Sala de faculdade da Kroton: o ensino básico é a nova frente de expansão (Germano Lüders/Reuters)
André Jankavski
Publicado em 5 de julho de 2018 às 05h00.
Última atualização em 2 de agosto de 2018 às 12h38.
A agenda noturna dos pais da escola Santi, em São Paulo, estava fechada no último dia 19 de junho: assistir aos filhos em um sarau literário na sede da escola, às 18 horas. Mas, na manhã daquele dia, os administradores da escola enviaram um e–mail afirmando que o evento fora cancelado, pois um anúncio seria feito no mesmo horário e local. A rede paulista de educação Somos havia comprado a escola por cerca de 40 milhões de reais. A mudança de donos numa instituição de ensino tradicional, como a Santi, fundada em 1969, é sempre um acontecimento. Mas o negócio em questão é mais complexo. A Somos comprou, mas o dono da Santi vai ser outro: a Kroton, maior grupo de educação privada do planeta. Em abril, a Kroton anunciou a compra da Somos num negócio de 4,6 bilhões de reais. Para ser concretizada, a aquisição ainda precisa passar pelo crivo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), procedimento que pode levar mais 11 meses. É um período de espera letárgica, que costuma paralisar a empresa adquirida. Mas a Somos foi autorizada a seguir comprando.
Além da Santi, a Somos está para fechar mais uma compra em São Paulo, no valor de 60 milhões de reais, e outra no Nordeste. Os contratos já estão prontos, mas as empresas envolvidas decidiram deixar o anúncio para o fim de julho, quando as aulas voltarão. Executivos ouvidos por EXAME afirmam que um acordo com a Kroton permite à Somos investir os 315 milhões de reais que tem em caixa em até dez aquisições daqui para o final do ano. O curioso nesse caso é que a Kroton, pela lei, não pode ter acesso à estratégia de aquisições da Somos. A Somos é um dos maiores grupos de educação básica do país, com 33 escolas. A Kroton, líder em educação superior com 997 000 alunos, escolheu a educação básica como uma nova prioridade. Mapeou 13 mesorregiões do país onde seria interessante comprar uma escola tradicional para, depois, construir até cinco unidades em bairros e cidades vizinhas com aquela marca. Como não sabe qual é a estratégia da Somos, a Kroton só pode torcer para que os planos das duas empresas coincidam.
Essa autorização da Kroton é uma espécie de blindagem contra uma eventual demora do Cade — que deve mesmo aprovar o negócio, de acordo com executivos ligados à autarquia federal. Trata-se de algo que a Kroton conhece bem. No ano passado, a tentativa de comprar a segunda maior companhia de ensino superior, a Estácio, foi negada pelo Cade após um ano de espera. Agora, a Kroton preferiu não esperar, ainda mais porque a concorrência vem se mexendo. Um exemplo é o Grupo SEB, maior rede de escolas básicas do país. Somente neste ano, o SEB comprou a escola carioca A a Z e o Colégio Visão, em Goiânia, passando a ter 43 colégios próprios. Além disso, Chaim Zaher, fundador do SEB, está para criar uma bandeira popular chamada Luminova. A intenção é oferecer uma alternativa às escolas públicas, com mensalidades de até 500 reais. Já a Eleva, que tem o empresário Jorge Paulo Lemann como o maior acionista individual, fez seis aquisições desde 2011 e está investindo na expansão nacional da bandeira carioca Elite — os estados de Minas Gerais, Paraná e Mato Grosso do Sul devem receber colégios em breve. A Estácio, segundo maior grupo de ensino do país, avança devagar: criou oito turmas de 45 estudantes em diferentes campi de ensino superior no Rio de Janeiro. “Ainda há muita incerteza no mercado e com margens bem menores do que na graduação”, diz um executivo ligado à Estácio.
A compra da Somos é o maior passo da Kroton para chegar à liderança do setor. Em abril, a Kroton criou uma nova marca para o ensino básico, a Saber, e anunciou sua primeira aquisição, o Centro Educacional Leonardo Da Vinci, em Vitória. A Saber nasceu dona dos sistemas de ensino Rede Pitágoras, Rede Educação e Valores e Rede Cristã de Educação, e do Colégio Pitágoras, em Belo Horizonte. A ideia é aproveitar a pulverização de um mercado com mais de 30 000 escolas particulares e que fatura, por ano, 101 bilhões de reais, segundo estimativa da consultoria Hoper Educação. Atualmente, há 8,8 milhões de estudantes matriculados no ensino básico privado, menos de 20% do total de alunos no Brasil. No ensino superior, por outro lado, 75% dos alunos estudam em instituições particulares.
Uma pergunta que fica é se o valor da aquisição da Somos pela Kroton pode sofrer alterações até a decisão do Cade, dependendo dos resultados e do valor de mercado das empresas. Em 2014, a Kroton passou por uma mudança dessa natureza enquanto estava aguardando o desfecho da fusão com a companhia de ensino superior Anhanguera. Durante os 12 meses da análise do Cade, as ações da Kroton mais que dobraram de preço, enquanto os papéis da Anhanguera avançaram apenas 25%. Com isso, as empresas tiveram de rever a relação de troca das ações em termos mais favoráveis para a Kroton. Desta vez, se o dinheiro da Somos for bem investido, poderá acontecer o contrário. Procuradas, Kroton e Somos não quiseram dar entrevista. Desde o anúncio da aquisição, as ações da Kroton caíram 35% e as da Somos valorizaram 49% (até o dia 3 de julho). “A Somos está trocando caixa por ativos. Não muda nada no negócio”, diz um executivo próximo à Kroton.
A compra da Santi ajudou a mostrar outros desafios que tanto a Kroton quanto a Somos podem enfrentar daqui para a frente. No mesmo dia em que o sarau li-terário foi cancelado e a divulgação da venda da Santi foi feita, um grupo de pais procurou os diretores da escola com uma lista de demandas. Eles não queriam que, com a aquisição, os novos controladores usassem estratégias para ganhar rentabilidade no curto prazo. Medidas como elevar o número de alunos por sala, reduzir a quantidade de professores, aumentar a mensalidade acima da inflação, entre outras que queriam evitar, foram postas em um abaixo-assinado, apoiado por metade dos pais dos 700 alunos. “Alguns estão dispostos a retirar os filhos da escola se a Somos e a Kroton focarem os resultados de curto prazo”, diz uma mãe que faz parte do grupo de pais da Santi. “Eu mesma já estou procurando outras escolas.”
A Kroton se prepara para responder a esse tipo de questionamento. A Saber foi criada para distanciar a marca do estilo de gestão Kroton, focado nos ganhos de escala do ensino superior. Executivos da Kroton afirmam que a prioridade de suas universidades é oferecer educação de qualidade a preços justos — de acordo com o Índice Geral de Cursos, 96% das instituições da Kroton tiveram notas melhores do que 3 (em uma escala de 1 a 5). Colégios de elite, como os que estão no alvo dos grandes grupos, com mensalidades que podem ultrapassar os 7 000 reais, são conhecidos por prestar serviços mais personalizados e próximos de pais e estudantes, algo diferente do ensino superior. A Kroton planeja manter as marcas das escolas adquiridas e também o sistema de ensino. Com o negócio, a empresa poderá chegar a 13 sistemas de ensino espalhados pelo país, algo que trará custos maiores, mas, na visão de seus executivos, evitará as preocupações de uma padronização do ensino. “O desafio do segmento de educação básica é mostrar que as ideias de escala e qualidade podem se combinar”, diz William Klein, presidente da consultoria Hoper Educação.
A formação da nova empresa exigirá uma operação financeira complexa. O preço oferecido pela Kroton à Somos é considerado alto por analistas que acompanham a empresa: pode chegar a 6,2 bilhões de reais, levando em conta a proposta pública de aquisição que precisará ser feita a todos os acionistas após a aprovação da compra da fatia de 73% do controlador, o fundo Tarpon, por 4,6 bilhões. Um levantamento feito pelo professor Marcos Piellusch, da Fundação Instituto de Administração, ligada à Universidade de São Paulo, dimensionou alguns efeitos no caixa que a compra da Somos deverá gerar. A Kroton planeja emitir 5,5 bilhões de reais em debêntures para a aquisição, o que acarretará um pagamento de juros de cerca de 350 milhões por ano. A Kroton calcula sinergias de 300 milhões de reais com a aquisição da Somos, mas elas não devem aparecer no primeiro momento. Seus executivos afirmam que a compra oferece uma nova avenida de crescimento, e que o negócio só foi fechado porque a própria empresa conseguirá pagar por ele. Isso, claro, caso o Cade aprove a aquisição. Se a espera será longa, não dá para saber, mas tende a ser animada.