Revista Exame

Para Salim Ismail, inovação em empresas pede "metabolismo acelerado"

Indiano criado no Canadá, Salim Ismail diz que as companhias precisam adotar um modelo de atuação exponencial para evitar falências

Salim Ismail: o indo-canadense Salim Ismail, um dos fundadores da Singularity University, explica por que empresas, academia e governos são reticentes à inovação. E diz que, ao mudar isso, a sociedade poderá criar riqueza — e até acelerar a cura de doenças (Germano Lüders/Exame)

Salim Ismail: o indo-canadense Salim Ismail, um dos fundadores da Singularity University, explica por que empresas, academia e governos são reticentes à inovação. E diz que, ao mudar isso, a sociedade poderá criar riqueza — e até acelerar a cura de doenças (Germano Lüders/Exame)

NF

Natália Flach

Publicado em 26 de março de 2020 às 05h30.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 14h59.

No relatório de apresentação de resultados da empresa de tecnologia e serviços General Electric de 2000, o CEO Jack Welch, que morreu no início deste mês, escreveu: “Se o metabolismo de sua empresa é mais lento do que o do mundo, então ela morrerá. A única dúvida é quando”. A frase resume a visão de Salim Ismail, ex-diretor executivo e um dos fundadores da Singularity University — universidade de inovação e empreendedorismo no Vale do Silício, nos Estados Unidos — e principal autor do best-seller Organizações Exponenciais.

Indiano criado no Canadá, Ismail diz que as companhias precisam adotar um modelo de atuação exponencial para evitar uma falência como a da americana Kodak, pioneira na indústria fotográfica. A forma de fazer isso é escolher áreas ou unidades de negócio que tenham liberdade para inovar — algo que será cada vez mais crucial para enfrentar as dificuldades geradas pela pandemia do novo coronavírus, que está reduzindo as atividades e as receitas de muitas empresas em todo o mundo.  “A ideia é que a companhia tenha organizações exponenciais ligadas a ela. São essas organizações que vão inovar, não a nave-mãe”, afirma Ismail nesta entrevista exclusiva à EXAME.

A meta dos projetos criados pelos alunos na Singularity University é impactar 1 bilhão de pessoas. Em dez anos de atividade, quantas de fato foram atingidas?

É difícil medir impacto, mas, se eu tivesse que dar um palpite, acho que impactamos centenas de milhões de pes­soas. A tecnologia é capaz de acelerar a solução de problemas como a desigualdade socioeconômica. Há 200 anos, 94% das pessoas no mundo viviam em situação de pobreza extrema. Hoje são menos de 9%. Bill Gates, fundador da Microsoft, prevê que a pobreza extrema será eliminada nesta década. As pessoas costumam reclamar do hiato entre os mais ricos e os mais pobres, mas não vejo dessa forma. Não é sobre ter ou não ter, e sim sobre ter e “superter”. Nos Estados Unidos, 85% das pessoas que estão abaixo da linha da pobreza têm geladeira e 95% têm TV. Há 100 anos, as pessoas mais ricas do mundo não tinham isso. Então, o que hoje classificamos como pobre é muito diferente daquele de um século atrás. Outra transformação é que hoje uma pessoa desafortunada pode se tornar bem-sucedida, algo impossível antigamente. É só verificar quem eram as pessoas mais ricas do mundo há 100 anos: eram herdeiros que ganharam dinheiro dos pais, do governo ou por meio de corrupção. Mas Bill Gates, Jeff Bezos (Amazon), Mark Zuckerberg (Facebook), Larry Page e Sergey Brin (ambos do Google) conquistaram a própria fortuna. É melhor que a lista de bilionários seja de empreendedores bem-sucedidos do que de herdeiros. O foco, portanto, deve ser elevar a base da pirâmide, porque aí não importa quão ricos sejam os ricos.

Vista aérea da cidade de Cupertino,no Vale do Silício: concentração de alta tecnologia | Christopher Wu/Getty Images

Então, qual é o maior problema hoje?

As mudanças climáticas. Precisamos de uma ação coordenada de todo o planeta para resolver esse problema, só que não existe consenso político. Mui­tos se recusam a acreditar porque ganham bastante dinheiro com o cenário atual. Também há muita resistência quando se trata de inovação. É como se os projetos disruptivos fossem corpos estranhos e, portanto, precisassem ser atacados por glóbulos brancos. Isso ocorre porque as pessoas preferem estabilidade. É por isso que vimos tantos taxistas brigando com motoristas de Uber, e o mundo entrou numa discussão política em vez de aproveitar a tecnologia. É o que está acontecendo agora com os drones. Se já fosse permitido usar drones para transportar passageiros, Kobe Bryant [jogador de basquete, morto num acidente de helicóptero em janeiro] provavelmente estaria vivo, porque os drones não cometem erros humanos. Além disso, haveria muito menos tráfego em São Paulo. No entanto, inovações como essa demoram anos ou décadas para ser aprovadas.

Como acelerar isso?

O primeiro passo é educação. É necessário que as lideranças aprendam que estamos em um mundo diferente. O segundo é proporcionar ferramentas para ajudar as empresas e o setor público nessa transição. Isso é importante porque as transformações dentro das companhias e do segmento público costumam ser mais lentas do que as mudanças que ocorrem no mundo. Por isso, desenvolvemos ferramentas para as companhias aumentarem seu metabolismo. No Brasil, trabalhamos com Visa e Coteminas, entre outras, e no mundo com Procter & Gamble, Black & ­Decker, HP etc.

Favela no Rio de Janeiro: a tecnologia pode acelerar a solução de problemas como a desigualdade | Frédéric Soltan/Getty Images

Qual é o modelo de negócios adotado por empresas com metabolismo acelerado?

Nos últimos anos, acompanhamos a transformação dos modelos de negócios: grandes empresas passaram a ser plataformas e, mais recentemente, tornaram-se ecossistemas. O Facebook era uma plataforma e criou um ecossistema ao redor dele com Instagram e WhatsApp. O grupo Alphabet é outro que foi nessa direção com Google, Pixlr, YouTube etc. Este é o futuro: uma grande companhia terá organi­zações menores, disruptivas e exponenciais interligadas. São essas organizações menores que vão inovar, não a nave-mãe. Foi o que a Nestlé fez com a Nespresso, que durante anos foi uma unidade de negócios que somente fracas­sava. Quando foi apartada, boom. Hoje vale 6 bilhões de dólares. A Apple é outro exemplo. O verdadeiro diferencial da companhia não é o design nem a tecnologia, e sim a criação de pequenos grupos que posteriormente são separados para que possam trabalhar livremente. É daí que nascem as ideias de que relógios podem ser meios de pagamento, por exemplo.

Qual é a diferença entre empresas de internet como Google e WeWork?

A primeira geração de empresas, que tem como expoentes Yahoo, Google e Facebook, conseguiu criar demanda e atendê-la. O YouTube é o site em que todo mundo vê vídeos e, quanto mais vídeos ca­dastrados, mais importante o YouTube fica. Desse modo, cria-se um monopólio natural, já que o vencedor leva tudo. Quando a segunda geração de empresas sai do mundo online e segue em direção ao offline, a lógica muda. Não dá para criar monopólio, porque todo motorista de Uber também é motorista do Cabify. Por isso, essas empresas têm enorme dificuldade para manter seu valor. Do ponto de vista do consumidor, isso é ótimo, pois significa variedade e mais escolhas.

Como imagina o futuro?

Temos dois possíveis caminhos para a huma­nidade. O primeiro se parece com o filme Star Trek (Jornada nas Estrelas), que representa uma existência pacífica e abundante, enquanto o outro lembra mais o filme Mad Max, onde impera a escassez. Os políticos estão nos levando para um futuro parecido com o de Mad Max, então, temos de descobrir como podemos evitar esse futuro. De qualquer forma, eu me mantenho otimista porque não importa o que o presidente americano, Donald Trump, fale sobre energia não renovável. Poucos vão investir nesses ativos, já que não há lógica econômica nem legado para os negócios.

O que fazer para que a humanidade siga mais em direção ao futuro de Star Trek?

É possível transformar não apenas as empresas mas também o setor público com ações pon­tuais que, se acertadas, podem ser replicadas. Em Miami, levamos adiante um projeto de colocar motos e bicicletas elétricas na orla da praia. Isso foi importante porque reduziu o problema de tráfego no local e agora pode ser replicado em outros bairros. Em Medellín, na Colômbia, atuamos em várias frentes separadamente: mobilidade, atendimento médico, qualidade do ar e modernização do sistema judiciário. O resultado desse trabalho é que a cidade foi eleita recentemente uma das mais inovadoras do mundo. As transformações na gestão pública levam 16 semanas para ser implementadas.

O que vem antes: o interesse político na transformação ou a transformação suscita o interesse político?

Quase todo político é defensivo e reativo. Quando se cria algo como blockchain, a reação inicial é de negação. Mas fica o apelo: e se formulássemos uma política pública proativamente com foco no futuro? Sabemos que os drones, o bitcoin e a biotecnologia são uma realidade. Por que não estabelecer as regras de funcionamento? Há poucos lugares no mundo que baseiam suas políticas no futuro. É o caso de Singapura. Nesse sentido, o Brasil tem uma enorme oportunidade, porque pode ir direto a esse modelo de gestão. O grande desafio do país é a corrupção, como na maior parte dos países latino-americanos, mas o ­blockchain pode ajudar a solucionar esse problema.

O senhor destacou a importância da educação, mas como fazer essa transformação em países como o Brasil, onde há déficit educacional?

Falamos antes dos sistemas imunológicos e mencionei que empresas e o setor público são re­ticentes a inovações. Mas a academia é outro setor que não fica atrás. O modelo das universidades não mudou nos últimos 450 anos e a sala de aula não mudou nos últimos 300 anos. Mas, aos poucos, temos visto esse modelo ruir. Se você entrar hoje em um mestrado em biotecnologia, robótica ou neurociência, quando terminar o curso já estará desa­tua­lizado. Isso porque a realidade muda mais rápido do que a ca­pacidade de ensiná-la. Por isso, o salário de um desenvolvedor de software no Vale do ­Silício não tem correlação com a universidade em que ele estudou. É 100% relacionado aos códigos que desenvolveu e à sua operacionalidade, que é uma métrica meritocrática. A universidade acaba sendo um molde para o cérebro que impede as pessoas de pensar criticamente. Quanto mais se estuda, mais se estudam assuntos específicos — a mágica acontece quando se misturam diferentes áreas do conhecimento. Sem falar que os sistemas educacionais são desenhados para treinar os jovens até 20 e poucos anos para que estejam prontos para os empregos existentes. O problema é que não sabemos como serão os empregos no futuro. Então, o que vamos ensinar? Minha esperança é que quebremos os muros educacionais e pas­semos de um sistema que empurra conhecimentos para um sistema no qual seja possível requisitar aprendizados sob de­man­da. Para isso, é preciso prover ferramentas. Recentemente, pre­miamos projetos que criaram uma solução de alfabetização em apenas 15 meses. As crianças aprendem a ler e a escrever com orientação por vídeos. Eu gosto muito do exemplo de Jack Andraka. Aos 13 anos, ele viu o tio morrer de câncer no pâncreas e ficou muito triste. Decidiu, então, pesquisar no Google com o intuito de elaborar uma forma eficaz de detectar esse tipo de câncer nos estágios iniciais. Descobriu um modo, mas precisava testar. Então, escreveu uma tese de cinco páginas e enviou a 200 pesquisadores nos Estados Unidos. Um pesquisador da Universidade John Hopkins ficou tocado e disse para o garoto ir até lá — com a intenção de oferecer um café e um presentinho de agradecimento. Mas eles conversaram por horas. O pesquisador se surpreendeu com o preparo de Andraka e permitiu que ele fizesse testes por três meses. No fim, descobriu-se que Andraka estava certo: ele conseguiu transformar um câncer com 98% de risco de mortalidade em 98% de chance de sobrevivência. O sistema educacional tradicional não é para essa criança — ela não precisa disso. Se você tem esse tipo de paixão e as ferramentas estão dispo­níveis, é possível resolver di­versos problemas.

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