O economista Gustavo Franco traz uma reflexão sobre os descaminhos do Brasil em seu novo livro, Lições Amargas. Para ele, o Brasil está estacionado há décadas e segue falando de reformas que o resto do mundo já deixou para trás. Olhando para a frente, defende uma terceira via que freie a polarização e implemente um “new deal” capaz de trazer pujança à economia brasileira (Divulgação/Divulgação)
Angela Bittencourt
Publicado em 19 de agosto de 2021 às 05h08.
Em suas 256 páginas, Lições Amargas, livro recém-lançado pelo economista Gustavo Franco, traz uma reflexão sobre os descaminhos do Brasil. Não se prende ao passado, revela apreensão quanto ao futuro e mergulha nas inesperadas e profundas transformações trazidas pela pandemia. Suas consequências prolongadas, afirma, podem levar à tentação de nada fazer à espera de que tudo passe.
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O livro é o desabafo de alguém que acabou de completar sua aposentadoria pelo INSS aos 65 anos e que, desde os 25, acreditava que o Brasil seria um país rico. “É uma decepção muito grande”, confessa à EXAME o ex-presidente do Banco Central (BC), sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e um dos mais conceituados economistas brasileiros.
Expoente de sua geração, Gustavo Franco participou da elaboração e execução do Plano Real, em 1994, que resgatou o país da hiperinflação e criou a moeda que circula até hoje. O economista e escritor vê o Brasil estacionado — em parte pela pandemia, em parte pelo adiamento de reformas que envelheceram sem nem sequer terem sido lançadas.
Ele acredita ser necessário enunciar um novo formato e um novo cardápio de reformas, e talvez o próximo governo seja um gatilho para isso. No cenário internacional, o economista avalia que excessos de liquidez historicamente se encerram bruscamente e com destruição de riqueza financeira.
Já os bancos centrais migraram para um “novo normal” e, hoje, além de mais injeção de dinheiro, tratam de assuntos ambientais e moeda digital. “É outro mundo”, diz. Gustavo Franco falou por videoconferência à EXAME.
Em seu livro mais recente, Lições Amargas, você diz que 2021 pode acabar no verão de 2022. O tempo parou?
O ano de 2021 pode acabar até em 2023 ou depois. A imagem é do tempo estacionado. Nós ficamos encaixados numa mesma dobra do tempo, num gerúndio infindável, fazendo coisas. No livro estou indo e voltando na história do desenvolvimento econômico nas últimas décadas e da experiência da pandemia. Essas experiências são parecidas.
E a pandemia acaba sendo reveladora por aclarar essa sensação de procrastinação eterna, perda de tempo, discussões de tantos temas e sem sair do lugar. Hoje, falamos das reformas de que eu falava quando saí da faculdade e que o resto do mundo já deixou para trás. É uma decepção muito grande.
No livro você alerta para a necessidade de reformar o conceito de reforma para o país avançar. Convivemos com um conceito ultrapassado?
Sim. E o melhor exemplo é a reforma tributária. Lá atrás havia um conceito de que deveríamos destruir tudo e refazer o sistema tributário sobretudo quanto a impostos indiretos, depois os diretos. Mas a falha em conseguir executar nem uma parcela diluída do assunto e o fiasco que foi esse “pacotão” tributário recém-anunciado [resumido na revisão do imposto de renda] são sinais de que o enunciado da reforma não é o mesmo. Até porque a Receita Federal não é o personagem mais importante. A bola ficou com o Congresso.
Isso quer dizer que os fiascos acontecem em decisões de governo?
Os fiascos acontecem na política econômica. É do jogo. No caso do imposto de renda, felizmente foi encaminhado um projeto de lei que a Câmara dos Deputados consertou. Mas a coisa está tão de cabeça para baixo que o Executivo manda um projeto e ele melhora na Câmara. O projeto segue para o Senado e vai ter mais mudança. O que vai sobrar, provavelmente, será apenas o reajuste da tabela. E, de repente, bastava uma lei que dissesse que não pode tributar o passado.
A partir de 2022, o PIB brasileiro deverá voltar a crescer cerca de 2,5% ao ano. Será mais do mesmo. Como dobrar esse crescimento?
É preciso enunciar um novo formato e um novo cardápio para as reformas. Muitas terão de ser ainda completas, custe o que custar. Mas imagino que teremos uma nova etapa de formulação. Assim como o real trouxe uma novidade total nesse assunto, precisamos de outra formulação para atualizar o cardápio. Não sei o que pode ser o gatilho para isso. Talvez o próximo governo, mas aí é bola de cristal.
Você tem esperança de que este governo encontrará um novo cardápio de reformas a quase um ano da eleição presidencial?
Não tenho esperança em nenhum governo. Mas coisas corretas podem acontecer em qualquer governo porque elas dependem de coisas que estão muito fora da vontade dos governantes e das autoridades. Exemplo? O atual governo já fez duas rodadas da reforma trabalhista meio sem querer. O imposto sindical foi abolido no Congresso.
Mais recentemente ocorreu a redução da jornada com redução de salários, movimento que começou na Alemanha e se alastrou pela Europa. A iniciativa é inovadora e aconteceu em razão da pandemia em países com legislação trabalhista mais rígida e que precisaram de flexibilidade para enfrentar os efeitos da doença. Aqui fizemos uma legislação temporária que depois foi estendida e funcionou muito bem, considerando os trabalhadores com carteira assinada. Houve, portanto, uma segunda rodada de reforma trabalhista, sem usar esse nome e sem forçar a barra.
No fim do ano passado, junto com a ideia de extensão do auxílio emergencial — porque expirou a MP convertida em lei em 31 de dezembro — veio a ideia de ampliar a duração desses esquemas que acoplam o mecanismo europeu com o pagamento do auxílio emergencial. Na Europa, o valor varia de país para país quando o governo paga. Do ponto de vista trabalhista foi uma boa refrescada nos nossos hábitos locais.
Em sua avaliação, a reforma trabalhista, ou parte dela, ocorreu por acaso?
Por acaso. Isso quer dizer que pode, portanto, acontecer muita coisa boa em um governo que não necessariamente está pensando na coisa certa ou caminhando na direção certa conceitualmente. Este governo, sabemos desde o início, está meio dividido entre a cabeça da família Bolsonaro e a influência do Paulo Guedes e do mundo empresarial que, por meio do Paulo, quer influenciar o governo. E tem sido confuso.
O Paulo Guedes emplaca umas coisas, e há outras que ele não deixa acontecer e que a gente nem fica sabendo. Não sei como seria a vida se o Paulo não estivesse lá. O fato é que, como está tudo muito polarizado e tudo muito contrariado com o governo, com o presidente, acabamos no extremo oposto. Ouvimos que está tudo um horror e que não vai acontecer nada. Mas o fato é que às vezes acontece coisa boa.
O governo agiu de maneira pronta, correta ou a possível durante a pandemia?
No mundo inteiro os governos enfrentaram os mesmos problemas na pandemia. Os ricos aparentemente puderam fazer coisas que os pobres não puderam, sobretudo em vacina. Nós no meio, como uma economia de renda média e experiência muito boa com o Sistema Único de Saúde (SUS) e capacidade de vacinação, mas também com limitações fiscais tremendas, e sabemos quanto isso limita as ações de governo.
Aliás, se formos procurar quais foram as melhores práticas internacionais na pandemia, eu não teria nenhuma hesitação em condenar Jair Bolsonaro pessoalmente. Ele fez tudo errado. Mas, fora ele, milhares de prefeitos e governadores Brasil afora tomaram medidas.
Quais desafios serão impostos com uma polarização nas eleições de 2022?
A polarização é um horror de muitas maneiras. Até recentemente eu pensava, otimisticamente, que ela não precisava afetar muito a economia porque ambos os candidatos [referindo-se a Jair Bolsonaro e a Luiz Inácio Lula da Silva sem mencioná-los] seriam mais moderados na economia. Mas não. Não acho que nenhum dos dois vai ser moderado na economia.
Há espaço e desejo que apareça a terceira via, inclusive, para que possa abraçar um plano econômico diferente. Já temos elementos de todos esses anos para fazermos um “new deal” nosso que incorpore reformas novas, faça uma recauchutagem das velhas em formatos melhores e que nos torne uma economia mais pujante no futuro.
Um novo plano pode ser, inclusive, um grande ativo da terceira via, já que a primeira e a segunda têm ideias econômicas absolutamente confusas. Nenhum dos dois extremos têm um programa de racionalidade e de eficiência econômica e com vistas ao crescimento.
Estamos no terceiro ano do atual governo. Nesse período aconteceu alguma boa decisão econômica?
Sim, ainda que de importância menor, a Lei de Liberdade Econômica 1 e 2. É uma pena, no entanto, que em ambos os casos eles tenham voado tão baixo com as medidas. Há muita coisa para fazer no campo infraconstitucional e, portanto, se faz por medida provisória.
E as duas MPs sobre liberdade econômica — uma já virou lei — tocaram em questões específicas. As propostas tinham um conceito positivo de olhar quais são as melhores práticas internacionais e mirar, por exemplo, o Doing Business, do IFC, mas o olhar foi muito tímido.
Os bancos centrais vêm atuando pesadamente durante a pandemia. Eles continuarão a atuar como antídoto contra crises?
Nove entre dez pessoas de banco central que encontro falam hoje em dia de temas ambientais... e não vou opinar sobre isso. [Na pandemia] todos os bancos centrais fizeram a lição de 2008 numa escala ampliada, reconhecidamente carregada.
Como os bancos centrais não sabem nada de questões sanitárias, eles decidiram fazer até um pouquinho a mais do que em 2008. O remédio funcionou e foi criada muita liquidez mundo afora. Mas aí explodem preços de ações e de instrumentos como o bitcoin.
A evolução desses preços é um indicador de excesso de liquidez e exageros que são próprios de momentos críticos. Mas os bancos centrais sabiam que isso aconteceria. Os excessos nem sempre trazem bons resultados.
Mas há como coibir os excessos? Pode ocorrer uma reversão dessa liquidez após tantos anos de injeção de moeda nas economias?
Historicamente, episódios de excesso de liquidez se encerram meio bruscamente e com destruição de riqueza financeira por desvalorização súbita dos ativos que se alimentaram desses excessos durante anos. Para quem me pergunta sobre bitcoin, por exemplo, eu recomendo ler sobre as tulipas, na Holanda, no século 17, que foi o primeiro de dezenas de episódios semelhantes.
Claro que isso me assusta do ponto de vista dos impactos, que são gigantescos. Existem lá outras tantas criptomoedas, uma espécie de mercado de capitais offshore. A destruição dessa riqueza pode ter efeitos sistêmicos muito complicados. Então, me parece que o interesse dos bancos centrais em moedas digitais já é uma tentativa de entender melhor esse mundo cripto. Em algum momento, estaremos nele.