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Não há nada como consertar o Brasil, diz Gustavo Franco

Gustavo Franco, presidente do Banco Central, fala do Plano Real, da crise asiática, das eleições, do poder e claro! da Copa do Mundo

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Da Redação

Publicado em 8 de novembro de 2013 às 18h03.

Barba rala, um certo cansaço aparente, voz quase baixa e contida, nas mãos uma caneta rabiscando coisas o tempo inteiro num papel. Ah, sim, e um atraso de 40 minutos que não chega a ser grande quando se trata de autoridades do governo.

O economista Gustavo Franco, presidente do Banco Central, está diante do microfone e de jornalistas da EXAME na sede do BC no Rio de Janeiro. Pouco antes do início da entrevista, às 15h40, desceram do elevador alguns sanduíches do McDonald s. Sabe-se que muitas vezes ele almoça sanduíches em seu gabinete a horas tardias, mas não era o caso. Gustavo Franco informa que comera sushi no almoço.

A conversa durou quase duas horas. Em nenhum momento Gustavo Franco foi interrompido por Cleide, sua secretária. Claro que o tema inicial foi a Copa do Mundo. Era véspera do jogo entre Argentina e Holanda, e ele dizia que o time que mais temia, entre todos, era o holandês. Teria ganhado 50 reais se topasse uma aposta com os jornalistas da EXAME.

Depois se falou sobre um bocado de assuntos. O Real, o câmbio, a crise asiática, as eleições, o poder. Gustavo Franco pareceu comover-se uma vez: quando falou na "incomparável" experiência que é "consertar" o país. Pode-se dizer que muito tempo terá que passar, ainda, até que o país esteja, de fato, "consertado". Pode-se até discutir a importância de Gustavo Franco nesse "conserto".

Mas é difícil duvidar da sinceridade da emoção quase embargada com que ele fala do "conserto". É como se isso redimisse todas as frustrações, todas as angústias, todas as dores de cabeça do cargo que ocupa. Os principais trechos da entrevista:

Como você vê a economia brasileira nesse quarto aniversário do Plano Real?

Gustavo Franco - Estou otimista, embora minha função seja a de estar preparado para as piores coisas. Desde o início do plano, nós trabalhamos nas coisas fundamentais para mudar o país. Até o Real, havia duas perguntas que o Brasil não conseguia responder. A primeira: como vamos crescer e, ao mesmo tempo, fazer o ajuste fiscal? Nós sempre acreditamos que a fonte última do crescimento era o investimento público. Se vamos reduzir os gastos, como crescer? Durante toda a década de 80, insistimos na velha receita do investimento público, que só produzia inflação.


A segunda questão: como vamos, ao mesmo tempo, ser competitivos e melhorar a distribuição de renda? Em outras palavras, como crescer e distribuir o bolo? Antes, a competitividade das exportações vinha de arrocho salarial, excesso de desvalorização cambial e subsídios. O Brasil já teve 1,5% das exportações mundiais, mas gastava nessa época 48% do valor das exportações em subsídio às exportações. Com o regime militar, dava para arrochar os salários. Na democracia isso não existe.

Quais são suas respostas a essas duas perguntas?

Gustavo Franco - A resposta à primeira pergunta é privatização. Simples. Mas foi necessária uma hiperinflação para que se criasse o programa de privatização. A privatização tem três conseqüências. Ela reduz a dívida do governo, inclusive a externa. Ela transfere uma empresa para alguém que vai gerir melhor e fazer lucro de algo que dava prejuízo. E passa para o setor privado a responsabilidade por investimentos, principalmente em infra-estrutura, que deixam de onerar o setor público no futuro. Quanto o Brasil está recebendo de investimento no setor ferroviário? Quanto se investiu na siderurgia? São áreas que hoje recebem investimentos privados.

O processo de privatização parece lento demais para muita gente. Você está satisfeito com a velocidade do processo?

Gustavo Franco - Nós sabíamos que seria fundamental deslanchar um programa de privatização de vários anos. Havia muitos ativos públicos. Por isso mesmo, não dava para pensar em algo com a mesma velocidade dos programas do leste da Europa. Economicamente não faria sentido. Não dá para fazer privatizações de 60 bilhões de dólares em um ano. Isso desarruma o balanço de pagamentos e faz com que o país acumule reservas, o que leva o governo a ter de emitir títulos para retirar dinheiro da economia. E por aí segue. Se tivéssemos vendido tudo no momento em que a inflação estava muito alta, teríamos vendido mal.

E quanto à segunda questão, a aparente contradição entre crescer e distribuir?

Gustavo Franco - A resposta é produtividade. Com aumento de produtividade, é possível ter as duas coisas ao mesmo tempo. A produtividade ficou estagnada entre 1974 e 1990. Em 1990, com a abertura, a produtividade começa a embicar para cima. Entre 1993 e 1997 houve um ganho real de produtividade de 35%. Antes se faziam 100 mercadorias por hora trabalhada e agora são 135. É um crescimento superior a 7% ao ano. Nos Estados Unidos, a produtividade cresce menos do que 1,5% ao ano. É claro que o crescimento alto no Brasil não se sustenta para o resto da vida. É um padrão típico de um país que fez abertura.


Os salários estão absorvendo esse aumento de produtividade?

Gustavo Franco - Nos primeiros anos do Real, os salários absorveram a totalidade desse aumento. Em quatro anos, os salários cresceram 33% em termos reais sem nenhum impacto inflacionário. Mas isso perdeu força de um tempo para cá. Os ganhos mais recentes de produtividade já não foram repassados integralmente aos salários. Serviram tanto para engordar margem quanto para reduzir preço.

O resíduo de inflação no início do plano colaborou para esse aumento de salário?

Gustavo Franco - Sim. No primeiro ano, os salários em termos nominais foram reajustados bastante. Mas a pergunta que fica é saber por que não houve efeito na inflação. As empresas absorveram o reajuste dos salários porque houve um aumento violento na produtividade. Isso ocorreu com a abertura da economia, o que fez o empresário não poder repassar aumentos de salário para preço.

Se os salários absorveram o aumento de produtividade, qual foi o ganho de competitividade do país?

Gustavo Franco - Os salários absorveram a produtividade nos primeiros dois anos do Plano porque o país tinha uma tensão distributiva que precisava ser resolvida antes de qualquer coisa. Agora, o aumento de produtividade é dividido entre empregado, patrão e consumidor.

O desemprego aumentou recentemente. Os desempregados estão pagando a conta do Real?

Gustavo Franco - O final de 1997 é um péssimo momento para olhar para o desemprego por causa da crise asiática, um fato que não tem nada que ver com o plano. Quem produziu esse aumento recente foi a crise asiática. Até outubro, a taxa de desemprego estava em cerca de 5,5%, um número extraordinário tendo em vista o aumento da participação no mercado de trabalho de jovens e mulheres. Não vamos nos iludir, a crise asiática é uma crise externa de proporções grandes, como a de 1982. Não dá para achar que vamos ficar invulneráveis. Se não tivéssemos reagido direito, teríamos tido outra década perdida. Reagindo direito, o Brasil não terá uma década perdida. Terá, no máximo, um semestre perdido.

Mas o Brasil respondeu direito à crise? Onde estão os 33 000 funcionários que seriam demitidos? E os cortes nos gastos dos ministérios?

Gustavo Franco - No pacote fiscal de outubro, havia mais de 50 medidas com o objetivo de produzir um ganho de 20 bilhões. Mas só consideramos nessa conta as medidas que podiam ser quantificadas. Os funcionários que seriam demitidos não haviam entrado na conta dos 20 bilhões de reais. Se você somar o efeito daquilo que efetivamente ocorreu, é muito provável que chegue perto desse número.


Desde o pacote, a receita do governo aumentou mas a despesa também cresceu. E o déficit público subiu.

Gustavo Franco - É verdade que o déficit subiu, mas não há necessariamente relação com o pacote. Há outras coisas que fizeram o déficit piorar, como a alta dos juros e a desaceleração da economia. Não estou feliz com o déficit público. Acho que a resposta à crise asiática foi perfeita, mas a política fiscal ainda tem um certo caminho para andar.

Ou seja, a situação fiscal é mesmo grave?

Gustavo Franco - Mais ou menos. Vamos olhar um pouco os números. O tamanho da dívida pública total em 1993 era de 33% do PIB. Em março de 1998, passou para 36% do PIB. A deterioração foi pequena, absolutamente incompatível com os adjetivos que eu tenho ouvido. Por quê? Em primeiro lugar, é claro que as receitas de privatização ajudaram muito a estabilizar esse número. Além disso, o PIB também cresceu. Olhando para o futuro, a relação da dívida sobre o PIB não está longe de se estabilizar. Se a economia crescer 4% em um determinado ano, um déficit público de 4% faz com que a relação entre dívida pública e PIB se mantenha estável. Com 4% do PIB de déficit, ou 6% de déficit mas com receitas de privatização de 2% do PIB, a dívida se mantém estável. Vamos lembrar que, para entrar na União Européia, a exigência é dívida pública de até 60% do PIB, quase o dobro da nossa. Acho que o déficit público vai cair bastante até o final de 1999. Em primeiro lugar, pela queda dos juros. Depois, há a privatização. O governo colocava algo como 300 milhões de reais todo ano nas ferrovias, e não vai botar mais.

Mas a política monetária ainda é mais rigorosa do que a política de gastos ...

Gustavo Franco - Quando eu morava nos Estados Unidos, o presidente Reagan quis fazer um grande programa de armamento. Como o banco central lá não quis pintar papel para financiar esse gasto, o governo teve de vender títulos ao público para receber dólares. Teve, portanto, de pagar uma taxa aos poupadores por esses dólares e isso faz os juros subirem. E subiram. Com isso, o investimento privado foi prejudicado. É isso que está acontecendo no Brasil. O governo tem uma enorme dificuldade de rolar sua dívida. Se ele tivesse suas contas em ordem, teríamos mais investimento privado. Para o estado viver além de seus próprios meios há três alternativas. Uma é tributar com impostos. Outra é tributar os pobres com a inflação. A terceira é tributar a produção e as gerações futuras por meio do aumento de sua dívida.


O senhor falou em crise asiática. A Ásia ainda assusta?

Gustavo Franco - Seria muito azar que, depois duas crises nos mercados emergentes desde 1995, acontecesse mais uma em 1998. Primeiro foi o México, depois foi a Ásia. Parte do problema na Ásia já foi encaminhado em países como Tailândia, Filipinas, Malásia e Coréia.

E o Japão?

Gustavo Franco - Seus problemas já estão lá há um bom tempo. Não há propriamente uma crise aberta. É claro que o efeito da desaceleração da economia japonesa sobre o mundo é negativo. É preciso ver quanto tempo levará para que o Japão faça um Proer bem feito. A tendência é um lento processo de solução dos problemas japoneses.

Como o Japão crescendo pouco, como fica a economia mundial?

Gustavo Franco - A economia americana segue em boa forma e a economia européia está melhorando. O fato de a terceira locomotiva da economia mundial estar meio abalada não chega a ser um problema gigantesco.

A China, na sua opinião, pode desvalorizar sua moeda e recomeçar a crise da Ásia?

Gustavo Franco - Se você acha que os países asiáticos que desvalorizaram sua moeda vão se tornar supercompetitivos, é possível pensar que a China faça o mesmo. Só que, por enquanto, o resto da Ásia não está mais competitivo. Acho que a China, assim como a Rússia, não resolverá seus problemas com desvalorização. A Rússia, por exemplo, tem superávit em conta corrente. Como ela tem petróleo, consegue reservas internacionais furando o chão. Eles têm um problema fiscal sério, mas ao mesmo tempo têm ativos extraordinários a serem privatizados. O problema é conseguir ligar ativos e passivos domésticos. São problemas que não se resolvem com desvalorização.

Falando de eleições: o crescimento da oposição nas intenções de votos no Brasil pode, na sua opinião, afugentar investidores?

Gustavo Franco - Em qualquer lugar do mundo o ofício da oposição é dizer que a política econômica está errada. A eleição é, ao menos em potencial, uma mudança da política econômica com data marcada. É claro que, em alguns lugares, essas mudanças são menores, pois os problemas fundamentais já foram resolvidos. Aqui, acho que há pouca naturalidade em encarar o óbvio: a oposição fará uma política diferente. É um direito absolutamente sagrado, e na verdade é o ofício da oposição, dizer que fará algo diferente e melhor. Mas eu não tenho absolutamente nada a ver com isso. Quem tem de dizer o que vão fazer são eles. Quem tem de se preocupar com a possibilidade de os investidores ficarem assustados são eles.


Um banco central independente facilitaria uma transição complexa?

Gustavo Franco - Em toda a parte tem sido proposto que a direção do Banco Central tenha um mandato e que esse mandato não coincida com o do presidente da República. Isso evitaria consideravelmente as descontinuidades.

Muita gente acha que seria possível reduzir o juro se o Banco Central desvalorizasse menos o real, pois o ganho em dólar do aplicador seria mantido. O que você acha disso?

Gustavo Franco - Boa parte do capital que vem para o Brasil não quer saber qual é a taxa de juros ou a desvalorização cambial. Os investimentos diretos não olham para a taxa de juros. Os investimentos em bolsa também não estão preocupados com isso. Só esses dois itens somam 70% do déficit em conta corrente. Além disso, há outros 40% em empréstimos sujeitos a um prazo mínimo de dois anos. Portanto, não precisamos do capital de curto prazo. Esse dinheiro de curto prazo já havia saído quase todo até a crise da Ásia. Como os juros subiram desde outubro, eles voltaram, mas já estão saindo. Algumas pessoas ficam dizendo que o Banco Central tem um limite para reduzir os juros, pois depende do capital especulativo, mas isso não é verdade.

Então, por que não caem logo os juros?

Gustavo Franco - Porque é melhor reduzi-los devagar para que esse dinheiro saia lentamente. Assim, a saída é ordenada.

Ainda é necessário que o real seja desvalorizado acima da inflação?

Gustavo Franco - É claro que a desvalorização acima da inflação não vai durar para a sempre. Mais do que isso, eu não posso falar. Sobre as políticas operacionais do Banco Central não se fala, se faz.

O fenômeno da inflação acabou no mundo?

Gustavo Franco - É possível que sim. A inflação era um fenômeno típico da periferia do mundo desenvolvido. A disseminação de bancos centrais cada vez mais independentes, sistemas bancários cada vez mais privados e orçamentos mais transparentes na periferia condena à inflação baixa. Nos últimos 50 anos houve uma disseminação fantástica dessas instituições. À medida que isso acontece, a inflação se enfraquece. Desde o século 17 houve todas as formas de experiências na emissão de moeda e na relação entre fisco e governo. No final, o mundo convergiu para um padrão quase uniforme.


Quais são os aspectos do Plano Real que mais o satisfazem?

Gustavo Franco - Orgulho-me muito de ter dito, desde quando o presidente ainda era ministro, que o programa de estabilização teria de se transformar em um programa de desenvolvimento. Os fundamentos macroeconômicos, que faltaram aos outros planos, eram verdadeiras reformas. Tinham que ver com modificação no papel do estado e na equação distributiva. Hoje, olho para trás com satisfação. O plano está dando certo porque trabalhamos nas coisas fundamentais: privatização e produtividade. Há mil outros problemas, como previdência, questão fiscal ou pobreza. Mas esses dois pilares básicos de uma mudança no modelo econômico foram construídos. Daqui para a frente, devemos fortalecer esses pilares. Assim, criamos as condições para combater a pobreza.

E quais são as maiores preocupações?

Gustavo Franco - A preocupação é que o conteúdo político da mudança no papel do estado faz com que a velocidade do processo seja exasperante. Não me conformo com a velocidade da reforma da previdência. Algo tão importante, lógico e inevitável não pode ser tratado dessa forma. Mas isso é democracia e não há outra maneira de fazer essas mudanças.

Certos cargos cobram um preço pessoal muito alto. Qual é esse preço para você?

Gustavo Franco - Há muitos aborrecimentos neste emprego. É um cargo que traz uma grande exposição, lembra um pouco o cargo de técnico da seleção brasileira. Nós confrontamos interesses e há uma oposição que não está aí para nos apoiar. Mas, em termos de experiência profissional, não há nada como consertar o Brasil. É extraordinário.

E o desgaste físico?

Gustavo Franco - De vez em quando tomo um Lexotan, como qualquer pessoa. Mas também há coisas das quais gosto. Como professor, eu adoro debater. O debate intelectual honesto é extraordinário. Infelizmente, debato com pessoas que estão defendendo seus interesses e não estão genuinamente querendo aprofundar idéias. É um debate político, que é honesto em um outro plano. São pessoas que vão falar mal do governo, independentemente do que nós fizermos.

O poder afetou você?

Gustavo Franco - Não acho que me afetou muito. Há mudanças supérfluas na vida com esse tipo de emprego, como exposição na mídia, o carro, o segurança etc. Hoje em dia, tudo o que falo ganha uma importância desproporcional. Como presidente do Banco Central, já não posso falar certas coisas que falava antes.

Muitos têm falado que o economista do século é Milton Friedman, da universidade de Chicago. Você concorda?

Gustavo Franco - Não. Minha escolha seria o inglês John Maynard Keynes. Ele é uma pessoa muito mais fascinante do que o Friedman, com uma inserção cultural muito mais rica e com uma participação no serviço público extremamente interessante. Estou falando do Keynes que eu vejo. Outras pessoas olham para suas idéias de forma diferente.

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