua leitura a Constituição diz que são 7, pois então vão ser 7, e não se fala mais nisso.

O centro da trapaça, originalmente montado por advogados espertos e políticos ladrões, uns interessados em processos intermináveis e lucrativos para clientes ricos, outros de olho na proteção legal para roubarem, baseia-se na “presunção da inocência” e no “trânsito em julgado” — truques que, na vida real da Justiça brasileira, significam que o indivíduo é inocente até seus crimes prescreverem. Todo o resto é apenas uma monumental hipocrisia.

Os ministros do “2 mais 2 são 7” fazem-se chamar de “garantistas”, como se estivessem “garantindo” a liberdade dos cidadãos; só querem garantir, isso, sim, que os crimes de Lula e quaisquer outros da mesma farinha fiquem sem punição. É a turma dos embargos, dos agravos, dos embargos agravantes e dos agravos embargatórios, que nenhum brasileiro nunca teve nem terá condição financeira para usar em toda a sua vida. São os apóstolos do “embargo dos embargos”. Tudo, hoje, depende deles.

Acompanhe tudo sobre:J.R. GuzzoJustiça

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda