Carlos Ghosn, presidente da Renault e da Nissan: ele investiu 5 bilhões de dólares para popularizar os carros elétricos (Germano Lüders/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 30 de agosto de 2013 às 15h16.
São Paulo - A carreira do franco-brasileiro Carlos Ghosn, presidente mundial do grupo formado pelas montadoras Renault e Nissan, não foi mais a mesma depois de sua participação no Salão do Automóvel de Frankfurt, em setembro de 2009. Como de costume, a nata da indústria automobilística estava reunida para apresentar suas novidades.
Junto com os carrões da vez, boa parte das montadoras apresentou protótipos de veículos elétricos que, imaginava-se, seriam o futuro da indústria. Como o preço do petróleo havia batido recordes no ano anterior e as discussões sobre a crise ambiental ocupavam as manchetes dos jornais, parecia fazer sentido.
Ao contrário de seus colegas, Ghosn não se limitou a apresentar alguns projetos de longuíssimo prazo. Ele levou jornalistas e clientes para passear em quatro modelos elétricos e disse que havia destacado 2 000 engenheiros para lançar os veículos em até dois anos. De acordo com ele, até 2020, 20% do faturamento global do grupo viria de veículos abastecidos na tomada.
“É uma revolução da indústria automobilística chefiada por nós”, disse na época. Ghosn apostou sua reputação em uma tecnologia coberta de incertezas. Passados quatro anos, é impossível dizer se Ghosn, o executivo mais poderoso da indústria automotiva mundial, está cometendo o maior erro de sua carreira — ou se vai acertar de maneira espetacular.
O que se sabe, porém, é que a cada dia que passa sua meta inicial fica mais distante. Nissan e Renault já investiram 5 bilhões de dólares no desenvolvimento de carros elétricos — mais do que suas principais concorrentes somadas. Mas em dois anos e meio de produção venderam pouco mais de 100 000 unidades de seus cinco modelos elétricos.
O mais comercializado é o compacto Leaf, da Nissan, com 71 000 unidades. Numa conta simples, em que se divide o investimento total pelo número de carros produzidos, cada modelo custou 55 000 dólares para chegar às ruas — e foi vendido por 30 000 dólares. No mesmo período, a Nissan e a Renault comercializaram mais de 16 milhões de carros tradicionais.
Se tivesse investido essa dinheirama toda para desenvolver novos carros a combustão, Ghosn poderia ter lançado oito modelos no período, todos prontos para o consumo de massa.
Um executivo preocupado com seu bônus de fim do ano não teria dúvida em investir em veículos a gasolina. Mas Ghosn está longe de ser um executivo tradicional. Filho de pai libanês e mãe francesa, ele nasceu em Rondônia e, ainda criança, se mudou com a família para o Líbano.
Fez faculdade de engenharia na França e passou os primeiros 18 anos de carreira na fabricante de pneus Michelin, onde chegou à presidência da subsidiária americana. Em 1999, assumiu a presidência da Nissan, montadora japonesa comprada pela Renault. Na época, a empresa tinha 5,4 bilhões de dólares em dívidas e suas fábricas produziam metade do que podiam.
Ghosn fechou cinco fábricas, demitiu milhares de trabalhadores e, em pouco tempo, devolveu a empresa ao prumo. Foi um choque no Japão, um país onde demitir era tabu. Mas foi o suficiente para que virasse uma celebridade e ganhasse o apelido de Samurai. Acabou acumulando a presidência da Renault em 2005 e virou o primeiro executivo da história a liderar simultaneamente duas das 500 maiores empresas do mundo.
Para dar conta, Ghosn desenvolveu uma disciplina militar. Passa três semanas por mês na França e uma no Japão. Suas reuniões duram no máximo 1 hora e 30 minutos — terminado o tempo, ele se levanta e parte para a próxima. Seu senso de urgência ajudou o grupo a sobreviver à crise de 2009.
Ghosn fechou fábricas na Europa e direcionou os investimentos para mercados emergentes. Em três anos, a Europa passou de 70% para 50% das vendas da empresa — o que ajudou as montadoras a crescer 30% desde 2010.
É essa reputação que Ghosn colocou na mesa. Por enquanto, ele não se abala com a apatia dos resultados. “Não é uma estratégia de curto prazo. É uma nova tecnologia, e não temos motivos para nos decepcionar com os resultados. As pessoas ainda estão se acostumando”, disse Ghosn a EXAME.
Para popularizar a tecnologia, ele apela para a consciência e para o bolso dos consumidores. “A dependência do petróleo e o aumento da emissão de gás carbônico fazem parte de uma realidade que não vai mudar se nada for feito.” Atualmente, 15% da emissão global de gás carbônico vem dos veículos a combustão — e os governos de países ricos estão pressionando as montadoras para reduzir esses índices.
Na França, veículos poluentes pagam 200 euros de taxa ao ano. Já os carros “verdes” ganham um subsídio de 700 euros na hora da compra. Há iniciativas semelhantes nos Estados Unidos, na Alemanha e no Japão. O que aumenta o otimismo de executivos como Ghosn é o fato de que abastecer veículos elétricos sai mais barato. Rodar com um carro elétrico custa 12% do que se pagaria com gasolina.
Uma pesquisa da consultoria PwC projeta que em 2020 um em cada 16 novos carros vendidos no mundo será elétrico ou híbrido (que tem dois motores, um elétrico e outro a combustão).
Jogo difícil
Ghosn não está sozinho. Todas as grandes montadoras do mundo estão desenvolvendo os próprios carros elétricos — mesmo que não estejam apostando tão pesado quanto ele. Em comum, o fato de estarem colhendo resultados pífios até agora. A Fiat perde 10 000 dólares para cada um de seus Fiat 500 elétricos vendidos na Califórnia.
A General Motors vendeu cerca de 50 000 unidades de seu elétrico Volt, lançado em 2010. “Os carros elétricos ainda não são viáveis, e as vendas só acontecem porque há subsídios governamentais”, diz Jaime Ardila, presidente da GM na América Latina. A alemã BMW planeja investir 3 bilhões de euros na linha i, de modelos elétricos.
O i3, primeiro carro elétrico para produção em massa da marca, foi apresentado mundialmente em julho, durante eventos simultâneos em Nova York, Londres e Pequim.
A promessa do carro elétrico atraiu uma leva de empreendedores, que cinco anos atrás prometiam virar o mercado automotivo de pernas para o ar. Mas a maioria ficou pelo caminho. A Fisker, fundada em 2008 pelo dinamarquês Henrik Fisker, ex-designer da BMW, planejava produzir 100 000 veículos de luxo por ano até 2014. Mas vendeu apenas 2 500 e acumulou prejuízos de 1 bilhão de dólares.
A americana Coda, outra novata, declarou falência em maio. A única empresa que já encontrou uma forma de ganhar dinheiro com a tecnologia é a americana Tesla, fundada pelo bilionário sul-africano Elon Musk. Seu último lançamento, o esportivo Model S — que custa a partir de 50 000 dólares —, superou as previsões e recebeu 4 750 pedidos no primeiro trimestre do ano.
A Tesla produz a maior parte das peças, tem baterias com autonomia de até 300 quilômetros — enquanto a concorrência fica nos 150 quilômetros —, revendas e pontos de carregamento próprios. Três anos após sua abertura de capital, em 2010, a empresa vale cerca de 18 bilhões de dólares. Nos dois primeiros trimestres do ano, teve lucro.
Entraves
É um feito inédito em uma história centenária. O primeiro veículo recarregável foi montado no fim do século 19. A bateria pesava cerca de 1 800 quilos. Mas, assim como hoje, os veículos a combustão eram mais baratos e tinham autonomia maior. Ao longo das décadas seguintes, sempre que o preço do petróleo aumentava (durante as guerras mundiais e na crise do petróleo na década de 70), o apelo pelos elétricos voltava, mas logo arrefecia.
Ghosn apostou nos carros elétricos justamente em um desses picos, de 2008 a 2009. O problema é que, de lá para cá, o preço do petróleo despencou e a descoberta de novos campos de óleo e gás nos Estados Unidos levou especialistas a falar em queda no preço do combustível no longo prazo. A matemática, que era uma aliada até 2009, já não joga a favor de Ghosn.
Aí reside seu maior desafio. Os carros elétricos só vão se popularizar se forem um bom negócio para os consumidores — e isso não depende apenas de Ghosn. Como a autonomia média dos veículos não passa de 200 quilômetros, eles dependem de uma rede de abastecimento bem distribuída. A instalação de uma estação caseira custa cerca de 2 000 dólares.
Nas ruas, encontrar postos de abastecimento é uma tarefa inglória até na Europa, onde existem 11 750 postos — pouco mais do que o número de restaurantes do McDonald’s. “A meta é chegar a 600 000 postos até 2020. Governos e montadoras estão empenhados nisso”, diz Alfredo Sánchez Vicente, especialista em transporte da Agência Ambiental Europeia, órgão da União Europeia.
Atualmente, os veículos elétricos custam, em média, 60% mais do que os modelos tradicionais. A grande vilã é a bateria, que corresponde a 30% do valor do carro.
“Uma das soluções seria a utilização de outros materiais, mais baratos, em conjunto com o lítio ou baterias feitas de substâncias como níquel, magnésio e cobalto. Mas tudo ainda é muito incipiente”, diz Richard Sassoon, diretor do projeto global de clima e energia da Universidade Stanford.
A demanda fraca, por sua vez, impede que as montadoras tenham ganhos de escala na fabricação, no tradicional ciclo virtuoso que barateia produtos de alta tecnologia e os torna acessíveis.
Para incentivar a compra de carros elétricos, muitos governos oferecem subsídios. Nos Estados Unidos, o pacote de estímulo à economia lançado pelo presidente Barack Obama em março inclui descontos de 2 500 a 7 500 dólares por carro. Na Alemanha há subsídios de 2 bilhões de euros para tentar alcançar a meta de 1 milhão de carros elétricos até 2020.
O governo britânico fez uma parceria com a iniciativa privada e está instalando pontos de recarga em supermercados, shoppings e empresas. A China oferece subsídios para o desenvolvimento de modelos elétricos e concede descontos generosos, como 8 000 dólares para taxistas. No Brasil, não há produção nem venda de carros elétricos.
Em julho, a Anfavea, associação que representa as montadoras instaladas no Brasil, enviou um pedido ao Ministério do Desenvolvimento para estimular a expansão da nova tecnologia. “Comprar um carro elétrico no país custa ao menos 200 000 reais por um modelo básico”, diz Paulo Roberto Feldmann, coordenador da FEA-USP, que comanda uma pesquisa sobre carros elétricos.
Em junho, Ghosn esteve no Brasil e assinou um protocolo de intenções com o governo do Rio de Janeiro para que a Nissan seja a primeira montadora a produzir carros elétricos no país.
Ghosn sabe que não há governo que resolva as limitações — caberá às montadoras, sim, resolver o problema do consumidor. Nos Estados Unidos, a Nissan começou a dar descontos de até 6 000 dólares para veículos novos. As baterias estão ganhando autonomia. No caso do Leaf, passou de 160 para 220 quilômetros apenas neste ano.
Ghosn ainda afirma que venderá 1,5 milhão de carros elétricos até 2016 e nega qualquer tipo de pressão por resultados. “Os acionistas me apoiam”, diz. Em junho, ele foi reeleito presidente da Nissan por mais dois anos. A votação dos 1 300 acionistas foi praticamente unânime. Desde que Ghosn assumiu as duas empresas, o lucro do grupo subiu 29%.
Ghosn entrará para a história como um visionário ou um teimoso que não teve humildade para reconhecer seu erro? Hoje, é impossível dizer — mas seus acionistas parecem ter dado a ele o benefício da dúvida.