Revista Exame

O mundo no vermelho

Vivemos o momento de maior endividamento da história em tempos de paz. A solução será difícil e dolorida, com consequências para toda a economia mundial

Policiais enfrentam manifestações em Atenas: Europa em crise (Milos Bicanski/Getty Images)

Policiais enfrentam manifestações em Atenas: Europa em crise (Milos Bicanski/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h38.

No início de maio, ao assumir o posto de secretário do Tesouro britânico, o liberal-democrata David Laws recebeu um curioso bilhete de seu antecessor, o trabalhista Liam Byrne. "Caro secretário", dizia o bilhete, "o dinheiro acabou. Boa sorte! Cordialmente, Liam." Apesar do tom ligeiramente galhofeiro, o recado de Byrne é de uma precisão desconcertante. O país não tem dinheiro - mesmo. Com um rombo orçamentário que pode chegar a 12% do PIB em 2010, o Reino Unido passa por uma situação de penúria como há muito não se via. As agências de classificação de risco já avisaram que um rebaixamento da dívida britânica, algo impensável poucos anos atrás, é cada vez mais provável. Mais do que resumir a situação britânica, porém, Byrne e seu bilhete ajudaram a sintetizar a situação das maiores potências econômicas do planeta. A crônica falta de dinheiro é hoje um mal bastante disseminado entre os países mais ricos do mundo. Recentemente, uma equipe de pesquisadores do Citigroup estudou a história das finanças mundiais desde a Revolução Industrial até os dias de hoje. A conclusão é um tanto assustadora. Nunca, excetuando-se períodos de guerras mundiais, deveu-se tanto - e, pior, nunca a dívida global cresceu de forma tão descontrolada.

Países mergulhados no vermelho caminham sobre uma fina linha que separa a confiança dos credores do medo de um possível calote. Basta passar a impressão de que se está pisando no lado errado da linha, e pronto: têm-se os ingredientes para uma crise da dívida. É um roteiro conhecido e recorrente. De 1800 até hoje, já houve mais de 300 calotes soberanos, e o medo de que a história se repita - desta vez tendo países ricos como vilões - deu origem à crise das últimas semanas. No dia 9 de maio, a União Europeia e o FMI anunciaram o maior plano de resgate da história, um pacotaço de 1 trilhão de dólares cujo objetivo é eliminar riscos de calote dos países mais problemáticos da zona do euro. Pelo que foi acordado, a arquiendividada Grécia receberá 140 bilhões de dólares. Em troca, assume o compromisso de colocar a casa em ordem, cortar custos e aumentar receitas. O resto do dinheiro ficará disponível para aliviar os eventuais problemas de outros membros da zona do euro. Os mais fortes candidatos são Portugal, Irlanda, Itália e Espanha, grupo que, com a Grécia, ganhou o pouco simpático apelido de Piigs. Num primeiro momento, o pacote europeu foi recebido com alívio. No dia 10 de maio, as bolsas do mundo inteiro dispararam. No dia seguinte, porém, a desconfiança voltou ainda maior. Até o fechamento desta edição de EXAME, o Índice Dow Jones, da Bolsa de Valores de Nova York, acumulava uma queda de 10% em maio. O valor de mercado das principais empresas brasileiras caiu quase 200 bilhões de reais no mês.

A péssima reação do mercado financeiro mostrou que a crise da dívida não será resolvida com estalares de dedos, reuniões que varam a madrugada ou sacos de dinheiro. Ajustes fiscais da magnitude dos que os países europeus começam a fazer agora levam pelo menos cinco anos para dar resultado - e sempre há o risco de não surtir o efeito desejado. Tome-se a Grécia como exemplo. O país se comprometeu a cortar o déficit em cerca de 10% do PIB até 2014. Caso seja colocado em prática, será o mais draconiano ajuste fiscal já feito. Pois, mesmo que dê tudo certo, a Grécia terminará o período devendo ainda mais que hoje - uma constatação que levou ao aumento das apostas de que o país acabará renegociando sua dívida. A crise grega se torna ainda mais complexa por acontecer dentro da zona do euro.


Países em situação semelhante costumam optar pela desvalorização da moeda para estimular a economia em meio à temporada de corte de custos. As receitas crescem e o ajuste acaba sendo menos doloroso. Como a Grécia não pode fazer o mesmo, o processo não tem paliativos. É cortar, sofrer e ver o que acontece na frente. "A Grécia não tem dinheiro. Ponto final", diz o economista John Cochrane, da Universidade de Chicago. "O problema só se agrava à medida que a solução é adiada." Diante da improbabilidade de que essa história tenha final feliz, países como Portugal e Espanha foram contaminados, justamente o que o pacote pretendia evitar. O euro, assim, mergulhou numa crise existencial. Em 2010, a moeda perdeu quase 15% de seu valor em relação ao dólar.

O mundo no vermelho e a crise atual são consequência direta do pânico financeiro de 2008 - e da recessão que veio depois. Países como Estados Unidos e Reino Unido gastaram centenas de bilhões de dólares para salvar bancos em crise e, em seguida, reanimar a economia com pacotes de estímulo. A socialização dos prejuízos fez com que o risco do setor privado fosse transferido para o setor público. E risco, nesse caso, significa dívida. Antes da crise, a relação entre a dívida dos países ricos e o PIB era de 73% - alta, mas longe de dramática (veja mapa na pág. 22). Nos anos seguintes, porém, esses países lançaram mão de déficits recorde. O rombo americano, por exemplo, superou 1 trilhão de dólares anuais de 2008 para cá. O resultado é esse que aí está, uma dívida que em 2011 vai superar os 100% do PIB no grupo de países mais ricos do mundo. Essa era, aliás, uma consequência previsível. Segundo um estudo dos economistas Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart, crises bancárias levam a um aumento de 86% na dívida pública dos países afetados. E calotes soberanos costumam vir em seguida. Países como Espanha e Irlanda dependiam das receitas tributárias do setor imobiliário, que passava por uma já célebre bolha. Com seu estouro, os governos ficaram pendurados, com dívidas altíssimas e pouco dinheiro para pagar.

Embora a situação do mercado financeiro não seja em nada tão desesperadora quanto em setembro de 2008, quando o banco de investimento americano Lehman Brothers quebrou, a crise atual tem um aspecto que a torna mais difícil de resolver do que a anterior. Em 2008, a equipe econômica americana formou uma espécie de comitê de salvação planetário - e, de forma um tanto mambembe, acabou conseguindo restaurar a confiança dos investidores. A partir de março de 2009, com a constatação de que os bancos americanosestavamrazoavelmentesaudáveis depois da intervenção estatal, o mercado financeiro esqueceu o assunto e as bolsas passaram um ano subindo sem parar. Em crises soberanas, tudo é mais complicado. Vai começar agora aquilo que o jornalista americano James Surowiecki apelidou de "Era do risco político", em que as decisões econômicas mais importantes serão tomadas por governos e não por empresas ou consumidores. Em momentos de estabilidade econômica, investidores se dedicam a antecipar, por exemplo, se o lucro da Petrobras será maior ou menor do que o esperado. Já em crises causadas pelo excesso de dívida, o mais importante é prever o que acontecerá com governos, muitas vezes em situação frágil - como isso é quase impossível, o risco de choques aumenta. A partir de agora, essa incerteza será servida no café da manhã de investidores no mundo inteiro. O governo grego aguenta o tranco? O eleitor alemão está disposto a tirar dinheiro do bolso para resgatar países em apuros? O Congresso americano vai atacar o déficit? A coalizão britânica é forte o bastante?


O colapso do euro, calotes e uma nova onda de quebras de bancos europeus são alguns dos cenários cataclísmicos traçados pelos mais pessimistas para os próximos capítulos da crise da dívida europeia. Mas mesmo os cenários mais prováveis e benignos representarão um revés para a atual retomada da economia mundial. Nas últimas semanas, diversos países europeus anunciaram que iniciarão um processo de corte de custos para reduzir os temores do mercado financeiro. Segundo a agência de classificação de risco Fitch, será o maior programa de ajuste fiscal da história. A França, segunda maior economia da União Europeia, pretende cortar o déficit público dos atuais 8% para 3% em 2013. O novo governo britânico cortará 8,6 bilhões de dólares em gastos até o fim do ano. Portugal e Espanha, os países mais ameaçados, também anunciaram uma série de sacrifícios. A verdade é que cortes como esses vêm na pior hora possível - em meio a uma já frágil recuperação econômica. Um exemplo: a Espanha tem uma taxa de desemprego de 20%, patamar altíssimo mesmo para os padrões europeus.

Cortes orçamentários num momento como este são uma resposta necessária à atual crise, mas se traduzirão em menos crescimento para a Europa e para o resto do mundo. "Essa é a maior ameaça à retomada", diz George Magnus, economista-chefe do banco suíço UBS. "Mas os países não têm alternativa. Caso não façam nada, os investidores cobrarão juros cada vez maiores para financiar suas dívidas, o que também atrapalhará o crescimento." Mesmo que o problema fique restrito à Europa, o risco de danos é significativo. O Brasil tem muito a perder nesse cenário. A Europa representa 22% de nossas exportações - as vendas de frango brasileiro para a União Europeia, por exemplo, já caíram 15% em 2010. Caso o continente entre novamente em recessão devido aos cortes orçamentários, números como esse podem piorar ainda mais.

Se serve de consolo, a situação fiscal do mundo já foi pior. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a dívida americana quase chegou aos 120% do PIB. No Reino Unido, beirou os 250%. Logo depois, o panorama melhorou drasticamente. "Quando a guerra acabou, o motivo para o acúmulo de dívida acabou junto", diz Steven Hess, analista da agência de classificação de risco Moody's. E, para ajudar, o Ocidente entrou na onda de expansão econômica protagonizada pela geração baby boomer. O crescimento ajudou a diminuir o fardo da dívida. A má notícia é que, no caso atual, a tendência é oposta. Os baby boomers estão se aposentando, o que multiplicará os gastos relacionados à idade, como pensões e planos de saúde públicos. Uma saída para evitar um colapso completo nas contas é fazer com que os trabalhadores fiquem mais tempo na ativa. No século 19, quando Otto von Bismarck criou a aposentadoria estatal, a idade mínima para obter a pensão era 70 anos - e a expectativa de vida, 45 anos. Com o aumento na expectativa de vida ocorrido no século 20, a conta deixou de fechar. Países como Grécia, Reino Unido e Espanha já anunciaram o aumento da idade mínima para aposentadoria. O plano britânico prevê subir a idade mínima para 68 anos até 2046. Atualmente, é de 60 anos para mulheres e 65 para homens.


Embora a crise atual esteja concentrada na Europa, a situação fiscal americana pode se tornar um problema ainda mais grave nos próximos anos. A combinação entre pacotes de resgate, estímulo econômico e recessão colocou a dívida pública americana num patamar considerado insustentável pelo próprio Congresso - nos próximos dez anos, o déficit federal será de 9 trilhões de dólares. Números como esse deixam investidores e analistas alvoroçados. Segundo um relatório do Deutsche Bank, o que está acontecendo na Grécia é um "ensaio geral" para uma inevitável crise da dívida americana. "A dívida americana é um porto tão seguro quanto Pearl Harbor em 1941", escreveu o historiador britânico Niall Ferguson. Em dez anos, o gasto com juros responderá por 20% do Orçamento americano. Para críticos como Ferguson, essa situação levará o governo a imprimir dinheiro, velha receita para o surgimento da inflação. Isso afugentará investidores, temerosos de ver o valor de seus ativos diminuir na velocidade de uma provável depreciação do dólar - dando origem, aí, sim, a um deus nos acuda global. Do outro lado do debate, porém, estão economistas como Paul Krugman, para quem a preocupação atual com o déficit é exagerada e a recuperação econômica americana vai acabar amenizando o impacto do acúmulo de dívida. Não levará muito tempo até sabermos que lado tem razão - a dívida americana ultrapassará os 100% do PIB no ano que vem.

Para os países emergentes, a atual crise da dívida é temperada por uma pitada de ironia. Até poucos anos atrás, ameaças de calote e programas de ajuste fiscal eram tidos como coisa de Terceiro Mundo - o Brasil, que deu o calote na dívida externa em 1987, no governo José Sarney, passou por cinco programas com o FMI desde então. À Argentina coube a honra de ter dado o maior calote soberano da história, em 2001. Hoje, porém, os emergentes estão bem, e os ricos, mal. Essa diferença está alterando a percepção daquilo que é considerado um investimento seguro. A californiana Pimco, uma das maiores gestoras de recursos do mundo, coloca títulos da dívida espanhola na categoria "arriscados" e papéis brasileiros na fileira dos "estáveis". "Os países emergentes aprenderam com as crises anteriores", diz o economista americano Nouriel Roubini. "Muitos, como o Brasil, obtiveram superávits primários consecutivos, diminuíram a dívida externa brutalmente e, assim, chegaram aos dias de hoje em forma muito superior à dos países ricos." Segundo dados do Citigroup, a relação dívida-PIB dos 20 maiores países emergentes deve permanecer estacionada em 40% nos próximos quatro anos. Nos 20 mais ricos, passará dos atuais 80% para 120% - enquanto a economia dos emergentes deve continuar crescendo de maneira acelerada, os ricos, às voltas com seus desafios fiscais, crescerão menos.

Mas poucos erros seriam tão graves para os países emergentes, e para o Brasil em particular, quanto encarar a atual diferença com empáfia e um quê de triunfalismo. Infelizmente, parece ser esse o caso brasileiro. O governo pisou no acelerador em meio à crise de 2008, a crise passou, o país cresce em ritmo chinês e o pé continua no mesmo lugar. Alguns dados recentes dão motivo para preocupação. O governo aumentou em 74,2 bilhões de reais, ou 6%, a dívida pública para capitalizar o BNDES. O Congresso, na contramão do mundo, aprovou o fim do fator previdenciário, criando um incentivo para aposentadorias precoces (o governo estuda vetar a medida). Para completar, nos últimos 12 meses o superávit primário tem sido de 1,9% do PIB, menos da metade do obtido cinco anos atrás. "A lição para o Brasil é que os ventos mudam. Países europeus que viveram uma fase de euforia no passado recente não economizaram quando deveriam ter feito", diz o economista Fabio Giambiagi, do BNDES. Embora esteja em situação melhor que os países ricos e tenha obtido há dois anos o tão almejado grau de investimento, o Brasil ainda tem uma dívida alta, calculada pela Fitch em 70% do PIB. Não convém abusar. "Expectativas podem mudar a qualquer momento", diz John Cochrane, da Universidade de Chicago. "E, quando você percebe, já virou a Grécia." A fase de ouro que vive a economia brasileira pode até criar em alguns a sensação de que desta vez será diferente e que, destinado a crescer sem parar nas próximas décadas, o país não precisa se preocupar com controle de gastos. Mas a atual crise dos países ricos ajuda, mais uma vez, a demonstrar a velha verdade: nunca é diferente.

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