Revista Exame

Como a Holanda virou uma potência do agronegócio

Com pouca terra e mão de obra cara, a Holanda vem usando a tecnologia — e a habilidade em agregar valor aos produtos — para se tornar forte em agronegócio

CAMPO DE TULIPAS: A Holanda é grande produtora de flores, mas seu maior talento é saber vender (Darrell Gulin/Getty Images)

CAMPO DE TULIPAS: A Holanda é grande produtora de flores, mas seu maior talento é saber vender (Darrell Gulin/Getty Images)

DR

Da Redação

Publicado em 9 de maio de 2019 às 05h46.

Última atualização em 24 de julho de 2019 às 16h31.

Os holandeses lutam há séculos para domar as águas do Mar do Norte. Ao visitar a região, por volta do ano 325 antes de Cristo, o geógrafo grego Píteas observou que “mais pessoas morriam na luta contra a água do que na luta contra o homem”. Com o tempo, para controlar as cheias, os holandeses aprenderam a construir um complexo sistema de barragens, diques, canais, moinhos e estações de bombeamento de água. Hoje, um terço do território da Holanda encontra-se abaixo do nível do mar — há áreas que ficam quase 7 metros abaixo da superfície marinha —, mas é difícil encontrar quem não confie no sistema de defesa contra inundações. Ainda assim, a terra é um ativo escasso.

Com 41.500 quilômetros quadrados, a Holanda inteira caberia dentro do estado do Rio de Janeiro. A parte aproveitável para a agricultura soma pouco mais de 10.000 quilômetros quadrados, cerca de metade da área de Sergipe, menor estado brasileiro. Mesmo com essas limitações, a Holanda transformou-se numa potência do agronegócio. É a segunda maior exportadora de produtos agropecuários do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos — o Brasil é o quarto. E o mais impressionante: de cada hectare ocupado pelo setor, a Holanda tira uma receita anual de 114.000 dólares com exportações, mais de 100 vezes o valor obtido pelo Brasil.

A força do agronegócio holandês se assenta em pequenos produtores familiares altamente tecnificados. São agricultores como a ex-professora de escola primária Petra Barendse, que largou seu ofício para, ao lado do marido, Léon Barendse, graduado em economia e negócios, dar continuidade aos negócios de ambas as famílias — os pais e os sogros de Petra começaram a produzir pimentões há 55 anos.

Em 2007, Petra e Léon deixaram Westland, tradicional região de cultivo de hortaliças em estufas no sudoeste da Holanda, e instalaram-se em Middenmeer, 50 quilômetros ao norte de Amsterdã. Eles compraram um lote de 47 hectares no Agriport A7, um novo parque empresarial que então se abria perto da capital holandesa. “Por falta de terras, não havia mais como expandir nossa produção em Westland”, disse Petra, depois de pedalar uma bicicleta com a reportagem de EXAME para mostrar os 30 hectares de estufas onde ela e o marido produzem pimentões e tomates.

Entende-se a dificuldade em encontrar áreas para aumentar a produção. A Holanda tem as terras agrícolas mais caras da União Europeia — em torno de 63.000 euros o hectare (na região de Ribeirão Preto, uma das mais valorizadas do estado de São Paulo, o preço do hectare está ao redor de 36.000 reais, ou 8.000 euros). Diante da escassez de terras, está em curso um processo de consolidação do setor. No fim da Segunda Guerra, havia mais de 400.000 propriedades agrícolas na Holanda. Hoje são 54.000. Com isso, o tamanho médio das propriedades aumentou de menos de 6 hectares, em 1950, para em torno de 30 hectares, atualmente. “Hoje em dia, só sobrevive quem produz em larga escala. Os investimentos são altos e temos muita concorrência”, diz Petra.

A agricultora holandesa Petra Barendse e seus pimentões da variedade laranja

MERCADO GLOBALIZADO: Petra Barendse e seus pimentões da variedade laranja: 30.000 quilos por dia, 95% deles para exportação | Ernesto Yoshida (Ernesto Yoshida/Exame)

A saída que muitos produtores encontram para se manter em um mercado competitivo é a especialização. O principal negócio de Petra e Léon é a produção de pimentão laranja, uma variedade de sabor suave e adocicado, usada em saladas e pratos quentes. A colheita ocorre de março a outubro — em média, 30.000 quilos por dia, volume que coloca os Barendse como os maiores produtores mundiais desse tipo de pimentão. Para manter a escala, é necessária muita tecnologia. Nas estufas há sensores por toda parte para monitorar temperatura, ventilação, luminosidade e umidade do ar. Softwares controlam a quantidade de água e de fertilizantes que deve ser fornecida às plantas. A colheita é feita manualmente, mas carrinhos automáticos auxiliam na movimentação dos produtos dentro das estufas.

Ao final da linha de produção, máquinas tiram várias fotos por segundo dos pimentões para reconhecer sua dimensão e embalá-los conforme o peso e o diâmetro. Cerca de 95% da produção é exportada por uma pequena cooperativa local. Os pimentões dos Barendse abastecem, principalmente, países vizinhos, como a Alemanha e o Reino Unido, mas chegam também a mercados mais distantes. “Gosto de saber que meus pimentões são consumidos até no Japão”, diz Petra.

ALTA PRODUTIVIDADE: O produtor de leite Ernst van der Schans e suas vacas: ordenha feita por robôs na hora em que os animais sentirem fome | Ernesto Yoshida

35 PARQUES DO IBIRAPUERA

As estufas para produção de hortaliças espalham-se por 56 quilômetros quadrados na Holanda, o correspondente a 35 parques do Ibirapuera. O uso dessas instalações, que possibilitam controlar o clima e o cultivo de várias espécies fora de época, ajudou o país a tornar-se o segundo maior exportador de hortaliças do mundo, atrás apenas da China. Mas essa é uma atividade que exige muita mão de obra — os Barendse empregam 200 pessoas no período de colheita —, um grande obstáculo em um país onde o salário mínimo passa de 1.600 euros (7.200 reais) por mês, um dos valores mais altos da Europa.

Esse é um problema que o produtor de leite Ernst van der Schans vem contornando com a crescente automação de sua propriedade em Well, na província de Guelders, na parte centro-oriental do país. Em uma visita à fazenda que durou cerca de 2 horas, EXAME não viu nenhuma pessoa trabalhando nos estábulos. O produtor tem 500 vacas leiteiras e 300 bezerros. Enquanto uma vaca recebia massagem nas costas com uma escova automática, outra vaca era ordenhada por um robô.

Os animais recebem alimentação normalmente, mas, quando querem comer mais, dirigem-se voluntariamente às baias onde há ração à vontade — e robôs que higienizam as tetas e extraem o leite enquanto as vacas se alimentam. Ainda que as ordenhas sejam feitas somente quando os animais quiserem, a produtividade é alta: 36 litros de leite por vaca ao dia. No Brasil, a média não passa de 5 litros por dia. Enquanto ordenham, os robôs leem informações no colar das vacas para avaliar sua saúde e identificar o melhor momento de fazer a inseminação. Com os robôs, o custo da mão de obra na fazenda de Van der Schans caiu 20%. “Quero melhorar as instalações e chegar a 50% de redução”, diz o produtor.

Ao todo, Van der Schans tem 35 empregados. A maioria trabalha no laticínio da família — além de leite, a fazenda produz iogurte, manteiga e sobremesas. São 22 tipos de produto, comercializados em supermercados com marca própria, Den Eelder. Esta é uma das características que explicam o sucesso do agronegócio holandês: a capacidade de agregar valor aos produtos. O país exporta menos de 1 bilhão de dólares por ano de leite — e mais de 4 bilhões de dólares em queijos e iogurtes. A Holanda não planta café, mas exportou 832 milhões de dólares desse produto no ano passado — quase 20% do valor comercializado pelo Brasil, maior produtor mundial de café. A Holanda não tem cacau, mas é o maior processador mundial dessa matéria-prima — em 2018, exportou 5,4 bilhões de dólares em chocolates e outros derivados de cacau.

Do valor total exportado pela Holanda a cada ano, 25% vêm de produtos originários de outros países que são reexportados depois de passar por alguma forma de processamento. O país é grande produtor de flores, mas sua principal vantagem nessa área consiste em importar flores de diferentes países — como Quênia, Etiópia e Equador — e distribuí-las no mundo inteiro. Não se trata apenas de comprar e revender. Os holandeses selecionam os produtores, os orientam sobre as variedades mais demandadas pelo mercado, preparam buquês e arranjos, embalam os produtos e usam seus canais de distribuição para fazer com que cheguem às floriculturas mais distantes. No ano passado, a Holanda importou 2,7 bilhões de dólares em flores e plantas ornamentais. E exportou 10,9 bilhões de dólares — quatro vezes mais.

Tudo isso é possível graças ao eficiente sistema de logística do país. De acordo com o Fórum Econômico Mundial, a Holanda tem o segundo melhor serviço portuário do mundo, perdendo apenas para Singapura. O destaque é o Porto de Roterdã, o maior da Europa — movimenta três vezes o volume de cargas do Porto de Santos. Além disso, a Holanda tem o terceiro melhor serviço de transporte aéreo do mundo, atrás de Singapura e Hong Kong — o aeroporto de Schiphol, na região metropolitana de Amsterdã, é o terceiro mais movimentado da Europa e abriga 104 companhias aéreas, que realizam voos diretos para 327 destinos em 98 países. A infraestrutura de portos e aeroportos é complementada por uma moderna malha de rodovias e ferrovias. Tudo isso ajuda no rápido escoamento dos produtos.

LOGÍSTICA EFICIENTE: Contêineres no Porto de Roterdã, o maior da Europa: três vezes mais cargas do que no Porto de Santos | Jorg Greuel/Getty Images

Parte importante do agronegócio holandês está concentrada na região conhecida como Food Valley, ou Vale dos Alimentos — uma referência ao Vale do Silício americano. É um polo de inovação em tecnologia de alimentos no centro do país que reúne 20 instituições de pesquisa, 8.000 cientistas e a Universidade de Wageningen, classificada em vários rankings como a melhor do mundo na área agrícola e florestal. Globalizada, a universidade tem 12.000 alunos, procedentes de mais de 100 países, incluindo o Brasil.

Muitas empresas instalam-se na região atraídas por profissionais formados em Wageningen. Em um raio de 10 quilômetros da universidade há cerca de 200 empresas do setor de alimentos, entre startups e gigantes como Unilever, Bunge, Cargill e Syngenta. Em 2013, a Kraft Heinz, empresa controlada pelos brasileiros da 3G Capital, abriu nessa região um de seus maiores centros de inovação, onde trabalham cerca de 200 pesquisadores de 40 nacionalidades. “Escolhemos a Holanda porque aqui praticamente não existe burocracia — bem diferente do meu país e do Brasil”, disse o italiano Andrea Budelli, vice-presidente de pesquisa e desenvolvimento da Kraft Heinz. “Este é um país desenhado para acolher empresas estrangeiras.” No ranking Doing Business, do Banco Mundial, a Holanda está em primeiro lugar em facilidade para o comércio internacional entre 190 países avaliados. O Brasil está em 106o lugar.

O agronegócio representa em torno de 20% das exportações da Holanda. Aí estão incluídas a transferência de tecnologia agrícola e a venda de sementes, fertilizantes, material para estufas, maquinários e equipamentos da indústria de alimentação. O setor foi fundamental para a diversificação da pauta de comércio exterior do país, que nos anos 70 enfrentou uma crise por causa de sua dependência da exportação de gás natural e da baixa competitividade da indústria — um fenômeno que a revista The Economist batizou na época de “doença holandesa”. O nome pegou, mas é parte do passado. Hoje, com a ajuda do agronegócio, a Holanda esbanja saúde — e mostra até onde o Brasil, com toda a sua abundância de terras e recursos naturais, pode um dia chegar.


SEM MEDO DO BREXIT. MUITO AO CONTRÁRIO

Com localização estratégica, a Holanda espera atrair ainda mais empresas estrangeiras após a saída do Reino Unido da União Europeia

Jeroen Nijland, da NFIA: conversas com 250 empresas interessadas | Divulgação

Em um raio de 500 quilômetros da Holanda, há cerca de 170 milhões de consumidores. É como ter um mercado maior que a Rússia a uma distância que separa São Paulo do Rio de Janeiro. “Podemos alcançar qualquer ponto na União Europeia em menos de 24 horas”, diz Jeroen Nijland, diretor-geral da Netherlands Foreign Investment Agency (NFIA), órgão ligado ao Ministério da Economia que auxilia empresas estrangeiras interessadas em fazer negócio com a Holanda. O país espera ganhar ainda mais terreno como um hub de exportação depois do Brexit — saída do Reino Unido da União Europeia.

Como a Holanda se tornou a principal porta de entrada e saída do mercado europeu, já que há outros países na região que também poderiam exercer esse papel?

Em menos de 24 horas, podemos alcançar qualquer ponto na União Europeia, em parte em razão de nossa posição geográfica, em parte porque temos a infraestrutura para levar mercadorias e pessoas a outros lugares na região, com eficiência. Mas não somos apenas uma porta de entrada para a Europa. Acima de tudo, temos uma série de clusters econômicos, que são realmente fortes e, como ímãs, atraem um grande número de empresas.

Qual é a importância desses clusters?

A Holanda definiu nove setores-chave da economia que se desenvolvem em torno de clusters. Um deles é o de agroalimentos. Existem também os de energia, água, ciências da vida e outros. Nesses nove setores, há uma parceria estreita entre o governo, a iniciativa privada e as instituições de pesquisa, os três pilares de uma pirâmide. Eles desenvolvem estudos e programas em conjunto, de modo que todos possam se beneficiar dos esforços de cada um, fortalecendo os setores.

Qual será o impacto do Brexit para a economia de seu país?

Depois da Irlanda, somos o país europeu que tem a economia mais interligada com a do Reino Unido. Portanto, a Holanda será fortemente afetada pela saída do Reino Unido da União Europeia. No entanto, o Brexit também oferece oportunidades, porque vai realocar as rotas comerciais. A NFIA está em conversações com mais de 250 companhias estrangeiras que pensam em vir para a Holanda depois do Brexit. Estamos prontos para receber essas empresas.

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