Revista Exame

IA em Hollywood: greve mostra que a ferramenta pode impulsionar a criatividade no cinema

A greve de atores e roteiristas do cinema americano mostra que a IA só vai impulsionar a criatividade humana se os profissionais e seus setores puderem dizer como fazer isso

Greve dos roteiristas: encerrada no dia 27 de setembro, conquistou a proteção contra o uso de IA (David Livingston/Getty Images)

Greve dos roteiristas: encerrada no dia 27 de setembro, conquistou a proteção contra o uso de IA (David Livingston/Getty Images)

Publicado em 5 de outubro de 2023 às 06h00.

A inteligência artificial é a bola da vez das grandes corporações. Empresas estão correndo para mostrar como vão usar novos modelos de IA generativa, e a mídia está cheia de histórias sobre o potencial transformador da tecnologia. É inegável que ela pode aumentar de modo significativo a produtividade.

Mas quem pode ganhar com isso? A greve em andamento da Associação de Escritores da América (Writers Guild of America — WGA) pode oferecer uma resposta.

Os roteiristas de Hollywood estão confrontando um futuro que todos os trabalhadores do conhecimento vão enfrentar em breve — e sem o benefício da representação sindical. Em jogo está como a IA será usada, e por quem. Será que os produtores de TV e cinema verão a IA como uma maneira de substituir roteiristas e cortar custos, ou vão usá-la para criar conteúdo de mais qualidade, permitindo aos trabalhadores criativos serem mais produtivos e ganharem salários maiores?

Já percorremos um trajeto semelhante em outro momento. No início do século 20, as rápidas melhorias na tecnologia de fabricação, como as linhas de montagem móveis e o maquinário elétrico, levaram a um aumento acentuado na produtividade.

Henry Ford, pioneiro em aplicar essas tecnologias, estimava que o maquinário motorizado “provavelmente dobrou sozinho a eficiência do setor”, ao mesmo tempo que possibilitou a construção de fábricas muito maiores.

Mas os trabalhadores não compartilharam desses ganhos automaticamente. Pelo contrário, isso não aconteceu até que novas tarefas fossem criadas, e só quando os trabalhadores tinham adquirido poder de barganha suficiente para exigir salários maiores. Esses são os dois pilares da prosperidade compartilhada.

Ainda que Ford e seus contemporâneos­ decerto tenham automatizado alguns processos, suas fábricas melhoradas também introduziram uma série de novas atividades que exigiam mão de obra humana — de preparo material e manutenção de máquinas a coordenação de operações. Essas tarefas expandiram a contribuição dos trabalhadores à produção e se traduziram num grande aumento na demanda por mão de obra.

Em 1899, o setor automobilístico dos Estados Unidos empregava alguns milhares de trabalhadores, produzindo cerca de 2.500 veículos por ano. Em 1929, a Ford e a GM fabricavam 1,5 milhão de carros por ano (com a produção total de automóveis nos Estados Unidos na casa dos 4,5 milhões), e a indústria automobilística empregava mais de 400.000 pessoas.

O segundo pilar é o poder de barganha. A famosa greve-ocupação na GM em 1936-1937 foi um passo fundamental para alcançar o reconhecimento sindical, melhores condições de trabalho e remunerações maiores para os trabalhadores.

Ao longo de várias décadas, o novo equilíbrio que se desenvolveu entre a direção e os empregados na produção de automóveis contribuiu para o rápido crescimento salarial. Parte do que possibilitou isso foi uma ênfase no treinamento e na capacitação contínuos dos trabalhadores para lidar com novas tarefas. Tanto empregadores quanto empregados se beneficiaram dos ganhos de produtividade.

Na década de 1960, a produção de automóveis dos Estados Unidos tinha dobrado desde a década de 1920, com as quatro maiores fabricantes empregando 1,3 milhão de trabalhadores — mais de três vezes o emprego no setor quatro décadas antes. Não só isso, os lucros corrigidos pela inflação para as empresas dominantes, GM e Ford, foram cerca de cinco vezes maiores do que nas décadas anteriores.

A ascensão do trabalho organizado na indústria automobilística também estabeleceu um modelo de negociações capital-trabalho para outras indústrias. Imaginem o que teria acontecido se as empresas de produção tentassem adotar “fábricas sem funcionários” na década de 1950, como alguns vinham começando a defender.

O crescimento da produtividade (para não falar na prosperidade compartilhada) teria sofrido muito à medida que as contribuições humanas para o trabalho técnico, design, manutenção, inspeção e resolução criativa de problemas fossem minadas ou perdidas.

Hoje, enfrentamos mudanças igualmente revolucionárias, agora que os executivos estão considerando como aplicar a IA generativa a todos os componentes da produção e distribuição de conhecimento. As principais empresas focadas em tecnologia enfrentam muitas das mesmas escolhas que os fabricantes de automóveis tiveram de fazer no início do século 20.

Será que novas tecnologias poderosas devem ser usadas para automatizar o trabalho de conhecimento e marginalizar os trabalhadores? Ou será que a IA pode se tornar uma ferramenta para impulsionar a produtividade e criatividade dos trabalhadores? Muito dependerá de descrobrir se os trabalhadores têm voz e como essas escolhas afetarão a produtividade e a qualidade do produto.

Há motivos para pensar que a greve da WGA poderia ser mais importante até do que a luta pelo reconhecimento sindical nas fábricas da Ford e da GM um século atrás.

Para começar, os trabalhadores criativos de Hollywood são excepcionalmente bem organizados e poderosos em comparação com os trabalhadores de outras indústrias. Se eles fracassarem, outros trabalhadores do conhecimento terão ainda menos chances de moldar o futuro do trabalho e da tecnologia.

As escolhas à nossa frente são históricas, porque há uma tentação óbvia para os produtores de cinema tomarem o caminho mais fácil do “automatize tudo que puder”. Essa abordagem pode ser lucrativa no curto prazo se permitir que mais shows sejam feitos de forma mais barata, com menos roteiristas, atores e outros funcionários.

Mas lucro dos estúdios e produção de alta qualidade não são a mesma coisa. Ainda não há substituto para a engenhosidade e criatividade humanas. Olhe além do barulho, e deve ficar claro que prever a próxima palavra em uma frase e agregar a “sabedoria” disponível na internet tem poucas chances de gerar uma produção artística superior — mesmo que grandes modelos de linguagem consigam criar sitcoms medíocres.

O caminho mais fácil é particularmente custoso por causa do que ele deixa de fora. A IA generativa pode se tornar uma ferramenta tremendamente benéfica nas mãos de artistas criativos, ajudando na pesquisa e no desenvolvimento de novas ideias. Se pudermos achar nosso rumo para esse trajeto mais compensador, a IA pode levar o progresso tecnológico ainda mais adiante, além de reforçar os retornos da engenhosidade humana.

Muito está em jogo na greve dos roteiristas. É óbvio que seria um desastre para os trabalhadores se eles fossem escanteados pelos estúdios de cinema. Trabalhadores do conhecimento — e, de fato, todos os trabalhadores — deveriam torcer pelo sucesso da WGA e seus integrantes em mostrar não só que os sindicatos conseguem aumentos de salários no curto prazo mas também como a tecnologia pode ser usada para apoiar a criatividade, em vez de simplesmente desalojá-la.

Acompanhe tudo sobre:exame-ceo

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda