Fabio Schvartsman: desafio de conduzir a mudança na Vale (Leandro Fonseca/Exame)
Maria Luíza Filgueiras
Publicado em 20 de abril de 2017 às 05h55.
Última atualização em 20 de abril de 2017 às 05h55.
São Paulo — Assim como os estadistas, os presidentes de grandes empresas costumam ser inapelavelmente rotulados pela história. Podem ter feito muito, mas são lembrados por uma coisa só — seu estilo de administração, um grande erro, um grande acerto. No caso de um ícone nacional, como a mineradora Vale, sua história recente pode ser claramente separada em duas fases. A primeira, sob o comando de Roger Agnelli, foi a da expansão desenfreada.
Em meio ao boom mundial das commodities, Agnelli foi às compras e multiplicou por 8 o faturamento da Vale em uma década. Coube a Murilo Ferreira fazer o exato oposto: encolher a Vale, preparando-a para um período de preços baixos no mercado global. Fabio Schvartsman, o executivo que no fim de maio assumirá o posto no lugar de Ferreira, sentará na cadeira já sabendo qual é sua missão.
Após a faxina geral dos últimos anos, a Vale não tem grandes desafios estratégicos ou operacionais. Schvartsman foi contratado, isso, sim, para orquestrar a mais delicada transição da história da empresa. Até 2020, a ex-estatal Vale passará a ser uma empresa sem controlador, com ações pulverizadas no mercado — o tipo de mudança que, apesar de parecer simples, de simples não tem nada.
Desde 1997, ano em que foi privatizada, a Vale é controlada pela holding Valepar, que hoje é formada por um grupo de acionistas — os fundos BNDESPar e Bradespar, a mineradora japonesa Mitsui, um grupo de fundos de pensão liderado pela Previ e o banco Opportunity. Esses acionistas mandam na Vale. Eles se reúnem obrigatoriamente antes das reuniões de conselho da mineradora, tomam suas decisões, e seus representantes repassam as definições ao conselho de administração quase figurativo da empresa. Mas esses acionistas resolveram dissolver o acordo. Como eles tinham ações da Valepar, e não da Vale, era difícil vendê-las.
Para os fundos de pensão, sobretudo, essa situação era insustentável, já que eles precisam levantar dinheiro para pagar suas aposentadorias. Com a mudança, a Valepar deixa de existir, e todos passam a ter ações da Vale. Até novembro, a empresa quer converter suas ações preferenciais em ordinárias, para ter apenas uma classe de ações e migrar para o Novo Mercado da bolsa, segmento com mais exigências de governança corporativa, e os acionistas do bloco poderão vender suas ações aos poucos. Em 2020, finalmente, a Vale se tornará uma “corporation”, como são conhecidas as empresas sem controlador. O mercado adorou a notícia, algo evidenciado pela valorização de quase 7% nas ações no dia do anúncio.
Os atuais controladores decidiram dar a Fabio Schvartsman, um executivo de 63 anos, a missão de organizar o processo. Ele ocupava a presidência da fabricante de papel e celulose Klabin, e sua escolha foi rapidíssima — menos de três semanas depois de anunciado o processo de busca de um sucessor para Murilo Ferreira, o cargo estava preenchido. Pesou na indicação sua experiência em transições desse tipo. Schvartsman ajudou a levar a holding Ultrapar à bolsa em 1999. Na Klabin, onde estava desde 2011, também levou a companhia a um nível mais avançado de governança na Bovespa. Ele assumirá a Vale em um momento considerado bastante favorável.
Ao longo dos últimos cinco anos, a Vale encolheu para ficar mais eficiente e produtiva e tem o menor custo de produção de minério de ferro. Nos últimos anos, a com-panhia fez pesados investimentos para colocar em operação sua nova mina em Carajás, naquele que foi o maior projeto da história da Vale. Agora, os investimentos foram concluídos. A projeção dos analistas é que o lucro e o fluxo de caixa livre tripliquem até 2019. Assim, Schvartsman poderá se concentrar no modelo de governança da mineradora. E tentar fazer com que a Vale seja uma “corporation” com mais qualidades do que defeitos — já que os defeitos possíveis são muitos.
É irônico que a Vale se proponha a virar uma “corporation” justamente quando esse modelo é colocado em xeque no mercado brasileiro. Foi-se o tempo em que a empresa sem controlador era considerada o máximo da governança, a modernidade engarrafada e trazida dos Estados Unidos para transformar o capitalismo brasileiro. “Hoje está claro que não há um modelo ideal, e sim que ambos têm vantagens e desvantagens”, diz Richard Blanchet, conselheiro do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa.
Empresas sem controlador representam menos de 5% do total de companhias listadas na bolsa brasileira, mas as experiências nacionais e as diversas experiências estrangeiras servem de amostra do que pode dar errado em empresas sem dono. Numa caricatura extrema, o maior risco é deixar a empresa ser dominada por uma cultura de curto prazo, que vive para servir a seus executivos e que, em tempos de crise, pode ser chacoalhada por investidores que só querem se beneficiar e ir embora. Numa mineradora como a Vale, são riscos que a empresa tem obrigação de conhecer a fundo.
Se não existe vácuo em política, na política corporativa ele também inexiste. Numa empresa “sem dono”, é natural que alguém ocupe essa posição mesmo sem ter direito a ela. “Um dos riscos numa corporação é que os administradores se tornem superpoderosos”, diz Peter Taylor, chefe da gestora Aberdeen no Brasil — a Aberdeen é uma das maiores acionistas individuais da Vale.
Em 2013, quando a incorporadora Gafisa acumulava mais de 1 bilhão de reais de prejuízo em dois anos, seus executivos ganharam quase 20 milhões de reais em bônus por desempenho. O executivo Carlos Medeiros ocupou a presidência da administradora de shoppings BR Malls durante mais de dez anos e agia como se fosse o dono. Os executivos da empresa recebiam 40% acima da média do mercado, mesmo quando os resultados pioraram.
Em abril do ano passado, a gestora Squadra começou a mostrar sua insatisfação com o modelo e indicou dois conselheiros independentes para a empresa — o início da chacoalhada resultou na saída de Medeiros da presidência (o que será efetivado em maio). Claro, nem sempre o executivo superstar resulta em crises. A varejista Renner, primeira empresa sem controlador da bolsa brasileira, tem no presidente José Galló seu “dono” há quase dez anos. A gestão de Galló é saudada pelos acionistas, que, justamente, temem pelo dia em que ele não estará mais no cargo. Como raios teimam em não cair no mesmo lugar, ninguém em sã consciência cria uma “corporation” para entregar, na prática, seu controle a um executivo.
Para evitar o tal vácuo, as “corporations” devem ser supervisionadas por um conselho poderoso, ativo e detalhista. Infelizmente, talvez seja justamente essa a maior lacuna brasileira. O país não tem tradição de formar conselhos que, de fato, mandam na diretoria. “Quanto mais figurões e ministros, mais o conselho serve de fachada para o poder absoluto de executivos”, diz Mauro Cunha, presidente da Associação de Investidores do Mercado de Capitais.
Não apenas em empresas sem controle, vale dizer — basta citar casos como o da estatal Petrobras, que sofreu abuso seguido de abuso de seu controlador, e a finada petroleira OGX, de Eike Batista, cujo conselho também era renomado. A falta de comando do conselho foi um ingrediente essencial para a crise que acabou no colapso da incorporadora PDG.
A empresa tornou-se uma “corporation” em janeiro de 2010. A diretoria entrou numa rota de crescimento a qualquer custo, comprando, como se não houvesse amanhã, concorrentes, terrenos e tudo que via à frente. Tornou-se, nove meses depois, a maior do país. Mas as empresas compradas não foram integradas, e os imóveis encalharam. Enquanto as incorporadoras “com dono”, como Cyrela e Eztec, pisaram no freio e fizeram ajustes antes da crise, a PDG seguiu adiante. Seus executivos são investigados pela Comissão de Valores Mobiliá-rios de negociar ações com informação privilegiada (o processo ainda não foi concluído). Em 2012, a gestora Vinci comprou ações da PDG e tentou impor uma cultura de controladora, mas não conseguiu evitar o pedido de recuperação judicial da empresa.
Cientes da importância de um conselho forte nessa transição, os acionistas da Vale acenderam a luz amarela e começaram a se mexer. A gestora Aberdeen sugeriu dois nomes de conselheiras independentes, especializadas em governança e sustentabilidade, para compor o conselho — e tem feito um esforço de convocação de outros acionistas estrangeiros para apoiar a chapa. As corretoras Geração Futuro e VIC, que representam os investidores Lírio Parisotto e Victor Adler, também sugeriram dois nomes. Hoje, os minoritários não têm voz na Vale. Desde que se transformou numa empresa sem controlador, há sete anos, a companhia de tecnologia Valid vem mudando — ampliou o número de conselheiros independentes (ou seja, sem relação alguma com a própria Valid) de um para cinco.
O conselho é formado por sete pessoas. “As reuniões, que eram trimestrais, passaram a ser mensais e também nos falamos informalmente com frequência”, diz Carlos D’Albuquerque, presidente da Valid. Para dar suporte ao conselho, a Valid também criou comitês permanentes de ética e estratégia. Para aumentar a interação com seus acionistas, a Renner criou um manual para votação em assembleia, em 2006, que acabou virando regra de mercado. Só no ano passado a empresa fez quase 1 500 reuniões e eventos com investidores. A presença nas assembleias da companhia passou de 25% da base de acionistas para 57% em dez anos. No caso da Vale, essa será uma tarefa e tanto. A mineradora tem 40 vezes mais acionistas do que a Renner.
Algumas discussões nasceram para não ter fim. Uma delas é sobre a melhor estrutura de comando das empresas. Modelos entram e saem de moda, para depois voltar. Nos Estados Unidos, onde essas modas costumam ser ditadas, as “corporations” foram duramente criticadas no fim dos anos 80, a era dos excessos dos executivos e da ineficiência. Veio, então, a geração private equity, os “bárbaros” que compravam as tais empresas ineficientes, cortavam custos e as revendiam com lucro. A devoção ao curto prazo era o maior alvo de críticas, tanto das “corporations” quanto dos fundos de private equity. Recentemente, um modelo híbrido passou a intrigar o capitalismo americano — justamente o modelo do 3G, fundo comandado pelo empresário brasileiro Jorge Paulo Lemann.
Híbrido porque tem a obsessão por eficiência típica de um financista, mas, atuando como “dono”, mantém as empresas por décadas, como no caso da cervejaria Ambev. Na geração de empresas de tecnologia, não é muito diferente. No ano passado, ao justificar a criação de uma classe de ações sem direito a voto no Facebook, o fundador Mark Zuckerberg destacou a importância de ser uma empresa com dono — se a empresa fosse dominada pelas vontades do mercado, declarou, possivelmente não teria rejeitado uma oferta de compra do Yahoo num passado distante.
Jeff Bezos, o mercurial fundador da varejista Amazon, não tem nem 30% das ações da companhia, mas quem manda é ele. Empresas com dono que funcionam tomam decisões que pouco têm a ver com o resultado do trimestre, mas, sim, com a perenidade dos negócios, com a sobrevivência da empresa a turbulências, com uma manutenção de retorno saudável.
No caso da Vale, claro, o tal controlador não era lá grande coisa — estamos falando do governo federal (afinal, o BNDES e os fundos de pensão mantiveram fortísssima influência após a privatização). Mas foi o que viabilizou a companhia a investir em seu maior projeto, a gigantesca mina de S11D, em Carajás, no Pará, em meio à maior crise nas cotações do minério de ferro. Em 2015, a Vale teve um prejuízo de 44 bilhões de reais. Suas principais concorrentes, as australianas BHP e Rio Tinto, suspenderam investimentos e conseguiram reduzir o impacto nos resultados. É muito provável que, se fosse uma “corporation”, o projeto de expansão teria sido abortado — hoje, os analistas dizem que é ele que garante o futuro da Vale.
“A Vale é hoje uma empresa muito melhor do que era cinco anos atrás. Produz o melhor minério do mundo pelo menor preço”, diz Rodolfo de Angelo, analista do banco JP Morgan. Em teleconferência com investidores no fim de fevereiro, Murilo Ferreira ressaltou que foi a visão de longo prazo dos acionistas da Valepar que assegurou à Vale a tranquilidade necessária para a travessia dos últimos dois anos, quando houve uma mudança radical nos preços da mineração. “Quando necessário, os sócios da Valepar mostraram disposição para o sacrifício, como a redução expressiva dos dividendos em 2016”, disse.
Apesar de tantos desafios, é fácil entender por que o mercado ficou animado com a perspectiva de uma Vale com controle pulverizado. A possibilidade de influência política sempre foi um fantasma para os minoritários da Vale, e esse fantasma vai embora. O poder do governo federal vai se limitar a vetar a transferência da sede da empresa para outra cidade ou país. Em tese, a nova fase poderá ser muito positiva para a Vale. Caberá a Fabio Schvartsman acertar nos detalhes. O diabo, como se sabe, está neles.