Divisa entre México e Estados Unidos: o fluxo de caminhões é o sinal mais forte da integração entre os dois países (Daniel Becerril/Reuters)
Eduardo Salgado
Publicado em 27 de julho de 2017 às 05h55.
Última atualização em 30 de agosto de 2017 às 17h05.
Cidade do México – Jorge Alberto Elizondo, chefe de depósito na Isgo Manufacturing, fabricante de autopeças com sede em Monterrey, no norte do México, anda preocupado. Após a eleição de Donald Trump, sua mulher perguntou se a empresa onde ele trabalha exportava para o mercado americano. Ela tinha ouvido notícias sobre as ameaças de Trump de mudar os termos do Nafta, tratado de livre comércio entre Estados Unidos, Canadá e México. Cerca de 70% da produção da Isgo, onde Elizondo trabalha há oito anos, tem como destino o vizinho do norte.
“Se tiver de procurar um emprego numa empresa que não dependa das exportações para os Estados Unidos, vou precisar de uma reserva. Por isso, desde o início do ano, começamos a fazer uma poupança”, diz Elizondo, que ganha cerca de 2 500 reais por mês.
O grau de tensão entre os trabalhadores das fábricas instaladas nessa que é uma das grandes regiões industriais do país subiu tanto nos últimos meses que várias empresas passaram a dar mais atenção aos sindicatos, esclarecendo dúvidas e batendo na tecla de que nada mudou até agora e, se mudar, não será da noite para o dia. Embora não tenha afetado o nível de emprego, é inegável que o clima de incerteza já faz estragos.
“Os bancos estão mais cautelosos para emprestar. A taxa de juro continua igual, mas a percepção de risco é maior. Houve uma freada no crédito”, diz Ismael Gómez, presidente da Isgo. Empresas estrangeiras que não precisam captar dinheiro localmente e estudavam investir no país ficaram reticentes. “Algumas companhias começaram a retardar as decisões”, diz Manuel Montoya, diretor da entidade que representa o setor automotivo em Nuevo León, estado perto da fronteira com o Texas.
O que acontece no México é a parte mais visível do temor generalizado de uma marcha a ré da globalização. Em 2016, o comércio global aumentou apenas 2%, a pior taxa desde 2008. De acordo com o Banco Mundial, a desaceleração das trocas comerciais não é algo novo e tem entre suas causas o ritmo lento da economia mundial. Mas, pelo menos desde 2016, há um fator a mais inibindo o comércio: a ameaça do protecionismo.
A decisão do Reino Unido de sair da União Europeia foi o primeiro golpe. A eleição de Trump, com seu tom beligerante contra o livre comércio, acabou por espalhar o medo. Há outros problemas. O número de acordos comerciais tem caído desde o ano 2000, e cada vez mais países recorrem a barreiras não tarifárias (como a exigência de licenças sanitárias) para dificultar a importação. A tendência preocupa. Não faz muito tempo, acreditava-se que os países teriam economias mais integradas.
Durante sete décadas, essa integração levou a uma melhoria inédita da condição de vida nos países ricos e nos emergentes. A dúvida agora é se a globalização bateu no teto. Não seria a primeira vez. Antes da Primeira Guerra, o comércio internacional representava cerca de 25% do PIB mundial. Nas duas décadas seguintes, o número caiu para menos de 10% e só voltou ao nível anterior nos anos 70. Se a atual onda de globalização tiver o mesmo destino, isso causará estragos em todos os países, incluindo o Brasil. No México, os empresários estão fazendo de tudo para evitar que isso ocorra, a começar pela defesa do Nafta.
Francisco de Rosenzweig, hoje sócio de um escritório de advocacia na Cidade do México, conhece como poucos os detalhes dos acordos comerciais. Por mais de cinco anos até setembro do ano passado, ele foi subsecretário do Ministério de Comércio Exterior, principal responsável dentro do governo pelas negociações realizadas pelo México e pelas disputas na Organização Mundial do Comércio. Para Rosenzweig, é preciso esperar para saber qual será a posição americana quando a renegociação do Nafta de fato começar, provavelmente em agosto. Trump já avisou que, se não conseguir o que quer, pode simplesmente retirar o país do Nafta, assim como fez quando abandonou a Parceria Transpacífica, que seria o maior acordo comercial da história, uma área de livre comércio entre países da orla do Pacífico.
Tratando-se do atual presidente americano, pode-se esperar de tudo, mas a retirada unilateral dos Estados Unidos é hoje considerada uma possibilidade menos provável. Rosenzweig trabalha com dois cenários principais. No primeiro, mais otimista, os três países manteriam o acordo, que entrou em vigor em 1994 e zerou os impostos de importação a partir de 2008. Nesse cenário benigno, a renegociação se concentraria apenas em temas novos, como regras para o comércio eletrônico e proteções para a propriedade intelectual.
No segundo cenário, bem mais complicado, Trump romperia com o statu quo e exigiria mudanças no tratado atual. Se ele mirar as importações que chegam da China, são acopladas em produtos no México e entram nos Estados Unidos sem pagar imposto alfandegário, o estrago será menor para os mexicanos. Quem não vai gostar são os chineses. Caso realmente queira fechar o mercado americano, impondo tarifas a boa parte do que é produzido pelos dois parceiros comerciais do Nafta, aí muitas empresas terão uma tremenda dor de cabeça — inclusive as dos Estados Unidos, que investiram no México tendo como meta exportar para o mercado americano.
O estoque de investimento americano no México era de 15 bilhões de dólares antes do Nafta. Hoje é superior a 100 bilhões. “Se barreiras forem impostas, o assunto deixará de ser apenas entre os governos. Aí, as empresas passarão a ter um papel central”, diz Rosenzweig. A expectativa do governo mexicano é que as corporações presentes em ambos os lados da fronteira consigam influenciar o presidente americano ou o Congresso, que, no final, precisa aprovar o que for acertado na renegociação.
Recentemente, Ildefonso Guajardo Villarreal, ministro da Economia mexicano, fez uma viagem a Austin, no Texas — estado que envia ao México 40% de suas exportações —, para falar com lideranças políticas e empresários sobre uma aliança em defesa do Nafta. Voltou otimista, mas ninguém no México está tranquilo. “Como Trump não é confiável, é difícil prever o que vai ocorrer”, diz Luis de la Calle, um dos negociadores mexicanos na criação do Nafta. Diante das incertezas, os mexicanos montaram uma força-tarefa.
Eduardo Solís, diretor executivo da Associação Mexicana da Indústria Automotiva, faz parte de uma espécie de war room criada por empresários de setores importantes da economia após as eleições americanas. Conselhos para assessorar governos em negociações comerciais são comuns, mas esse caso é diferente. Representantes de setores como automotivo, têxtil, agrícola e químico reavivaram uma prática adotada na negociação do Nafta nos anos 90 e nunca mais repetida com tanto ímpeto. Fundaram um “grupo de inteligência” cujo foco é a contínua produção de dados.
Uma das estratégias é mostrar quanto as economias mexicana e americana estão conectadas. Ninguém discute que a indústria automotiva foi beneficiada. Em 1993, o México produzia 1 milhão de carros por ano, exportava metade e empregava 120 000 pessoas. Hoje produz 3,5 milhões, exporta 80% e emprega 700 000. Do total das vendas externas, 60% vão para os Estados Unidos. Antes do Nafta, o México respondia por 7% da produção de veículos da América do Norte. Em 2016, o percentual foi de 20%. Em 20 anos, a indústria automotiva mexicana tornou-se a sétima do mundo, e a maior fonte de dólares da economia.
Mas o governo americano, insistem os mexicanos, não pode esquecer que 40% das peças dos veículos vêm dos Estados Unidos, em geral as de maior valor agregado. Metade do investimento estrangeiro no setor automotivo mexicano desde 1994 mirou atividades intensivas em mão de obra, como a colocação de cabos. Muito do que envolve tecnologia ficou nos Estados Unidos. “O setor é interligado. É comum que uma autopeça passe várias vezes na fronteira em diferentes estágios de produção de um veículo”, diz Evelyne Rodríguez, executiva do ProMéxico, órgão de promoção comercial do governo. O caso da indústria automotiva é o exemplo mais bem-acabado da integração, mas há outros. A maneira coesa como o México se prepara para defender o Nafta é uma prova de quanto o país se beneficiou. Parece mentira, mas os papéis se inverteram. Hoje os mexicanos são os defensores do livre comércio; e os americanos, os protecionistas.
Gerardo Esquivel, professor no centro de estudos econômicos da respeitada universidade Colegio de México e tido como um crítico do Nafta, reconhece que, até agora, nenhuma força política defendeu o rompimento ou uma mudança radical do acordo. Traduzindo: nenhum político de peso enxergou uma oportunidade de ganho porque o povo mexicano tem uma visão positiva ou é indiferente ao livre comércio. De certa forma, isso surpreende. Esquivel faz questão de lembrar do começo dos anos 90, quando o Nafta estava sendo negociado.
Naquela época, seus defensores falavam em uma estrada para o Primeiro Mundo. Com o livre comércio, o México cresceria acima da média e conseguiria encurtar a distância que o separava dos Estados Unidos em termos de renda. Isso não aconteceu. “Embora vários setores tenham ganhado, os dados agregados da economia não mostram grandes mudanças. Muita gente não conseguiu tirar proveito do acordo e continuamos com a mesma taxa de pobreza que tínhamos nos anos 90”, diz Esquivel.
Por outro lado, as previsões catastrofistas também se provaram irreais. “Falava-se que era uma loucura competir com uma economia muito mais forte. Diziam que os Estados Unidos engoliriam o México”, lembra Eduardo Pérez Motta, ex-embaixador mexicano na Organização Mundial do Comércio. Esse é um argumento, aliás, ainda muito usado no Brasil para defender a manutenção de uma economia relativamente fechada.
No dia em que o Nafta entrou em vigor, zapatistas armados saíram da selva no sul do país para declarar guerra ao Estado. A destruição da agricultura local pelo livre comércio era dada como certa. Isso também não aconteceu. Hoje o México produz 80% dos alimentos que consome. De cada dois tomates frescos comprados por consumidores americanos, um é feito no México. Na última final do campeonato de futebol americano, o consumo de guacamole nos Estados Unidos foi equivalente a uma fila de 120 quilômetros de caminhões cheios de abacates produzidos no México.
Qual é a conclusão de tudo isso? Na opinião de Esquivel, a maior lição do Nafta para uma economia em desenvolvimento (o que também vale para o Brasil) é que o livre comércio é um componente necessário, mas não suficiente para garantir um alto crescimento econômico. Dito de outra forma, faz todo sentido manter o Nafta mesmo que não tenha entregado tudo o que os defensores prometeram. Mas, independentemente do que pensem os mexicanos, a manutenção do acordo será definida por Trump, que é obcecado em recuperar os empregos da indústria americana.
No ano 2000, os Estados Unidos tinham 17 milhões de trabalhadores no setor industrial, o mesmo número de 1970. Desde então, o dado caiu para 12 milhões. A culpa é do comércio? Do México? Quem responde é Douglas A. Irwin, professor de economia no Dartmouth College e autor de Free Trade Under Fire (“O livre comércio sob fogo cerrado”, numa tradução livre): “O avanço tecnológico nas fábricas foi responsável por 85% das perdas de mais de 5 milhões de vagas de 2000 a 2010. A participação do comércio nisso foi de pouco mais de 10%”.
Não existe um estudo confiável sobre os efeitos do México. Mas Irwin diz que, nos seis anos seguintes à assinatura do Nafta, nada mudou no mercado de trabalho americano. Foi apenas a partir de 2000, quando as importações da China cresceram, que veio a queda. “Os setores que mais perderam vagas foram os de roupas e móveis, ambos intensivos em mão de obra e onde a competição com produtos chineses se intensificou”, completa Irwin.
René Reys Ramos, diretor de recursos humanos da Navistar, fabricante americana de caminhões e ônibus, dá um exemplo de quanto a receita de Trump é inadequada — para dizer o mínimo. A Navistar tem uma fábrica no norte do México, a 200 quilômetros do Texas, que produz 120 caminhões por dia e emprega 2 600 pessoas. Após a eleição americana, a empresa começou a avaliar alternativas. Uma das possibilidades era transferir parte da produção para os Estados Unidos, no caso de barreiras serem impostas.
A conclusão a que a empresa chegou é que esse cenário seria extremamente desafiador. “Não é fácil encontrar gente disposta a trabalhar no chão de fábrica”, diz Reys Ramos. “Na nossa fábrica de ônibus no estado de Oklahoma, não conseguimos contratar todo o pessoal de que precisamos, e a maioria dos empregados é imigrante.” Para atrair mais gente, a empresa teria de aumentar os salários.
Um dado importante: nos Estados Unidos, um trabalhador do setor já ganha 25 dólares por hora. No México, a hora varia de 2 a 4 dólares. Qualquer aumento encareceria o produto final, o que teria efeitos colaterais nada desejáveis na economia, como a redução das vendas de veí-culos e possivelmente dos empregos no setor. Se o presidente americano estiver aberto a argumentos lógicos, certamente não vai acabar com o Nafta nem desfigurá-lo. Mas a pergunta é: ele está aberto à lógica econômica?
A decisão de Trump terá repercussões mundiais. Até o fim do século 19, a Inglaterra era a principal defensora das políticas econômicas liberais no mundo. No século 20, os Estados Unidos assumiram esse papel. Desde os anos 40, os presidentes americanos vinham promovendo a abertura comercial com a ideia de ela seria benéfica para o país — como de fato foi. Na negociação do Nafta, Trump pode tomar outro rumo, tornando-se um obstáculo à maior integração comercial do mundo. Felizmente, outros líderes têm reagido em direção contrária.
Como disse a chanceler alemã, Angela Merkel, no fim de junho: “Quem quer que acredite que os problemas do mundo possam ser solucionados pelo isolacionismo e pelo protecionismo está cometendo um erro”. Um enorme erro, a ser lamentado lá na frente.