Revista Exame

Guinada ESG abre espaço para novos negócios no mundo da moda

Seja por premissa desde a fundação, como no Grupo Malwee, seja por exigência do mercado, a indústria da moda percebeu que não dá para andar para trás no caminho da sustentabilidade

Moda: Em quase 15 anos, o tema saiu do âmbito dos ambientalistas e virou, de fato, uma das principais tendências num setor acostumado a elas (Sinan Dönmez/Getty Images)

Moda: Em quase 15 anos, o tema saiu do âmbito dos ambientalistas e virou, de fato, uma das principais tendências num setor acostumado a elas (Sinan Dönmez/Getty Images)

Marina Filippe

Marina Filippe

Publicado em 20 de janeiro de 2022 às 05h21.

Última atualização em 8 de abril de 2022 às 16h00.

A trajetória da fabricante de malhas Malwee é, talvez, um dos melhores exemplos no Brasil de um negócio de moda com premissas ambientais integradas ao modelo de negócios. Aberta em 1968 pelo descendente de alemães Wolfgang Weege em Jaraguá do Sul, cidade de 160.000 habitantes no norte de Santa Catarina, a Malwee tinha como ambição inicial fabricar roupas resistentes à máquina de lavar.

Na época, tanto a máquina de lavar quanto os tecidos duradouros eram artigos raros. Com método produtivo próprio, a Malwee acabou conquistando fama pela malha capaz de durar anos a fio. Assim, ganhou uma agenda ESG muito antes de o tema virar moda. Já nos anos 1970, motivado por um discurso ambientalista ainda incipiente no mundo, Wolfgang construiu um parque nos arredores da fábrica com 1,5 milhão de metros quadrados, 40.000 árvores, 16 lagoas e 150 espécies de aves nativas. 

Veja exemplos práticos de como as empresas geram valor aos seus negócios com as normas do ESG

A chegada do neto Guilherme à presidência da empresa, em 2011, reforçou a pegada sustentável. De lá para cá, a Malwee encolheu o próprio portfólio em 20% e limitou o lançamento de coleções a quatro vezes por ano, numa tentativa de fazer diferente num universo da moda dominado pelo fast fashion, conceito para coleções com prazo de validade diminuto — e muito desperdício de recursos naturais. Rejeitar a ideia de lançamentos indiscriminados de peças fez bem à Malwee.

Na última década, a malharia virou um conglomerado com cinco marcas e receita estimada em 1,5 bilhão de reais (a empresa não comenta). Guilherme vê a bonança como resultado da pegada sustentável. “Não tive um momento ‘eureca’ sobre como mudar para agir de forma sustentável; foi uma coisa natural que deveria continuar”, diz ele, prometendo seguir o legado humanista do avô, falecido em 1987, quando Guilherme tinha 7 anos. “Me lembro de ele falar que, quando a gente é mão-aberta, pega o dinheiro, vai atrás da oportunidade, para depois distribuir os frutos. Quando a gente é mão-fechada, não dá para agarrar nada. Isso marcou meu jeito de trabalhar”, diz.

Guilherme Weege, da Malwee: pelo menos 3 horas por dia dedicadas ao tema da sustentabilidade (Leandro Fonseca/Exame)

Ao que tudo indica, mais gente pensa como Guilherme na indústria têxtil. Em meio às consequências da pandemia, evento considerado por muitos um desastre ambiental, poucas vezes falou-se tanto em “moda ética”, um conceito de negócios com algum tipo de preocupação ambiental. A origem da discussão remonta a 2007, numa reportagem da revista britânica The Ecologist sobre questionamentos crescentes de clientes em países ricos sobre a montoeira de roupas produzidas para ser usadas uma vez só ou ficar encalhadas em araras de lojas fast fashion.

Em quase 15 anos, o tema saiu do âmbito dos ambientalistas e virou, de fato, uma das principais tendências num setor acostumado a elas. Pouco antes da pandemia, o faturamento de empresas de moda de alguma maneira certificadas pelas práticas éticas na produção beirava 6 bilhões de dólares no mundo. A crise sanitária, e o despertar geral para o bem-estar do planeta, devem fazer esse mercado faturar 15 bilhões de dólares em oito anos, diz a empresa de análise de mercado Research and Markets. É ainda um nicho numa indústria que, só pela internet, vendeu 759 bilhões de dólares em 2021. Mas, a julgar pelo volume de lixo gerado por indústrias têxteis, varejistas e consumidores (com descarte de peças usadas, desperdício de tecidos em roupas encalhadas ou malfeitas, e por aí vai), o reaproveitamento de matérias-primas deve virar uma peça-chave no futuro da indústria da moda.

Repetido à exaustão nas empresas com práticas ESG para indicar metas de desperdício zero de recursos naturais, o conceito de economia circular deve ganhar força na indústria da moda nos próximos anos. As receitas com a venda ou o aluguel de itens de segunda mão, ou a reparação de peças defeituosas, devem saltar de 3% para 23% do mercado global da moda até 2030, de acordo com a Fundação Ellen MacArthur, ONG dedicada ao tema da economia circular. “Falamos aqui de uma oportunidade de até 700 bilhões de dólares”, diz Luisa Santiago, líder da fundação na América Latina.

Ponto de coleta do brechó online Troc: expansão acelerada após aquisição por parte da Arezzo&Co (Divulgação/Divulgação)

Por trás do otimismo com a moda sustentável está o alvoroço das grandes varejistas com o tema — com reflexos também no Brasil. Nos últimos meses, a operação da varejista C&A no país investiu 100 milhões de reais num software de banco de dados parrudo para monitorar basicamente tudo o que acontece nas lojas e nos centros de distribuição da companhia. O intuito da ferramenta é ajustar a reposição das araras para priorizar peças e tamanhos com mais saída e, assim, reduzir a presença de itens com mais risco de encalhe. A novidade acelerou a revisão de portfólio, até então feita em média a cada três semanas.

“Por meio desse software entendemos o apetite de compra e mandamos a reposição da peça, e o tamanho exato, apenas para onde mais precisamos dela, sem gerar tantos excedentes”, diz Cynthia Kasai, gerente de ESG da C&A Brasil. Em outra frente, a varejista escalou a ONG Better ­Cotton Initiative para certificar o algodão dos tecidos vendidos ali. Hoje, 80% deles passam pelo controle. Na incerteza da pandemia, a aposta na sustentabilidade melhorou a alocação dos recursos e, de quebra, reduziu custos operacionais. “O resultado é um preço mais competitivo ao cliente”, diz Kasai. Em agosto, entre os itens mais vendidos da C&A no Brasil estava a coleção Ciclos, de peças ilustradas com personagens da Disney e com produção certificada como de baixo impacto ambiental.

A preocupação ambiental das varejistas chegou ao ponto de venda. Em novembro, Renner e Riachuelo abriram unidades com essa pegada no Rio de Janeiro. Na Renner, o retrofit de uma unidade reaproveitou 94% das matérias-primas da reforma. A energia da loja vem de uma usina eólica. Em 20 anos, o carbono economizado na reforma e na operação limpa deverá ser o equivalente a um volume de gases cuja compensação dependeria do plantio de 1,5 hectare de Mata Atlântica.

“A novidade está totalmente alinhada com a nossa jornada ESG”, afirma Eduardo Ferlauto, gerente-geral de sustentabilidade da Renner. Na Riachuelo, a chamada Loja do Amanhã adota sistemas inteligentes de iluminação e abastecimento dos banheiros. O resultado é uma economia de 40% no consumo de água e de 60% no de energia na comparação com lojas convencionais. “Nosso compromisso é que todas as próximas inaugurações sigam esse padrão”, diz Mauro Mariz, líder do projeto na Riachuelo. Em paralelo, a varejista escalou o Instituto de Pesquisas Tecnológicas da Universidade de São Paulo para encontrar maneiras de jogar menos insumos fora na produção ou reaproveitar roupas doadas pelos clientes. “Estamos falando de 4.000 toneladas de resíduos”, diz Mariz.

(Arte/Exame)

Apesar das boas novas, a bem da verdade a indústria da moda está mal na foto na agenda ESG — e o comércio eletrônico tem parcela de culpa. Por aqui, somente 25% das varejistas têm iniciativas de conformidade com regras ambientais ou responsabilidade social, de acordo com a Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX). Negócios como Renner, Riachuelo e C&A, onde essas discussões fazem parte da ordem do dia, vendem apenas 19% do total do varejo de moda e acessórios. Muita gente segue pouco ou nada monitorada.

A questão é mais aguda em varejistas online que viraram febre nos últimos anos, como a chinesa Shein, com receitas estimadas em impressionantes 56 bilhões de reais mundo afora em 2020, segundo a plataforma de análise CB Insights. Boa parte dessa grana vem de consumidores de países emergentes, como o Brasil, atraídos por uma marca acostumada a lançar até 600 peças diferentes todos os dias, a preços muito baixos. A distância entre a origem das peças — geralmente asiática — e o mercado consumidor trava esforços de transparência ao longo da cadeia. 

Além disso, fragmenta ainda mais o setor. Hoje, só 44% das marcas globais publicam metas de sustentabilidade, e 30% revelam a origem das matérias-primas utilizadas nas roupas, de acordo com o Índice de Transparência da Moda, pesquisa apoiada por ONGs dedicadas ao tema da moda ética, como as britânicas Fashion Revolution e Ethical Consumer. Assim, a indústria da moda segue culpada por 20% da poluição da água no mundo e causando problemas que saltam aos olhos, como um lixão clandestino no Deserto do Atacama, no Chile, de roupas descartadas nos Estados Unidos, Europa e Ásia. Por ano, o local recebe 59.000 toneladas de peças (em média, a desintegração de cada uma leva 200 anos).

Lixão da moda no Deserto do Atacama, no Chile: 59.000 toneladas despejadas de maneira irregular — e uma vergonha mundial para o setor (Martin Bernetti/Getty Images)

Quem está na vanguarda da moda ética tem, agora, a missão de transformar o tema em tendência. É o caso de Guilherme Weege. A trajetória ESG da Malwee, uma marca premiada no Índice de Transparência da Moda, virou cartão de visita. “Das minhas 12 horas diárias de trabalho, 25% são para falar sobre sustentabilidade”, diz ele. “Hoje é preciso entender sobre carbono, justiça, sociedade e muito mais.” Há dois anos, Guilherme virou um embaixador da Rede Brasil do Pacto Global, fórum da ONU para avançar a agenda de mudança climática. Por trás do intuito de arregaçar as mangas está uma visão de longo prazo. Ao divulgar o Plano ESG 2030 (veja quadro na pág. 85), a Malwee criou um hub de conhecimento de melhores práticas de moda — para, assim, fomentar mais negócios entre quem já abriu os olhos para o problema. “Vejo o Guilherme de 20 anos atrás em muitas dessas marcas que têm vontade, mas não sabem como fazer. Podemos fazer de forma estruturada”, diz, motivado em compartilhar processos sustentáveis da Malwee, como o jeans cuja lavação industrial leva somente o volume de um copo americano de água ou o amaciante de roupas feito com extrato de cupuaçu. 

Desfile da varejista online chinesa Shein: 56 bilhões de reais em faturamento e volume acelerado de lançamentos (Stefanie Keenan/Getty Images)

Em outra frente relevante, executivos da moda querem engajamento dos consumidores. Parte da missão de Guilherme, hoje, é motivar os clientes da Malwee a replicar o que a marca faz. Em 2019, a Riachuelo criou um comitê de governança e sustentabilidade com essa pegada. “O tema sempre esteve no radar da companhia, mas ali foi para outro patamar ”, diz Mariz.

De lá para cá, os executivos da Riachuelo sentam à mesa duas vezes por mês para monitorar indicadores de sustentabilidade. Mesmo varejistas online abertos nos últimos anos têm medidas nessa linha. Na Amaro, de 2012, o próprio presidente Dominique Oliver toca a iniciativa. Há 18 anos, Oliver escreveu uma espécie de trabalho de conclusão de curso do ensino médio, em Zurique, sobre o sistema de compra e venda de créditos de carbono para a indústria na União Europeia. “Agora, tantos anos depois, o mercado avança, mas ainda há muitas discussões sobre como agir de fato”, diz.

Por isso, o executivo não esperou maiores decisões governamentais em importantes momentos — como a 26a Conferência das Partes, a COP26, que ocorreu em novembro em Glasgow, na Escócia — e assinou uma parceria com a consultoria Biofílica para neutralizar o equivalente a duas vezes a emissão de carbono da cadeia produtiva da Amaro. (A emissão de carbono é um dos maiores problemas da indústria. Em 2018, o setor gerou 2,1 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa, 4% do total global.) Atualmente, a Amaro possui um comitê de sustentabilidade com nove pessoas dedicadas a pensar em mais metas. “Essa é uma premissa que toda empresa deveria ter”, diz Oliver.

A guinada ESG abre espaço para novos negócios na moda. Em 2017, a empreendedora Luanna Toniolo largou a carreira de advogada tributarista para fundar o brechó online Troc, sediado em Curitiba. A ideia veio num curso de marketing na Universidade Harvard, onde Toniolo estudou também conceitos de capitalismo consciente. “Ali uni moda, que já era uma paixão, com o propósito de ter um legado positivo”, diz.

Ver de perto o mercado de brechós nos Estados Unidos a motivou a dar um “banho de loja” nesse nicho no Brasil. O modelo de negócios da Troc é de anúncio de peças premium. O material é precificado com valores médios entre 120 e 500 reais. A Troc fica com uma comissão entre 30% e 60%. “Temos uma audiência qualificada que entende o valor da peça e do nosso trabalho”, diz Toniolo. Em menos de três anos a companhia faturou 10 milhões de reais e chamou a atenção do grupo Arezzo&Co, que comprou 75% da Troc em novembro de 2020. De lá para cá, a Troc saltou de 26 para 130 funcionários, inaugurou duas lojas físicas temporárias e passou a ter postos de coleta de roupas de gente disposta a faturar online nas lojas físicas do grupo Arezzo&Co, como a Schutz. Na Renner, a revenda de roupas usadas ganhou força em junho de 2021 com a compra da startup Repassa, fundada seis anos antes já no espírito brique-a-braque sustentável. “Estamos no processo de integração para melhor aproveitar a cultura de uma empresa que já nasceu ESG”, diz Ferlauto, da Renner. 

(Arte/Exame)

Há ainda uma porção de desafios pela frente na jornada ESG das empresas de moda. Entre os principais estão o investimento em tecnologias e em insumos mais sustentáveis para ganhar escala e baratear os custos. Até lá, há um trabalho de educação do consumidor de ver valor na peça. Na Alme, marca própria da Arezzo&Co com coleções limitadas e matérias-primas certificadas, o tênis mais caro custa 395 reais e o mais barato sai por 155 reais. “A ideia é dar opção para quem quer ser mais consciente, além de mostrar o valor do item”, afirma Maria Toledo, diretora de novas marcas da Arezzo&Co.

Ainda sem esforços conjuntos do setor, as empresas têm feito um trabalho de formiguinha com fornecedores em busca de soluções. Um empecilho é a falta de clareza de prioridades em ações como o uso de algodão mais sustentável ou a redução das emissões de carbono. “O escopo e a complexidade das questões que as marcas de moda devem enfrentar exigem uma resposta coletiva”, escreveu Angela Adams, uma das principais especialistas em moda sustentável do mundo, em um artigo recente. Até lá, o empenho de pessoas como Guilherme Wee­ge vai ser fundamental para o assunto não sair de moda.  


A JORNADA ESG DA MALWEE

Fundada em 1968, uma das principais indústrias têxteis do Brasil deu os primeiros passos na agenda de sustentabilidade ainda nos anos 1970. Hoje, tem metas ambiciosas para 2030

→ 1968

Fundação em Jaraguá do Sul (SC) como Malwee Malhas pelas mãos de Wolfgang Weege

→ 1978

• Abertura do Parque Malwee, área verde de 1,5 milhão de metros quadrados nos arredores da sede

→ 1998

• O aterro, destino dos rejeitos produtivos, passa a ser monitorado para evitar desastres ambientais

→ 2003

• As fábricas passam a reutilizar água. Atualmente, 100% da produção usa esse sistema

→ 2008

• Início da contagem de emissões de carbono e dos mecanismos de neutralização

→ 2011

• Guilherme Weege, terceira geração da família, assume os negócios com o compromisso de acelerar a agenda sustentável

• O portfólio passa a contemplar produtos sustentáveis, como o algodão orgânico

→ 2015-2020

• Lançamento de dois planos de sustentabilidade com metas ambiciosas

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