Revista Exame

O 'laboratório perfeito' dos negócios de impacto social no Brasil

Os negócios de impacto buscam resolver problemas da sociedade em larga escala, com baixo custo e de maneira lucrativa. A área de saúde é o laboratório perfeito

Thomaz Srougi, fundador do Dr.Consulta: dois anos de testes na favela de Heliópolis (Leandro Fonseca/Exame)

Thomaz Srougi, fundador do Dr.Consulta: dois anos de testes na favela de Heliópolis (Leandro Fonseca/Exame)

Marina Filippe

Marina Filippe

Publicado em 23 de março de 2022 às 15h00.

Última atualização em 24 de março de 2022 às 15h28.

A primeira unidade da rede de clínicas Dr.Consulta foi inaugurada na favela de Heliópolis, a maior de São Paulo, em 2011. Thomaz Srougi, executivo e investidor que passou pela Ambev, voltava de um período de estudos sobre modelos estatísticos na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, quando teve a ideia de empreender na área de saúde.

As estatísticas mostravam, para ele, a possibilidade de criar um negócio rentável, de larga escala, que ao mesmo tempo melhoraria a vida da população. “Para minha surpresa, com todos os dados e soluções preditivas, percebi que seria preciso encarar o mundo físico”, diz Srougi. Os números guiavam a decisão estratégica, mas a prova de fogo seria nas ruas. 

Por dois anos, Srougi e seu time trabalharam na favela para validar hipóteses, entender o que médicos e pacientes queriam e encontrar um modelo autossustentável para uma clínica particular numa área de baixa renda. “No meio do caminho quase fechamos algumas vezes”, diz ele. Dez anos depois, o Dr.Consulta acumula uma base de 4,5 milhões de clientes e 32 clínicas, que oferecem consultas a um preço médio de 110 reais. 

O cirurgião Marcus Gimenes (ao centro) e seus sócios na Cuidar.me, Raphael Garcia, Rafael Morgado e Danilo Fernandes: pacotes pré-aprovados garantem agilidade na liberação de procedimentos. “Já tive pacientes na UTI que esperaram quatro dias para que a operadora liberasse um marca-passo” (Leandro Fonseca/Exame)

O Dr.Consulta é um exemplo de um modelo de negócios que atrai cada vez mais investidores e é apontado como um modelo pioneiro por quem analisa viabilidade econômica de startups. A empresa une saúde e tecnologia, duas áreas que atraem bilhões em investimentos, e foi desenhada para resolver um problema social.

Esse modelo é chamado de negócio de impacto, um conceito que surgiu no Terceiro Setor e começa a expandir seus tentáculos para as estratégias dos investidores de risco, em especial do venture capital. A ideia, de maneira simplificada, é dar escala a soluções para questões sociais. Um bom negócio de impacto atua em problemas estruturais da sociedade, que afetam milhões de pessoas, e traz uma abordagem original, escalável e de rápida implementação. É quase uma ONG com esteroides — se a ONG também fosse capaz de entregar retorno ao acionista. 

(Arte/Exame)

A área de saúde é um laboratório perfeito para a criação de negócios de impacto. O problema do acesso é global, afeta milhões de pessoas e, por natureza, os benefícios do negócio são positivos. A pandemia, por um lado, trouxe desafios gigantescos; por outro, acelerou a busca por soluções de larga escala. Não à toa, o ano passado foi de recordes para as chamadas healthtechs. No mundo, foram registrados 990 negócios de venture capital no setor, um salto em comparação aos 797 registrados em 2020.

No mesmo período, o volume de investimentos dobrou, saindo de 22 bilhões para 44 bilhões de dólares, segundo a empresa de dados Start­Up Health In­sights. “As healthtechs estão em um momento parecido com o das fintechs um tempo atrás. Empresas que faturam nem 1 milhão de dólares estão com a avaliação de mercado nas alturas”, afirma Patricia Nader, líder de ESG e investimentos de impacto da Good Karma Ventures, gestora especializada no segmento. Recentemente, a Good Karma fez um investimento no Zenklub, que opera uma plataforma de saúde mental voltada para empresas. “Esse tema ganhou relevância por causa da pandemia. A saúde mental é uma das principais causas de afastamento do trabalho.”

O Dr.Consulta faturou 330 milhões de reais e registrou uma margem operacional de 10% no ano passado. Esse resultado é fruto de uma década de testes e investimentos em modelos que garantissem que médicos e pacientes fossem ouvidos. Srougi queria usar o conhecimento adquirido em Chicago  para revolucionar a saúde brasileira. E chamou reforços. Em 2016, contratou ex-engenheiros da SpaceX, empresa de exploração espacial fundada pelo bilionário Elon Musk, para automatizar a gestão dos médicos — é como chamar a Nasa para dar um jeito no sistema do RH. E o resultado foi... uma decepção. 

André Florence (ao centro), Guilherme Azevedo (à esq.) e Matheus Moraes, fundadores da Alice: o objetivo é focar a prevenção do paciente para melhorar a saúde e garantir a redução nos custos (Leandro Fonseca/Exame)

A dificuldade era fazer os engenheiros entenderem o foco do negócio. Para resolver o problema do acesso à saúde, o Dr.Consulta precisava, na realidade, melhorar a qualidade desse acesso. As abordagens tradicionais de redução de custos na saúde sempre se preocuparam com a operação da porta do hospital para dentro. Srougi pensou em um modelo focado no paciente — e derrubou os custos.

Passada a frustração com os engenheiros espaciais, um time interno conseguiu desenvolver a ferramenta ideal em quatro meses. Hoje, são 1.500 médicos utilizando um sistema em que “robôs” fecham as agendas, analisam cancelamentos e liberam agendamentos para o mesmo dia, o que reduz o custo administrativo em 10%.

A tecnologia ajuda os médicos a entender, a partir dos relatos dos pacientes, quais são os exames que precisam realmente ser feitos. Segundo Srougi, enquanto nas redes de saúde suplementar são pedidos até dez exames por consulta, no Dr.Consulta a média é de 2,2. “Isso faz com que os pacientes economizem em exames desnecessários, tenham um diagnóstico mais ágil e preciso, além de ampliar o acesso para mais pessoas”, afirma. 

(Arte/Exame)

A tecnologia também ajuda o profissional a ter 30% mais tempo para explicar o que está prescrevendo e por quais motivos. Na equação do atendimento, são considerados o tempo da consulta e cerca de 30 variáveis. “Conseguimos economizar 25% nas despesas de folha de pagamentos, uma vez que os médicos não ficam ociosos com cancelamentos e outros imprevistos”, diz Srougi. O Dr.Consulta estima ter tirado 3 milhões pessoas do Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente no atendimento primário. 

O novo desafio é oferecer um atendimento contínuo, incluindo internações e outras necessidades hospitalares. Em dezembro, a empresa fez um aporte, por valor não revelado, na healthtech Cuidar.me. A startup oferece planos de saúde a partir de 169 re­ais, para usuários com até 18 anos, e de até 999 reais, para pessoas com mais de 59 anos, uma mensalidade 30% menor do que a da concorrência, de acordo com os executivos. 

A empresa pretende ser uma solução para um mercado que está se concentrando. A fusão do Sistema ­Hapvida com o Grupo NotreDame Intermédica, por exemplo, gerou o maior sistema de saúde suplementar do Brasil, com mais de 13,6 milhões de beneficiários, 60.000 colaboradores e 7.000 leitos de atendimento. A rede D’Or, de hospitais, comprou a seguradora SulAmérica, que tem 7 milhões de clientes e foi avaliada em 13 bilhões de ­reais.

A Cuidar.me nasceu da visão do cardiologista Marcus Vinícius Gimenes sobre as necessidades dos pacientes versus as burocracias das operadoras de saúde. “Já tive pacientes na UTI que esperaram quatro dias para que a operadora liberasse um marca-passo”, afirma Gimenes. Amante da tecnologia, o cirurgião começou a estudar como empresas de outros países usam modelos de inteligência artificial para desenvolver pacotes e processos médicos pré-aprovados. A prática, conhecida no mercado como ­bundle, foi a base para o nascimento da Cuidar.me, em 2020. 

A startup pré-aprova pacotes e serviços com os hospitais por valores já negociados. “No nosso acordo temos 700 tipos de pacotes, com valores fixos, para atendimento no pronto-socorro, internação e demais necessidades”, explica o cirurgião. “Se a fatura do hospital vem dentro do valor acordado, o pagamento é liberado automaticamente, gerando eficiência operacional e beneficiando a todos.” Inicialmente, os gestores hospitalares demonstraram dificuldade em trabalhar nesse modelo. “Com o tempo, eles percebem que é possível, desde que exista uma melhor gestão das contas”, afirma. As primeiras negociações com grandes hospitais levaram seis meses. Agora o acordo é fechado em 30 dias. A parceria com o Dr.Consulta dará maior capilaridade à Cuidar.me, que antes não oferecia uma rede relevante de clínicas médicas em seus planos. 

A tecnologia também ajuda a ampliar o tratamento mais barato e eficiente que existe: a prevenção. A Cuidar.me trabalha com um conjunto de médicos aliados à tecnologia para se manter em contato com o paciente, incentivar que ele use a telemedicina e o aplicativo com 21 trilhas de cuidado em frentes como ansiedade, câncer de mama e tabagismo. “Determinamos para cada paciente quais são seus maiores riscos. Ele é lembrado de fazer checkups e incentivado a adotar métodos preventivos, que também diminuem as idas ao hospital”, explica Gimenes. “Queremos que a pessoa fique conosco 30 anos, e não dois e meio, como costuma acontecer nos planos empresariais.” Neste ano, a Cuidar.me espera chegar a 20.000 clientes. Pelas contas da empresa, dos 100 milhões de brasileiros na classe C, 25% conseguem pagar um plano seu. 

(Arte/Exame)

A prevenção e o acompanhamento próximo dos pacientes também são o foco da startup Alice, que parece um plano de saúde, mas, segundo seus fundadores, não é. “A Alice é uma gestora de saúde, e não um plano, porque faz gestão da saúde dos associados de modo a diminuir as idas dele ao pronto-socorro. De modo geral, 18% delas são evitadas se atendidas em modelos como o nosso”, diz André Florence, presidente e cofundador da startup.

Na Alice, 98% dos eventos de saúde dos clientes são coordenados pelo time de saúde interno, o que significa que, na maioria dos casos, os pacientes só são encaminhados ao pronto-socorro quando é realmente necessário. Para Florence, a chave do sucesso está em dois fatores: uma comunicação que mostra como ser saudável, com acompanhamentos acessíveis para a rotina do paciente, e uma remuneração justa baseada na solução. “Para cada procedimento médico temos um protocolo com base em estatísticas. Se a pessoa vai fazer uma cirurgia e é esperado que ela fique dois dias na UTI e, depois de três meses, volte a ter uma vida normal, vamos remunerar melhor o desfecho de acordo com o esperado”, explica.

O hospital ganha por resultado, e não por procedimento. A Alice chegou à marca de 8.000 clientes em menos de dois anos. A healthtech tem ampliado a rede de cobertura e é atualmente parceira de 11 hospitais, como Beneficência Portuguesa e Albert Einstein, e de mais de 200 laboratórios na cidade de São Paulo. A maior parte dos clientes é jovem, com idade média de 30 anos, que paga cerca de 570 reais para usar os serviços. Meses atrás, no lançamento, o produto mais barato da startup custava 900 reais. “Conseguimos reduzir o preço ao aumentar a escala, e a tendência é continuar assim”, afirma Florence. 

Jeane Tsutsui, presidente do Grupo Fleury, e Hans Lenk, presidente da Saúde iD: produtos voltados para pessoas sem plano de saúde a partir de 29,90 reais por mês. O marketplace aceita até concorrentes (Leandro Fonseca/Exame)

A Alice já captou 174,8 milhões de dólares em três rodadas de investimento. Na última rodada, liderada pelo SoftBank, em dezembro, foram 127 milhões de dólares. 

Investidores estão atentos às empresas que podem mudar o setor de saúde e multiplicar seu valor de mercado. No mundo, no entanto, ninguém ainda achou a fórmula para medir o impacto das empresas. “Há quatro abordagens dominantes para isso. Nós acreditamos em um modelo que considera o impacto na renda das pessoas multiplicado pela escala”, diz Nader, da Good Karma. No caso do Zenklub, a gestora calcula que a empresa vai gerar mais de 1 bilhão de reais de impacto positivo. O valor é igual a oito vezes o investimento feito na startup. 

Quanto maior a empresa, maior o impacto 

A saúde de impacto também atrai grandes grupos empresariais, não necessariamente da área. O Google, por exemplo, busca desenvolver prontuários eletrônicos e maior inteligência para o sistema de saúde, de modo que o paciente consiga ter uma visão integrada sobre suas necessidades. Em março, o gigante de tecnologia anunciou uma parceria com a empresa de softwares para gestão da saúde MedTech. No Brasil, o Grupo Fluery, que registrou receita de 1 bilhão de reais no terceiro trimestre de 2021, lançou a Saúde iD, uma plataforma focada em pessoas físicas que não têm plano de saúde.

A assinatura dos serviços varia entre 29,90 e 59,90 reais mensais. Com o valor, o paciente tem direito a teleconsultas e exames nas clínicas A+ Medicina Dignóstica, que pertencem ao grupo. “Em 2018, o Fleury começou a olhar para fora em busca de modelos de negócios que pudessem servir para a realidade brasileira e, ao mesmo tempo, gerassem mais alcance, dado o desafio de só 24% da população ter acesso à saúde suplementar”, afirma Jeane Tsutsui, presidente do Grupo Fleury. 

Tiago Carvalho, fundador da Dentz: experiência como missionário utilizada para criar o modelo de negócios (Leandro Fonseca/Exame)

A Saúde iD trabalha como um market­place. Apesar de fazer parte do grupo, é uma empresa independente, com governança própria e liberdade para conectar outras empresas, inclusive concorrentes. Entre os dez maiores vendedores no mar­ketplace há, por exemplo, hospitais e laboratórios como ETCO, Labs a+, Rede Opera, UPO, SP Plus, Diagnoson A+, IRN, BR Surgery e Prime Clinic. “Para crescer, não precisamos, necessariamente, construir hospitais, e sim colocar as ofertas de procedimentos dentro da plataforma”, diz Hans Lenk, presidente da Saúde iD. As parcerias viabilizam preços competitivos, como descontos de até 80% em farmácias. “Há uma mudança de visão de concorrência para cooperação quando se coloca o usuário no centro, o que traz uma melhor utilização de seus ativos”, afirma Tsutsui. 

O setor de odontologia também tem movimentos de companhias que buscam gerar acesso e, consequentemente, causar impacto. Um exemplo disso é a Dentz, rede de franquias com 24 clínicas odontológicas, fundada em 2018 por Tiago Carvalho, que deixou a presidência da consultoria Euromonitor na América Latina para investir no setor de saúde. “O Brasil é o país com maior número de dentistas em atividade, com mais de 300.000 profissionais, mas ainda assim a população tem pouco acesso à saúde bucal”, diz ele. “Foi com esse desafio que encontrei sentido no meu trabalho.”

Aos 19 anos, Carvalho atuou como missionário da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, nos estados da Região Nordeste. “Ali tive a oportunidade de ver as comunidades e favelas dos rincões, vivência que sempre levei para o trabalho”, afirma. A experiência o ajudou a criar o modelo de negócios, em especial na parte de atendimento. 

A primeira consulta é gratuita, e o dentista usa uma câmera para que o paciente possa ver e entender o diagnóstico. O passo seguinte é a oferta de crédito. A Dentz parcela o procedimento em até 36 vezes no boleto, com juros que vão de 1,5% a 2% ao mês. A inadimplência fica em torno de 7%, e as parcelas partem de 40 ­re­ais. Mas oferecer crédito não basta, é preciso compreender seu público. “Já atendemos, por exemplo, um coletor de lixo que pagou 12.000 reais à vista, e até então não tinha seguido com seu tratamento porque não havia encontrado clínicas que o atendessem sem preconceito”, diz Carvalho. Em 2021, a Dentz faturou 24 milhões de reais, um crescimento de 140%. Para este ano, o plano é chegar a 50 franquias. 

Se tudo der certo, os negócios de saúde de impacto vão revolucionar a saúde pública e privada. Milhões de pessoas passarão a ter acesso a serviços de qualidade, e os governos terão orçamento para melhorar a qualidade da saúde pública — atualmente, o atendimento primário custa 32,7 bilhões de reais ao SUS, 20% da distribuição orçamentária de 2021. A prevenção aliada à tecnologia fará com que a população fique mais saudável, reduzindo a necessidade de intervenções médicas e melhorando a qualidade de vida. Novos grupos empresariais também serão formados, e investidores de risco multiplicarão seus ganhos em escala. 

Duas dúvidas, no entanto, circundam esse conceito. A primeira é: o que vem na frente, o lucro ou o impacto? A segunda é: o paciente que sai da fila do SUS e recebe um atendimento melhor e mais rápido se importa com esse dilema?  

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