Urucurituba, no Amazonas: o baixo acesso ao saneamento básico é uma das principais causas das doenças gastrointestinais no país | Ernesto Reghran/Pulsar Imagens / (Pulsar Imagens / Ernesto Reghran/Reprodução)
Da Redação
Publicado em 5 de julho de 2018 às 05h32.
Última atualização em 5 de julho de 2018 às 05h32.
Em janeiro, vários pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição de pesquisa vinculada ao Ministério da Saúde, foram chamados às pressas de volta das férias. Um surto de hepatite A havia infectado pelo menos 120 pessoas na comunidade do Vidigal, no Rio de Janeiro, e era preciso fazer o sequenciamento genético do vírus com urgência. No final de 2017, correria semelhante acontecera quando a febre amarela obrigou a Fiocruz a produzir mais vacinas, estudar a efetividade das doses fracionadas e treinar profissionais de saúde para evitar que uma epidemia urbana fizesse um estrago na população, como ocorria até meados do século 20. Ainda assim, 1.190 pessoas foram contaminadas e 373 morreram nos primeiros seis meses de 2018. Agora já se prevê mais trabalho intenso pela frente: dessa vez, com o crescimento da incidência de sarampo iniciada na fronteira norte do Brasil, em razão da entrada de refugiados venezuelanos em Roraima. “O risco de os casos de sarampo se espalharem para outros estados é razoável”, diz Rivaldo Venâncio da Cunha, coordenador de vigilância e dos laboratórios de referência da Fiocruz. “Além da fabricação de mais vacinas, estamos nos preparando para dar suporte à rede de diagnósticos.”
Os episódios relatados pelos técnicos da Fiocruz não decorrem de falta de sorte dos brasileiros. No caso da hepatite A no Rio de Janeiro, o surto carioca foi causado por água contaminada, resultante da falta de sanea-mento básico. Na cidade, 56% do esgoto coletado — nem todo esgoto é coletado — não é tratado. Já para a febre amarela sabe-se que, a cada oito ou dez anos, há um novo surto e é possível se preparar para enfrentá-lo com antecedência. Em relação ao sarampo, apesar do reforço de imunização nas fronteiras feito pelo governo, os indicadores mostram que a vacinação no país tem diminuído e atingiu, no ano passado, o menor percentual em 16 anos. Apenas 70% das crianças brasileiras foram vacinadas contra o sarampo em 2017. “Se a imunização fosse efetiva, mesmo com a chegada de estrangeiros contaminados, a doença não se espalharia”, afirma Expedito Luna, médico e professor no Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP).
O Brasil de 2018 continua a lidar com doenças que em grande parte do mundo desenvolvido já foram controladas, quando não erradicadas, e sua incidência atesta nosso atraso. Casos de malária e sífilis voltaram a proliferar no país, após anos de seguidas reduções. Tuberculose e hanseníase, males que não se consegue efetivamente erradicar, somam mais de 65 000 casos notificados anualmente. Todos os verões, as doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, como dengue, zika e chikungunya, se transformam num desafio para o sistema público de saúde. Até a poliomielite, erradicada no país em 1990, tem alto risco de retornar. Um levantamento do Ministério da Saúde mostra que 312 cidades no país imunizaram menos da metade das crianças que deveriam receber a dose da vacina em 2017. “A impressão é de que voltamos ao início do século passado”, diz Venâncio, da Fiocruz.
As doenças infectocontagiosas estiveram no centro das discussões da saúde pública em todo o mundo no século 20. Foi no início do século passado que surgiram as vacinas contra tuberculose, difteria, tétano e febre amarela. Após a Segunda Guerra Mundial, desenvolveu-se a imunização contra poliomielite, sarampo e rubéo-la. Ainda assim, em 1970, 40% das mortes por problemas de saúde nos países emergentes eram provenientes de doenças infecciosas — ante 13% nas nações ricas. A situação melhorou no mundo emergente, mas hoje 18% ainda morrem por esses males. O fato é que a parte mais pobre do mundo não atingiu o patamar de 50 anos atrás dos países ricos, enquanto estes reduziram a 8% o número de óbitos por doenças infecciosas. É verdade que a virada do milênio trouxe à pauta problemas de outra natureza.
Em boa parte dos países, o debate foi direcionado para o que fazer e como lidar com as doenças crônico-degenerativas, aquelas causadas pela maior sobrevida da população. Estão lá hipertensão, diabetes, artropatias e, até mesmo, o câncer. “Essas doenças eram menos presentes no passado porque não dava tempo de desenvolvê-las: as pessoas morriam antes por doenças infectocontagiosas”, diz Claudio Lottenberg, presidente da UnitedHealth Group Brasil, controladora do plano de saúde Amil. “Hoje, é de extrema importância acompanhar e ter políticas públicas para essas doenças.”
No Brasil, uma soma de problemas faz das doenças do passado uma realidade no presente. A começar pela falta de saneamento. Ainda hoje, 35 milhões de pessoas não recebem água tratada no país e 100 milhões não têm acesso a coleta de esgoto. Somente 42% do esgoto coletado é tratado. Cerca de 12 milhões de domicílios não têm o lixo recolhido. “O índice de saneamento básico em Teresina, uma capital de estado, é de 15%”, afirma Leonardo Giusti, sócio da consultoria KPMG. “Não é possível tratar a saúde sem tratar a água.” Tudo isso afeta diretamente a saúde dos brasileiros — e o que se gasta com ela. Todos os anos, o país registra 340.000 internações causadas por infecções gastrintestinais, resultando em cerca de 5.000 mortes. Apenas o custo hospitalar com as internações por causa de diarreia no Sistema Único de Saúde chega a 125 milhões de reais por ano.
Os números são alarmantes, mas não deveriam surpreender ninguém. A correlação entre saneamento e saúde pública é largamente documentada. Segundo dados da Unicef e da Organização Mundial da Saúde, quanto maior o acesso ao saneamento, menor a mortalidade infantil num país. Nações como o Japão e os Estados Unidos, onde o saneamento básico é universal, registram, respectivamente, duas e seis mortes a cada 1 000 nascidos vivos. No extremo oposto está o Zimbábue: no país africano, onde o serviço de esgoto está disponível para apenas 37% da população, morrem 47 crianças a cada 1 000 nascimentos. No Brasil, pouco mais da metade da população tem o esgoto coletado, e a taxa de mortalidade infantil chega a 15 mortes por grupo de 1 000 nascidos.
“Ainda que parte do que ocorreu pudesse ter sido evitado, as iniciativas de controle da febre amarela foram essenciais para impedir uma tragédia”, diz Pedro Tauil, professor do núcleo de Medicina Tropical na Universidade de Brasília. A mesma previsibilidade ocorre com a dengue. Nas últimas três décadas, com exceção do ano de 1988, o Brasil sofreu todos os anos com epidemias de dengue de maior ou menor intensidade. Somados 2016 e 2017, foi registrado 1,7 milhão de casos de dengue no Brasil. Houve 816 mortes no período para uma doença em que 90% das ocorrências exigem tratamento com água e soro fisiológico. “Boa parte dos óbitos resulta de falta de diagnóstico correto, subestimando a gravidade da doença”, diz Venâncio, da Fiocruz. Cabem aos estados e municípios as ações de combate e controle do Aedes aegypti, mosquito transmissor de dengue, chikungunya, zika e febre amarela urbana (a silvestre é transmitida por outro mosquito), mas o poder público depende do engajamento da população na eliminação de criadouros do inseto, que se desenvolvem principalmente dentro dos domicílios.
De todo modo, entre os especialistas há um consenso: até que se desenvolva uma nova tecnologia, será impossível eliminar o Aedes aegypti das grandes cidades. “Até os anos 90, acreditava-se que seria possível erradicá-lo”, afirma Stefan Cunha Ujvari, infectologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, de São Paulo, e autor do livro A História da Humanidade Contada pelos Vírus. “Afinal de contas, havíamos sido bem-sucedidos nessa missão no início do século 20, quando se descobriu que ele era o vetor na transmissão da febre amarela urbana.” Só que as grandes cidades do século 21 são muito diferentes daquelas de 70 ou 80 anos atrás — além de bem mais populosas, há um adensamento maior, condições que facilitam a transmissão de doenças. Até mesmo o aquecimento global tem um papel na proliferação de doenças transmitidas por mosquitos. Recentemente houve surtos de dengue na Flórida, no sul da França, na Itália, em Singapura e até mesmo em Tóquio, em razão das temperaturas mais altas.
A crise das finanças públicas também acaba prejudicando o cenário da saúde. Diversas rubricas dos gastos públicos ligadas à vigilância epidemiológica têm sido reduzidas. No governo federal, programas para o fortalecimento da vigilância sanitária tiveram redução de 28% dos recursos destinados em 2017 em relação ao ano anterior. Com a consolidação do teto dos gastos públicos, que limitou o crescimento da despesa à inflação do ano anterior, o cenário deve ser de aperto. O incremento anual da população, mesmo inferior a 1% ao ano, também tende a reduzir as fatias do bolo para as diferentes necessidades da população. Em alguns estados, a situação também se deteriorou. No Rio de Janeiro, de acordo com o Ministério Público local, cerca de 2 bilhões de reais deixaram de ser investidos nos serviços de saúde estaduais em 2016. “O visível são filas nas portas dos prontos-socorros, mas apenas mais médicos não resolvem”, afirma Luna. “É preciso ter ações de vigilância, controle de vetores e cobertura vacinal ampla.” Há outra frente a ser atacada: a má qualidade dos gastos. O setor de saúde pública no Brasil padece com o desperdício e a ineficiência, além da roubalheira.
“Certamente é possível fazer muito mais usando melhor o dinheiro público”, diz Enrico Vettori, líder da área de saúde da consultoria Deloitte. Além disso, são necessárias políticas públicas para deter situações específicas. No caso de tuberculose, os 25 casos de incidência em cada 100 000 habitantes da população geral se transformam em 250 casos na indígena e 1 400 na encarcerada. “Ou olhamos para essas realidades de forma distinta ou essa situação nunca vai mudar”, afirma Venâncio. “Porque não é só o presidiário o contaminado, mas também os funcionários do sistema prisional, os advogados e familiares que continuam espalhando a doença.”
A superação dessas doenças vai exigir o empenho de toda a sociedade brasileira. Uma crítica comum dos especialistas é a negligência da população com os cuidados recomendados para a saúde e as condições sanitárias, atitude em parte atribuída à falta de educação. “O cidadão delegou ao Estado a responsabilidade exclusiva de cuidar de sua saúde. Será que precisa ter um agente de saúde da família acompanhando a carteira básica de vacinação de todos os brasileiros para avisá-los quando ir ao posto?”, diz Lottenberg, da UnitedHealth. O mesmo se aplica à falta de engajamento com outros problemas, como a eliminação de criadouros de mosquitos ou a prevenção contra doenças sexual-mente transmissíveis. Os avanços da tecnologia têm prometido resolver antigos problemas da medicina que devem resultar numa vida mais saudável e mais longa. As nações ricas lideram essa corrida. O Brasil também quer participar dessa disputa, mas antes precisa resolver as doenças que ainda o condenam ao atraso.