Paola Corosella e Benny Goldenberg Foto: Germano Lüders 02/10/2020 (Germano Lüders/Exame)
Graziella Valenti
Publicado em 8 de outubro de 2020 às 05h46.
Última atualização em 11 de fevereiro de 2021 às 15h39.
Quando se pensa em recheios de empanadas, o que vem à mente é carne, frango, queijo e uma pimentinha. Comida, enfim. Mas a chef Paola Carosella e o restaurateur Benny Goldenberg querem mais quando recheiam a tradicional receita latino-americana feita na La Guapa, rede de empanadas fundada pelos dois na capital paulista em 2014. A dupla acaba de inaugurar uma fábrica, capaz de produzir 400.000 empanadas por mês, e recebeu um aporte para acelerar a expansão. Quanto maiores ficam, mais impacto social podem causar.
A La Guapa defende uma alimentação com ingredientes naturais e vindos de pequenos produtores, ajudando a mudar o mundo uma bocada por vez. “Guapa é muito mais do que bonita, é uma mulher forte e corajosa também”, diz Carosella. “As empanadas são tradicionalmente feitas por mulheres, que as vendiam na beira da estrada para sustentar a família.”
Da primeira loja no Itaim Bibi, bairro nobre da capital paulista, até a 11a que acaba de ser inaugurada na Vila Leopoldina, também em São Paulo, a La Guapa andou com as próprias pernas. “Fizemos apenas o investimento na primeira unidade.
A partir daí, a primeira loja pagou a segunda, a segunda pagou a terceira, e assim foi”, conta Carosella, chef argentina descendente de italianos e nacionalmente famosa pelo programa de TV MasterChef Brasil. Cada um dos dois fundadores colocou 100.000 reais no projeto — e o dinheiro se multiplicou. Com oito lojas, antes das recentes inaugurações, a rede vendia mensalmente 220.000 empanadas. O faturamento total deste ano deve ser da ordem de 22 milhões de reais, um crescimento de quase 40% sobre os 16 milhões de 2019, apesar da pandemia.
A sociedade agora acaba de receber um aporte de 50 milhões de reais e uma nova sócia, a gestora de private equity Concept Investimentos, de Rafael Pilotto Gonçalez, Gabriel Awad e André Carpinetti. Juntos, os cinco compõem o recém-criado conselho de administração da empresa. A fatia do negócio comprada com esse aporte não é revelada. Os novos recursos serão usados no plano de expansão que foi desenhado ao longo do último ano, enquanto La Guapa e Concept namoraram até esse casamento. O projeto prevê a abertura de uma nova loja por mês nos próximos cinco anos, o que levará a rede a um total de 80 unidades — sempre próprias, sem franquias. “A ideia é, depois da cidade de São Paulo, partir para o interior do estado, depois Rio de Janeiro e seguir aos poucos para outras regiões e capitais”, diz Goldenberg, presidente da La Guapa.
Mesmo com a expansão e com a escala, as empanadas continuam artesanais e os ingredientes são escolhidos da mesma forma que na primeira unidade. Tamanho aqui é visto como oportunidade de defender os princípios da sociedade. “Entregamos comida de verdade. Temos um compromisso muito grande com isso, com nossa verdade. O frango tem de ser sustentável, o ovo também. Os funcionários precisam entender o propósito e ter estrutura para trabalhar. Compreendemos que como negócio e agora como indústria podemos escolher que tipo de impacto queremos causar na sociedade e cuidamos muito disso”, afirma Carosella. “Eu não vejo nenhum problema em atingir um tamanho a partir do qual a gente decida criar nossas próprias galinhas. Todas soltas.”
Antes das galinhas, os planos passam por, além das lojas, vender no varejo, no supermercado e até para outros restaurantes. “Já tivemos muitas conversas para entender esse mercado, as margens e o melhor modelo. Agora estamos na fase de desenvolver o produto”, diz Goldenberg. Também serão avaliadas eventuais aquisições ou até a criação de outras marcas, de outros produtos, do zero. A Concept deixa claro que já separou capital para isso, além da atual injeção de recursos, se surgirem oportunidades.
A cultura que tem turbinado o crescimento da La Guapa ganhou força com a pandemia. Empresas que aliam lucro com preocupações sociais e ambientais (conhecidas pela sigla em inglês ESG) já somam milhares. Apenas a coalização We Mean Business reúne mais de 1.000 empresas que faturam juntas 24,8 trilhões de dólares.
Para os gigantes, abraçar práticas sustentáveis virou quase uma obrigação. Para as pequenas, como a La Guapa, um chamariz a mais para clientes, parceiros e investidores. Gonçalez veio para a sociedade com esse mesmo espírito, com o que chama de “capital paciente”. Os recursos da Concept são provenientes majoritariamente de famílias e empresários que já alcançaram sucesso e querem combinar apoio ao empreendedorismo com retorno de investimento. Esse é apenas o segundo investimento da casa, fundada em 2016 — o primeiro foi na Maquira, empresa de produtos odontológicos que cresceu quatro vezes nos últimos cinco anos.
O que os fundadores da La Guapa chamam de “fast-casual” — uma combinação de comida rápida e de qualidade com preço acessível — mostrou resiliência ao ataque global da covid-19, com proposta simples, em conta e boa para delivery. Na rede, cada um dos 11 tipos de empanada custa 8,30 reais. Das 11 unidades atuais, três vieram pós-pandemia: uma foi inaugurada em julho (Vila Olímpia), outra em setembro (Tatuapé) e a terceira no começo do mês (Vila Leopoldina). Há mais duas engatilhadas. “Esse modelo fast-casual era bem o que procurávamos. É algo novo fora do Brasil e aqui mais ainda”, diz Gonçalez, que relata ter avaliado 300 negócios antes de fechar o segundo investimento, 60 deles só no ramo de alimentação. Depois de serem questionados sobre outros exemplos dessa proposta, os sócios destacaram a Bráz Elettrica, que misturou a cultuada pizza paulistana da Bráz com a proposta nova-iorquina da praticidade e individualidade. Mas a lista local parou por aí. Os três acreditam muito nesse mercado, inclusive para as apostas futuras.
Os fundadores vivem na pele as diferenças entre o desempenho do conceito fast-casual e dos tradicionais restaurantes, de longa permanência, durante a pandemia. A dupla também é dona da badalada casa de alta gastronomia Arturito, que consagrou Carosella e a levou a compor o trio de jurados do popular MasterChef Brasil, produzido e exibido pela Rede Bandeirantes, ao lado de Érick Jacquin e Henrique Fogaça. Carosella se pôs na cozinha e reinventou um cardápio de almoço mais simples para o chique Arturito, mais barato e que pudesse chegar à casa das pessoas com decência: uma salada e um prato do dia. “Chega meio desarrumado, é verdade, mas gostoso.” Goldenberg, além dessas duas sociedades, é dono e fundador do Mangiare, na Vila Leopoldina: vive em dobro as duas realidades.
Para além de todos os obstáculos já costumeiros aos empreendedores do ramo de serviços de alimentação, a pandemia trouxe uma crise sem precedentes. Enquanto a La Guapa terá crescimento neste ano, Goldenberg conta que o Arturito retomou entre 75% e 80% de sua normalidade agora no que diz respeito à receita e às margens. Hoje, ainda há muitas vendas no delivery e eles estudam como tentar continuar com esse formato. Mas não há certeza ainda. “O importante é saber e conseguir se adaptar.”
Composto tradicionalmente de empresas pequenas e informais, sem uma gestão forte de negócios, a pandemia abalou fortemente o setor de bares e restaurantes. “É um setor artesanal e o movimento voltado para gestão e saúde financeira ainda está muito no início”, reconhece Goldenberg. “Não é assim só no Brasil. É a realidade no mundo todo.”
Por aqui, um quarto dos mais de 1 milhão de bares e restaurantes fechou as portas definitivamente e mais de 1 milhão de empregos foram perdidos, de acordo com uma pesquisa da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). Cerca de 80% dos bares e restaurantes faturam menos de 20.000 reais por mês — 20% recebem menos de 5.000 reais mensalmente. Além disso, 65% das empresas são informais. “Quem já tinha problemas para negociar com fornecedores, pagar aluguel ou na relação com a equipe teve uma situação agravada”, diz Luiz Rebelatto, analista do setor de serviço de alimentação do Sebrae nacional. Conseguir crédito para manter o negócio operando foi uma dificuldade extra para grande parte do setor: 78% dos negócios pediram empréstimo e 43% deles não conseguiram.
Lentamente, o setor dá sinais de recuperação. A mão de obra média de cada negócio subiu de 2,9 para 4,3 no último mês. A expectativa é que o faturamento volte ao que era antes da pandemia dentro de quatro a 12 meses.
Paulo Solmucci, presidente executivo da Abrasel, acredita que o delivery passará a fazer parte de forma permanente do setor, mas não deverá representar mais do que 20% a 30% do faturamento total. “É um modelo conveniente e foi essencial na quarentena, mas será apenas uma parcela do mercado no futuro.” Na própria La Guapa o projeto de um aplicativo para pedidos foi acelerado e em 15 de abril estava pronto para os clientes. Além disso, a rede também fortaleceu a parceria com o aplicativo Rappi para entregas.
O encontro
“Deus, foi um milagre”, conta Carosella, rindo bastante e apontando para o céu, quando questionada como ela e Goldenberg se conheceram. O encontro se deu casualmente devido às reuniões que donos de restaurantes em São Paulo estavam promovendo para discutir o que fazer diante de uma onda de arrastões na cidade. O ano era 2013. A La Guapa foi inaugurada em março de 2014 e antes disso Goldenberg já tinha entrado no capital do Arturito, com uma fatia de 30%, pouco tempo depois de Carosella ter comprado a participação dos demais sete sócios na casa porque queria mudar a proposta. A dupla pôde dividir os talentos: Carosella cuida da cozinha e Goldenberg da gestão, ainda que ambos decidam tudo em conjunto. “Há muitos empresários do ramo de restaurantes, mas aprendi que eu não poderia me associar a nenhum. A maioria só quer fama, dinheiro e resultado. Comigo não pode ser assim”, diz ela.
Goldenberg carrega o engajamento social do berço. Administrador de empresas com pós-graduação em marketing de luxo, é filho de Margareth Goldenberg, consultora de diversidade e primeira presidente do Instituto Ayrton Senna. Foi lá, inclusive, seu primeiro emprego. A parceria torna simples aplicarem todos os valores que defendem, transformando-os em um processo organizado.
“A verdade é que a gente não se conhecia a fundo. Assinamos um código de ética para os negócios, que falava sobre como trataríamos funcionários, sobre qualidade de ingredientes e fazer tudo dentro da ética e da legalidade, antes de termos o contrato social da La Guapa”, lembra Carosella. “Agora virou nosso acordo de acionista”, afirma Gonçalez, da Concept, ao responder se, como novo sócio, também aderiu ao documento. Está cravado no papel e assinado por todos que reduzir a qualidade do ingrediente em busca de margens está completamente fora da estratégia. Além de produtos sustentáveis, diversidade também é palavra-chave. Hoje, com um total de 131 colaboradores, 55% são mulheres, 43% são negros e 13% são LGBTQIA+. Além disso, 6% são estrangeiros — de Angola, Argentina, Haiti, Itália e Venezuela.
Com uma filosofia de inclusão e impacto, Carosella e Goldenberg preferem comprar de produtores locais sempre que possível. No início de 2015, por meio do Greenpeace, chegaram até a Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo (Cooperapas), na região de Parelheiros. Hoje, a organização, que reúne 46 cooperados, é fornecedora exclusiva de folhas do Arturito e da La Guapa. “Prefiro pagar 2 reais no pé de alface e ajudar a empurrar o crescimento desse grupo de pessoas, investindo na irrigação e na aparelhagem para lavagem e secagem das folhas, a pagar 70 centavos na Ceagesp”, diz Carosella.
É uma estratégia que, de certa forma, bate de frente com o preceito de acionista no centro, consagrado pelo economista Milton Friedman há 50 anos. Mas é um resumo da cultura ESG. Junto com os hábitos mais saudáveis e caseiros na alimentação, a pandemia trouxe um aumento da consciência ambiental. O zero desperdício, ou o uso completo de um alimento sem destinar nada ao descarte, ganha força como conceito, assim como pratos feitos com poucos ingredientes e poucos itens ultraprocessados.
Até redes de fast-food — cada dia mais questionadas — tentam mostrar alguma aderência à preocupação dos consumidores: o Burger King lançou no Brasil um hambúrguer sem conservantes e o McDonald’s eliminou certos corantes e aromatizantes artificiais. A quebradeira da pandemia pode acelerar as mudanças. “O buraco no setor vai ser ocupado pelo empreendedor mais jovem e mais familiarizado com a tecnologia, sensibilizado com a alimentação saudável e seu papel social”, afirma Solmucci, da Abrasel.
Carosella é mais crítica. “Essa consciência está em uma parcela muito pequena da população”, diz. Com o crescimento da desigualdade social no mundo e, principalmente, no Brasil, ela acredita que um número cada vez menor de pessoas vai conseguir se alimentar com qualidade. Mais do que chef renomada, ela se tornou celebridade e usa sem medo essa posição para defender o que pensa. É apaixonada pela relação entre a comida e a sociedade, e adora entender todos os impactos relacionados a ela.
Carosella aponta, por exemplo, como o modelo brasileiro que incentiva as exportações de grãos, em especial milho e soja, em favor do fortalecimento da balança comercial, tem impacto na qualidade da dieta da população. Falta, segundo ela, uma política de incentivo à agricultura familiar que possa manter as pessoas no campo, cuidar das questões do desmatamento e ao mesmo tempo enriquecer a dieta. “A indústria não é um monstro e teve papel fundamental quando as mulheres decidiram trabalhar fora de casa. Mas é uma questão de escolher quais impactos e consequências causar”, diz. Ninguém sabe como será o mundo pós-pandemia. Uma certeza: empresários como Carosella e Goldenberg terão cada vez mais espaço. Bem-vindo a 2021.