Revista Exame

Leva de startups mira clientes que nunca pisaram num banco

Número de startups financeiras (fintechs) de meios de pagamento aumentou de 19, em 2015, para 66, no ano passado — e muitas são voltadas para a baixa renda

Os irmãos Kulikovsky, da Acesso (André Lessa/Exame)

Os irmãos Kulikovsky, da Acesso (André Lessa/Exame)

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Naiara Bertão

Publicado em 15 de fevereiro de 2017 às 05h55.

Última atualização em 15 de fevereiro de 2017 às 05h55.

São Paulo – O engenheiro mecânico Sérgio Kulikovsky pode ser chamado de empreendedor “serial”. Em 1998, quando tinha acabado de se formar na Universidade Cornell, nos Estados Unidos, fundou a NetTrade, uma das primeiras corretoras virtuais do Brasil. Vendeu a empresa em 2002 para o portal financeiro Patagon (que acabou fechando pouco depois). No ano seguinte, Kulikovsky ajudou a fundar a empresa de certificação digital Certisign (ele ainda tem 27% das ações). Sua conclusão depois das duas experiências: é dificílimo concorrer com os grandes bancos, ainda que muitos clientes não morram de amores por eles.

Depois de tirar um período sabático — em que viajou alguns meses de barco com a família e morou em Israel —, Kulikovsky decidiu criar uma nova startup. Mas, dessa vez, mirou os clientes que nunca haviam pisado numa agência bancária. Aqueles que as instituições financeiras costumam ignorar, como trabalhadores informais, consumidores inadimplentes e, de forma geral, quem tem pouco dinheiro.

Em 2010, fundou, junto com dois sócios, a Acesso, que emite cartões pré-pagos para qualquer cliente que tenha CPF, mesmo que esteja com o nome sujo. Pequenos varejistas podem usar o cartão para receber pagamentos por seus produtos, sem ter uma conta em banco. Aos poucos, a empresa foi decolando. No ano passado, faturou 40 milhões de reais, o dobro de 2015. A margem de lucro da Acesso é de 10%, enquanto a de Bradesco e Itaú fica em torno de 20% “O mercado potencial é enorme. Os grandes bancos não entram nisso porque as margens de lucro são muito menores”, diz Kulikovsky, que passou em 2016 o comando da Acesso ao irmão, Paulo.

Assim como os irmãos Kulikovsky, outros empreendedores vêm apostando em fintechs (como são chamadas as startups financeiras) voltadas para quem não consegue — ou não quer — ter conta em banco. Estimativas indicam que esse é um mercado formado por 55 milhões de pessoas com mais de 18 anos. Os sem-banco sempre estiveram ali, mas começaram mesmo a virar alvo das fintechs nos últimos três anos, quando o Banco Central facilitou a abertura de contas eletrônicas e a criação de novos sistemas de pagamento, como a transferência de dinheiro pelo celular.

A popularização dos smartphones também ajudou: há hoje quase 170 milhões de celulares em uso, bem mais do que computadores. “É um movimento global: há 2 bilhões de desbancarizados no mundo que os bancos tradicionais não conseguem atender pela estrutura de custos. Isso despertou a atenção de fintechs”, diz Guilherme Horn, diretor da consultoria Accenture e líder de Inovação. A consultoria estima que esse público possa gerar 380 bilhões de receitas por ano, no mundo, para quem estiver disposto a aceitá-lo.

A necessidade mais urgente do público de baixa renda é de meios de pagamento. Quem não tem conta em banco precisa se virar com dinheiro — e correr o risco de ser roubado — e cheques. Por isso, é nesse segmento que a maioria dos empreendedores tem investido. Um levantamento da ABFintech, associação que reúne startups da área financeira, mostra que o número de fintechs de meios de pagamento aumentou de 19, em 2015, para 66, no ano passado — e muitas são voltadas para a baixa renda.

Além da Acesso, é o caso da Celcoin, que oferece um aplicativo que funciona como uma conta-corrente: o número da conta é o mesmo do celular, as transferências de dinheiro são feitas por SMS e os depósitos e os saques são realizados por meio de uma rede de cerca de 2 000 correspondentes bancários, como farmácias e supermercados. Algumas fintechs começam a se especializar em serviços para trabalhadores autônomos e pequenos empresários.

A catarinense SD Bank está desenvolvendo um sistema que permite digitalizar cheques e usar o valor a receber para fazer pagamentos. Se o emissor do cheque não pagar, a SD Bank pode arcar com o prejuízo — para isso, vai oferecer uma garantia, depois, claro, de fazer uma análise dos clientes que pretende aceitar. Fora do segmento de meios de pagamento também surgiram fintechs especializadas em microcrédito, como a Avante.

As fintechs não oferecem exatamente o mesmo que os bancos: os serviços são normalmente mais limitados, mas, como o custo é menor, os clientes acham que compensa. Para ser cliente da Acesso, por exemplo, é preciso pagar 15 reais para comprar um cartão, mais 5 reais mensais se o cartão foi usado naquele mês (caso contrário, não há cobrança). Paga-se também uma taxa de 2,50 reais por recarga (há isenção para valores superiores a 500 reais). Num grande banco, abrir uma conta custa cerca de duas vezes mais, e os pacotes de tarifas variam de 30 a 80 reais por mês.

Como essas startups atraem os clientes mais complicados — inadimplentes, sem comprovação de renda ou que precisam economizar centavos para não ficar no vermelho todo mês —, seu risco operacional é alto. Elas dizem que compensam isso com tecnologia, que permite analisar diferentes aspectos do perfil dos clientes, e com baixos limites de crédito. O tempo vai dizer se os sem-banco são um bom negócio — ou se os bancões têm razão em deixá-los para lá.

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