Oartesanato brasileiro tem sido cada vez mais valorizado no exterior (Divulgação)
Ivan Padilla
Publicado em 27 de agosto de 2020 às 05h28.
Última atualização em 31 de agosto de 2020 às 06h43.
Em sua coleção de verão, apresentada em junho, a Prada lançou uma sandália rasteira feita de couro trançado, ao preço de 850 euros. A peça logo causou furor, e não apenas pela beleza. “Da feira de Caruaru!!! Brasil!”, postou a atriz Regina Casé. Sim, o calçado é idêntico ao feito por artesãos da cidade do agreste pernambucano, onde um par é vendido na feira local por 60 reais. Como Luciano Bezerra, que soube do caso por seus filhos. “Essa marca é da Itália, não é?”, perguntou. “É, essas coisas sempre acontecem”, afirmou depois, entre risos.
Intelectuais, internautas e celebridades logo apontaram o que, na prática, poderia ser o primeiro caso de apropriação cultural envolvendo o Brasil, com repercussão. O termo consiste no ato de pegar referência de um produto de um local desprivilegiado, sem dar crédito nem retorno aos apropriados. A reportagem apurou que, antes de a peça ser retirada de circulação, houve muita discussão dentro do conselho da grife. Concluiu-se que o modelo poderia ter inspirações egípcias, marroquinas ou ameríndias.
Para além da discussão, o fato é que o artesanato brasileiro tem sido cada vez mais valorizado no exterior e por uma parcela de consumidores brasileiros, ainda que parte dos artesãos não tenha o devido reconhecimento. Enquanto a indústria da moda vive a era do design artesanal, as décadas de exposição em feiras e projetos vinculados ao turismo local não foram suficientes para proteger os pequenos fabricantes da míngua financeira.
Parte da indústria atentou para o problema. A Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados) apresentou neste mês a varejistas o projeto Calçados do Brasil, um marketplace que faz a ponte entre marcas e donos de lojas para estimular a compra desses produtos dentro do país. No segmento de couro, a maior parte das marcas é das regiões Sul e Sudeste. Pela proximidade com os curtumes locais e com a tradição desses estados em empreender no segmento, as empresas conseguiram formar parques que produzem em escala.
Mais artesanais e com apelo estético, porém, são as marcas abrigadas no programa Brasil Fashion Now, uma iniciativa que reúne, além da associação calçadista, as de têxtil, confecção, estilistas e a agência brasileira de exportações, a Apex-Brasil. Em conjunto com a plataforma de vendas diretas Blanc Fashion e por um valor de 1.600 dólares por uma vitrine de seis meses na plataforma, marcas autorais que tenham métodos manuais em sua essência ganham projeção para fechar negócios.
Entre as etiquetas de lá estão as de rendas da estilista homônima Martha Medeiros, a de ráfia e palha nordestina Akra Collection e a de acessórios de couro Cabana Crafts. O leitor mais atento perceberá que as duas últimas carregam nomes em inglês, e isso diz muito sobre o cliente que mais valoriza o design originário brasileiro — fabricantes, e não só os grandes, muitas vezes precisam apostar no mercado internacional para manter os custos.
O artesão José Francisco Justino, especializado em sandálias que fazem sucesso na Feira de Caruaru, chegou a exportar para a Suíça, mas o negócio não andou “porque tinha de pagar um monte de coisa”, como as taxas portuárias. Na prateleira onde guarda moldes desenhados por sua empresa, a Alicia Artesanato, estão pregados dois pedidos gordos que esperam ser reativados, após a pandemia, pelo comprador.
Dias antes da visita da reportagem, Justino recebeu de uma empresária “de fora” a proposta de reproduzir a tal peça da Prada. Ele se recusou. “Não copio trabalho dos outros. Mesmo que seja daqui, não fui eu quem criou”, diz. Num ateliê próximo, a artesã Rosicleide Monteiro conta que até hoje tem clientes dos Estados Unidos e da Alemanha. Mas ultimamente o fluxo de turistas estrangeiros diminuiu. “Quase toda a produção é comprada por gente daqui de Pernambuco”, afirma.
Em mercados fortes da Europa não há essa dependência de exportação. Em Florença, na Itália, os artesãos vendem na Feira de São Lourenço, uma das mais visitadas da Europa, mas são as grifes de luxo, como Louis Vuitton, Hermès e Tod’s, os principais clientes. Na região do Vêneto, um tipo de trançado local fez a fama da Bottega Veneta, grife de couro do grupo Kering que menos sofreu com a crise da pandemia. Arte manual, a Europa já entendeu, é ativo raro.
Em um paralelo brasileiro, o mestre cearense Espedito Seleiro conseguiu que sua marca chegasse longe. Os ornamentos coloridos criados por ele por cima do couro já rodaram em desfiles na São Paulo Fashion Week, exposições na Europa e em mobiliário de luxo. Seu pai, ainda nos anos 1930, fazia sandálias para Lampião. Seleiro resolveu criar e aplicar tintas naturais e padrões sinuosos em cima do couro. Seleiro tem um livro publicado sobre sua arte e foi até copiado por uma butique de Londres no ano passado, quando uma exposição sobre seu trabalho foi realizada na embaixada brasileira.
Além do couro, os mesmos trançados de cestaria de coleções recentes da Loewe podem ser encontrados no Norte e no Nordeste. A moda dos últimos cinco anos, dos desfiles de alta-costura às vitrines de fast fashion, entendeu o valor do craftmanship. Bordados, costuras e parcerias com comunidades de artesãos são o novo luxo da indústria e estão até na reformulação de grifes como Martin Margiela, agora conhecida como Maison Margiela Artisanal.
A dupla de designers Fernando e Humberto Campana criou em 2015 uma linha de mobiliário em parceria com Espedito Seleiro. A coleção Cangaço ganhou o mundo em exposições nos Estados Unidos e na Europa e foi produzida de forma limitada. “O diálogo conceitual era do Hemisfério Norte para o Hemisfério Norte”, afirma Fernando Campana. “Agora o novo está na África e em países latino-americanos.” Os designers tocam ainda projetos de resgate do bordado e de técnicas de manufatura de couro de pirarucu amazônico.
Essa mesma ideia levou o arquiteto Marcelo Rosenbaum a construir uma parceria com a comunidade de artesãs de Várzea Queimada, povoado próximo a Jaicós, no Piauí. Lá eles desenvolvem o trançado de palha de carnaúba que adorna criações do próprio designer e da rede de contatos que as mulheres do lugar conseguiram fomentar com o trabalho coletivo.
O projeto A Gente Transforma ganhou, no ano passado, o prêmio anual da Fundação Montblanc de Cultura. Rosenbaum, que articula parcerias com grifes e varejistas para escoar o trabalho de artesãos de diversas partes do país, é a ponte de um amplo projeto de resgate da herança artesanal brasileira que a grife Farm, do grupo carioca Soma, lançará no próximo ano.
“Há quem ache artesanato coisa sem valor, mas é de uma riqueza cultural e exclusividade local únicas no mundo”, explica Katia Barros, sócia-fundadora da Farm. Em breve as novas peças da Farm devem chegar às lojas da marca em Nova York e Los Angeles. A grife já promoveu peças de roupa com Espedito Seleiro e acessórios produzidos por índias da tribo Yawanauá, do Acre.
Para Katia Barros, um dos entraves para a ascensão das raízes brasileiras no mercado internacional é a dificuldade de alinhar com essas comunidades regras rígidas de compliance — qualquer deslize com a situação de vida desses trabalhadores pode minar a imagem da empresa. E a Prada é prova do estrago que a internet pode causar.