(André Valentim/Exame)
Denyse Godoy
Publicado em 30 de janeiro de 2020 às 05h42.
Última atualização em 30 de janeiro de 2020 às 11h12.
Não é à toa que o sistema de trens metropolitanos do Rio de Janeiro, operado desde 1998 pela concessionária SuperVia, tem péssima reputação. À lista de aberrações que já tiveram lugar em seus 270 quilômetros de estradas de ferro — incluindo chicoteamento de passageiros por seguranças para acelerar o embarque e atropelamento de dezenas de adultos e crianças todo ano — somou-se, em setembro de 2019, o sequestro de uma composição por seis traficantes armados com fuzis.
Os cidadãos que vão para a escola ou para o trabalho pelas oito linhas que ligam bairros do norte da capital fluminense e mais 11 municípios à estação Central do Brasil, no coração da cidade, habituaram-se aos perrengues. A concessionária costuma figurar entre as piores empresas do país no ranking de atendimento ao consumidor EXAME/Instituto Ibero Brasileiro de Relacionamento com o Cliente (no ano passado, ficou em último lugar).
Mesmo quem não está entre os cerca de 600 mil usuários da malha em dias úteis fica chocado com as notícias que sempre pipocam na imprensa. Mas, na avaliação da SuperVia e do governo fluminense, o momento agora é propício para tentar transformar um negócio que mal se sustenta em uma moderna companhia de mobilidade. Para isso, terão de superar tiroteios, vandalismo, lixo acumulado, tráfico de drogas, milícias. EXAME acompanhou parte dos desafios numa viagem pelos trens dos ramais Deodoro e Belford Roxo, respectivamente o melhor e o pior do sistema.
A esperança de melhoria está calcada na troca do comando da concessionária. Em maio de 2019, depois de oito anos como acionista majoritária da SuperVia, a OTP (antes Odebrecht TransPort, uma subsidiária da empreiteira) vendeu a maior parte de sua fatia na empresa à sócia minoritária, a Guarana Urban Mobility Incorporated (Gumi). Segundo EXAME apurou, a Gumi — controlada pela empresa japonesa Mitsui, que tem como parceiros a operadora de trens JRWest e o Join, fundo do governo do Japão — aumentou o capital da SuperVia em 780 milhões de reais.
A injeção de recursos permitiu a reestruturação societária e a redução da dívida da concessionária de 1,4 bilhão para 900 milhões de reais. A OTP ficou com 11,3% e os japoneses com 88,7%. O Brasil é o país a receber mais investimentos da Mitsui fora do Japão: atualmente, os ativos por aqui somam 8 bilhões de dólares. Com a SuperVia, pela primeira vez o conglomerado está administrando diretamente uma operadora de trens. A Mitsui geralmente prefere correr menos riscos e ser sócia minoritária de parceiros locais experientes.
Entretanto, quando a OTP teve de vender sua fatia para levantar recursos em meio ao turbilhão da Operação Lava-Jato que havia engolfado sua controladora, no final de 2016, não apareceram interessados. Após dois anos de procura, a Mitsui não viu saída a não ser tomar para si a missão de assumir a SuperVia. “Não foi uma decisão fácil. Trata-se de um grande desafio. Porém, acreditamos muito no Brasil e temos um plano de longo prazo”, afirma Kazuhisa Ota, presidente da Gumi. A concessão vai até 2048.
A primeira medida da Gumi foi escancarar para todos — passageiros, investidores e poder público — que a situação é dramática. Transparência significa, por exemplo, avisar pelos sistemas de som das estações e dos trens quando o motivo de uma composição parar no meio do caminho é um tiroteio perto da linha. No ano passado, foram registrados 70 incidentes como esse. A concessionária vem pedindo a ampliação do contingente do Batalhão de Policiamento Ferroviário, que chegou a ter 400 militares, mas atualmente conta com 92.
Quer também que o programa de segurança pública Rio Presente, que combina as forças da Guarda Municipal fluminense com as das polícias militar e civil, seja estendido às linhas de trens. Os 800 seguranças da SuperVia não andam armados nem têm poder de polícia, então não conseguem resolver situações como a da Estação Senador Camará, da Linha Santa Cruz, tomada por traficantes de drogas que impedem a cobrança de passagem. Nas estações também estão sendo feitas campanhas de conscientização contra o vandalismo, que levou à substituição de 53 para-brisas de trens em 2019, ao custo de 30 mil reais cada um, e alertando para o perigo de atravessar a via férrea.
O sistema tem 39 passagens em nível oficiais e 180 clandestinas, às vezes abertas por bandidos que as usam como rota de fuga. Em algumas localidades, o trem passa a menos de meio metro de barracos construídos paralelamente à linha. Usando um financiamento de 10 milhões de dólares do Banco Mundial e em parceria com o governo estadual, a SuperVia vai começar a separar as estações e as vias do entorno com muros de concreto armado e construirá passarelas para a travessia da população, na expectativa de diminuir as invasões e os atropelamentos.
Algumas das soluções, curiosamente, vêm sendo adaptadas da realidade japonesa para a crueza do subúrbio fluminense. A JRWest treinou todos os 398 maquinistas da SuperVia segundo as melhores práticas do sistema japonês para reduzir as falhas.
A empresa estuda um novo método para afixar os dormentes aos trilhos — no Japão, é necessário para evitar o deslocamento das peças durante terremotos; no Brasil, para impedir o roubo por viciados em drogas, que vendem o material de ferro por uma ninharia. Isso também acontece frequentemente com os cabos de cobre que compõem os sistemas de eletrificação e sinalização das linhas.
Em 2019, foram registrados 111 furtos de cabos em toda a malha, um dos motivos de paralisação e atraso dos trens. Mas há situações que fogem à eficiência japonesa: no ano passado, 41 pessoas foram atropeladas pelos trens da SuperVia, levando a dezenas de afastamentos entre os maquinistas para tratamento psicológico.
“Fazemos nossa parte, mas precisamos que o poder concedente cumpra sua obrigação contratual de garantir a segurança da operação. Agora estamos colocando todos os problemas às claras para que a população os entenda e para que as estratégias corretas sejam adotadas”, diz Antônio Sanches, presidente da SuperVia.
A estratégia de gestão às claras tem sido bem recebida pelo governo estadual. Alterações nos ramais para equilibrar melhor a oferta e a demanda de trens estão em curso. Atendendo a uma demanda da SuperVia, o governo estadual concordou em rever a política do Bilhete Único intermunicipal carioca. Ao permitir o embarque em apenas dois meios de transporte em 3 horas e subsidiando os gastos com passagens acima de 8,55 reais, acaba favorecendo os ônibus intermunicipais em detrimento dos trens e do metrô.
“Tenho repetido que sou o secretário dos Transportes, não o mágico dos Transportes, porque é difícil resolver problemas resultantes de décadas de falta de planejamento. Mas estamos empenhados em melhorar o sistema para estimular o uso dos meios de massa”, diz o engenheiro Delmo Pinho, o segundo a chefiar o departamento desde que Wilson Witzel assumiu o Palácio Guanabara em janeiro de 2019.
A Gumi comprometeu-se a investir 80 milhões de reais por ano na concessionária na próxima década para aprimorar o serviço prestado e conseguir atrair mais usuários para o sistema. A média diária de passageiros transportados chegou a ultrapassar 1 milhão na década de 80, mas o descaso com a malha, administrada pelo governo estadual até a cessão para a SuperVia, há 21 anos, criou um ciclo destrutivo.
A má qualidade do serviço espanta os passageiros e, devido à redução do número de usuários, a operadora fica sem dinheiro para investir no serviço e melhorá-lo. Para a Gumi e a SuperVia, em seus últimos anos à frente da concessionária a OTP perdeu o foco e o interesse no sistema de trens metropolitanos carioca, já que sua dona estava atolada em investigações de corrupção e não conseguia mais colocar dinheiro próprio na operação nem se financiar no mercado ou cativar novos sócios.
Adriano Juca, presidente da OTP, diz que a crítica não é justa, porque, no total, a empresa investiu 900 milhões de reais nas vias férreas, 350 milhões nos trens, elevando a 75% a proporção de veículos novos entre os 201 da frota, e 250 milhões de reais nas estações, de modo que a SuperVia cumpriu todas as suas obrigações contratuais. “A escassez de recursos é relativa e precisa ser contextualizada.
O setor de transporte ferroviário é intensivo em capital, e a crise após os Jogos Olímpicos de 2014 reduziu o número de passageiros no sistema, atingindo em cheio nosso plano de investimentos”, diz José Carlos Prober, presidente da SuperVia entre 2016 e 2019 e ex-executivo da Odebrecht. De 2016 a 2018, a média de usuários por dia útil na SuperVia caiu 10%, para 597 mil.
A receita subiu 1% — menos do que a inflação acumulada de 13% —, para 662 milhões de reais, e o lucro recuou 10%, para 26 milhões de reais. A Gumi não dá detalhes, mas seu projeto prevê que a receita e o lucro da SuperVia acompanhem a esperada aceleração da economia brasileira nos próximos anos. Se o Brasil e, mais especificamente, o Rio não ajudarem, não há como os japoneses saírem desse enrosco em que se meteram.