Revista Exame

Lei da concorrência veio para facilitar e complicou

Com a nova lei da concorrência, se uma siderúrgica comprar um supermercado, terá de apresentar 58 documentos ao Supercade. Na Alemanha, bastaria enviar uma carta

Chocolates Garoto: regras antigas emperram a compra pela Nestlé há uma década (Creative Commons)

Chocolates Garoto: regras antigas emperram a compra pela Nestlé há uma década (Creative Commons)

DR

Da Redação

Publicado em 5 de julho de 2012 às 15h07.

São Paulo - Na terça-feira 29 de maio, entrou em vigor o que os especialistas em regulação já chamam de a melhor lei antitruste que o Brasil já teve. Discutida ao longo de uma década por economistas e advogados ligados aos organismos de defesa da concorrência e debatida desde 2005 no Congresso Nacional, a nova legislação adotou muitos dos instrumentos consagrados em países mais desenvolvidos.

No entanto, mesmo bem-vinda — de forma quase unânime —, a entrada em vigor da nova lei foi precedida por uma espécie de surto de anúncios de fusões e aqui­sições. Nos dias que antecederam à sua promulgação, foram anunciadas quase 20  operações, estimadas em pelo menos 10 bilhões de reais.

Era o recado do mercado: na prática, ainda não se sabe se as tão esperadas mudanças vão ocorrer para o bem ou para o mal. “O novo regimento é mais complexo e extenso. Em algumas operações, as partes vão ter de apresentar até pro­jeções de atividades para os próximos anos — coisa que, na prática, muitas nem têm”, afirma Eduardo Molan Gaban, sócio do escritório de advocacia Machado Associados e autor de Antitrust Law in Brazil, livro sobre as leis antitruste brasileiras lançado neste ano na Inglaterra.

De antemão, o que se pode afirmar é que há contrassensos. Sob a lei antiga, criada em 1994, o sistema brasileiro de defesa da concorrência era formado por três órgãos. As operações de fusão e aquisição precisavam ser analisadas pela Secretaria de Direito Econômico, pela Secretaria de Acompanhamento Econômico e pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

É desnecessário dizer que a estrutura tríplice tornava o processo de análise lento e burocrático. Uma das preocupações dos legisladores foi simplificar a estrutura para torná-la mais ágil. A lei atual consolidou o organismo no Cade — e, por isso, o órgão foi apelidado de Supercade.

Ocorre que, paralelamente, a lei também passou a exigir um reforço da papelada que as empresas precisam apresentar, o que pode tornar o processo mais burocrático e mantê-lo tão ou mais lento do que antes.

No passado, operações mais complexas entre empresas do mesmo setor — que poderiam, portanto, criar concentração de mercado, como a união da Perdigão com a Sadia — demandavam 35 documentos. Agora, operações do gênero exigem 140 documentos.

A overdose de papéis vale também para o chamado rito sumário — a análise de operações mais simples, nas quais o risco de concentração de mercado é remoto ou mesmo nulo. Se um grupo siderúrgico iniciar um movimento de diversificação e comprar um supermercado, vai precisar apresentar 58 documentos.


Na Alemanha, algumas operações dessa natureza requerem apenas uma carta notificando a operação.  “É documento demais”, diz Marcelo Calliari, sócio da banca Tozzini Freire e ex-conselheiro do Cade. “Muitos deles nem vão ser necessários para avaliar a operação.”

Outra mudança aguardada e comemorada — e que agora atrai desconfiança — é a análise prévia das operações. Pela lei antiga, uma empresa só notificava a compra de outra depois de fechar o negócio. Se o Cade fosse contra a operação, restava aos envolvidos brigar na Justiça para tentar manter o negócio.

O caso mais emblemático desse desacordo entre empresa e órgão regulador ocorreu na compra da Garoto pela Nestlé. A aquisição completou em fevereiro uma década, mas não foi oficializada e está na Justiça até hoje porque o Cade não concordou com a fusão.

Como ocorre nos países mais desenvolvidos, agora uma aquisição só pode ser fechada mediante a aprovação prévia do Cade. Estaria tudo certo se não fosse a insegurança criada em torno dos prazos estabelecidos.

Em 2005, quando chegou à Câmara dos Deputados, o texto do projeto de lei já previa um prazo máximo para o Cade dar seu parecer: 180 dias para os casos mais complexos, prorrogáveis por mais 60 — ou oito meses, como ocorre em países como o Reino Unido.

O Congresso, no entanto, abrasileirou a lei, abrindo espaço para que o processo fosse mais arrastado: esticou o prazo para 240 dias, prorrogáveis por mais 90. Ao todo são 330 dias, praticamente um ano. Na Itália, o prazo máximo é 75 dias. 

Insegurança

Para complicar, ainda não se sabe ao certo o que acontecerá se o Cade não conseguir chegar a uma decisão depois do prazo. A presidente Dilma Rousseff vetou o artigo da lei que previa a aprovação automática da transação se o Cade não chegasse a um veredito nesse período.

Mas o Cade editou uma resolução que informa que a aprovação automática está valendo. “Isso certamente é um ponto de insegurança jurídica”, diz Roberto De Marino Oliveira, sócio da banca Peixoto e Cury. No caso do rito sumário, não há prazo prees­tabelecido.

A expectativa é que um parecer demore no máximo 45 dias, prazo que coincide com o de paí­ses desenvolvidos. Mas é apenas uma expectativa. Não há como garantir que não acabem parados por meses.


Sabe-se também que, no que se refere ao quadro de pessoal, o novo Cade nasce mais para sub do que súper. Com menos de 60 funcionários, o órgão analisou 892 operações no ano passado, um recorde. “Certamente é a pior relação entre o número de servidores de um órgão da concorrência e o tamanho do PIB do país”, diz Olavo Chinaglia, o último presidente do Cade sob a lei antiga.

O Brasil tem o sexto PIB do mundo. No Canadá, que tem o nono, 150 servidores analisaram no ano passado 200 operações. O governo já autorizou a realização de concurso para a contratação de 200 funcionários, mas a ampliação do número de servidores vai acontecer em etapas — e somente a partir de 2013.

Parte da correria das empresas para anunciar suas aquisições, movimento que precedeu a transição entre a velha e a nova lei, levou em consideração essa distorção: o Cade entra em uma nova era com regras totalmente diferentes e demanda extra de documentos, mas com o mesmo número de pessoas.

“Todo mundo sabe que vai ter um engarrafamento de operações, e ninguém quer servir de cobaia”, diz um banqueiro de investimento que preferiu não ter seu nome revelado. O problema é que, no afogadilho, nem todas as empresas cumpriram o ritual do processo e podem ter dificuldades lá na frente.

Por outro lado, um número considerável de companhias ganhou carta branca para fazer aquisições e fusões sem o crivo do Cade. A lei estreou exigindo que passassem pela autarquia operações em que a maior empresa faturasse, no mínimo, 400 milhões de reais, e a menor, 30 milhões.

Dois dias depois de a lei entrar em vigor, uma portaria interministerial elevou o piso para 750 milhões e 75 milhões de reais, respectivamente. Os valores são considerados altos até para economias maiores e mais sofisticadas do que a brasileira.

Nos Estados Unidos, dependendo do valor envolvido em uma fusão, empresas que faturam o equivalente a 26 milhões de reais já são obrigadas a notificar o órgão regulador. “Esse número é uma adivinhação. Há setores inteiros que não faturam isso no país”, diz um ex-conselheiro do Cade.

Procurados por EXAME, Vinícius Marques, novo presidente do Cade, e Carlos Ragazzo, superintendente-geral, preferiram não conceder entrevista para clarear as dúvidas. O resumo da ópera é ambíguo. Por um lado, o arcabouço de defesa da concorrência avançou. Mas, por outro, as dúvidas aumentaram. Ainda serão necessários alguns meses da nova lei para saber se os ganhos compensam as perdas.

Acompanhe tudo sobre:ConcorrênciaEdição 1018Fusões e AquisiçõesLegislação

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda