Olivier Blanchard, em São Paulo: “Hoje os benefícios do déficit são maiores do que os custos” (Germano Lüders/Exame)
Natália Flach
Publicado em 27 de fevereiro de 2020 às 05h30.
Última atualização em 11 de março de 2020 às 07h32.
O economista Olivier Blanchard teve papel primordial durante a crise econômica de 2008. À frente da equipe de economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) entre 2008 e 2015, o francês defendeu — e ainda defende — que, em tempos de juros baixos ou negativos, os países se endividem para fazer investimentos públicos e estimulem o mercado de trabalho de modo a promover o crescimento econômico.
“Hoje, os benefícios do déficit público são maiores do que os custos”, disse o professor do departamento de economia do Massachusetts Institute of Technology (MIT), em entrevista exclusiva à EXAME, durante visita ao Brasil. Para ele, a escalada das ações nas bolsas mundiais não é sinal de bolha, e sim reflexo da busca por rentabilidade.
Mas nunca é demais ser diligente. Até porque as economias emergentes podem sofrer efeitos nefastos com o excesso de liquidez. “Quando o dinheiro entra, há pressão sobre a taxa de câmbio e sobre os bancos. Quando finalmente o país se ajusta, o vizinho se torna mais atraente”, diz. A solução? Um pedágio para desencorajar o capital especulativo.
O senhor diz que o custo do endividamento dos países caiu e que vale a pena aumentar o déficit fiscal. Por quê?
De maneira geral, é melhor ter poucas dívidas. Mas hoje os benefícios do endividamento são maiores do que os custos. Isso porque há muitos investimentos públicos que potencialmente poderiam ser realizados. Portanto, o governo deveria se sentir livre para tomar empréstimos e investir em áreas tradicionais, como telecomunicações, e em setores emergentes.
A outra justificativa se refere à estabilização macroeconômica. Quando as taxas de juro estão muito baixas, os bancos centrais não têm muita margem para dar estímulos via expansão monetária. Há 15 anos, o Banco Central brasileiro poderia diminuir a taxa em 10 pontos. Hoje é impossível. Portanto, quando a economia não está aquecida nem há pleno emprego, é necessário fazer algo, e a ferramenta que sobra é fiscal. Os países precisam estar prontos para ter déficits fiscais maiores. É mais importante impulsionar a economia do que reduzir a dívida.
Qual seria o papel do setor privado?
As taxas de juro estão baixas porque a demanda privada está fraca. Então, para gerar demanda, o banco central precisa ajudar tanto quanto possível, reduzindo os juros. Mas isso pode não ser suficiente, e é aí que entra a política fiscal. Se houvesse uma maneira de levar o setor privado a aumentar a demanda por conta própria, não precisaríamos ter déficits. Pegue o caso do Japão. O país tem uma dívida de 250% em relação ao PIB. Mas até o momento eles foram capazes de manter a demanda aquecida. Existe uma maneira de aumentar a demanda privada sem aumentar o déficit? Na teo-ria, sim. Com redução de impostos, de modo a estimular o consumo das famílias, e com subsídios governamentais. Não é uma solução fácil, mas acho que mais e mais governos terão de avaliar.
Os investidores têm se voltado para a renda variável, seguindo o caminho que culminou na crise de 2008. Estamos à beira de uma nova crise?
Sempre pode haver outra crise. Mas há motivos para nos preocuparmos com o valor das ações? Acho que não. A alta atual dos ativos não é provocada por uma bolha, e sim pela queda dos juros e pelos fundamentos das empresas. Mas é importante ficar atento, pois, nesses ambientes de alta, as pessoas começam a comprar papéis mesmo sem entender do que tratam e aí surgem as bolhas.
Os juros devem ficar baixos por um longo período ou veremos em breve uma mudança? Qual o “novo normal”?
Nada é certo neste mundo, mas estou bastante confiante de que veremos taxas baixas por pelo menos dez anos. Então, é um “novo normal” para sempre? Deus sabe, até lá já estarei morto. O que é certo é que a taxa de juro real no mundo diminuiu constantemente, desde 1985, em cerca de 5% a 6%. É, portanto, uma tendência. Os mercados estão absolutamente convencidos de que as taxas serão baixas. É só olhar para as curvas de juros futuros na Europa ou no Japão: elas mostram uma taxa negativa por muitos anos. Mas você tem de supor que, por um motivo como aumento da produtividade, as taxas voltarão a subir.
O que aprendemos com essa última crise econômica?
Aprendemos que o sistema financeiro é importante e incrivelmente complicado. Não adianta olhar superficialmente para a forma como o banco A lida com o banco B, que lida com o banco C. É preciso entrar nos detalhes. Portanto, hoje entendemos melhor o que é uma crise financeira em uma economia avançada — porque já sabíamos como é uma crise financeira no Brasil. O que fizemos para impedir que isso se repita? Colocamos em prática testes de estresse, que tentam prever tudo o que pode dar errado, o que nos permite tomar medidas antecipadamente. Além disso, reforçamos a regulamentação e a supervisão. Se houvesse a mesma crise hoje, nos sairíamos muito melhor.
O que poderia provocar uma nova crise financeira? Algo fora do radar da supervisão, como criptomoedas?
O bitcoin vai morrer por conta própria, mas o impacto vai ser muito pequeno para fazer qualquer diferença no sistema financeiro. A princípio, não há nenhum setor que possa provocar uma crise. Mas, segundo a tese da natureza da incerteza, criada por Frank Knight, há muitas coisas que a gente nem consegue imaginar. Muitos economistas têm se voltado para a dívida da China e como um calote poderia afetar o resto do mundo e, mais recentemente, para os efeitos do coronavírus, que forçou o fechamento de fábricas e a paralisação de cadeias produtivas. Se o vírus virar epidemia mundial, poderá haver um choque em toda a economia. Mas é muito difícil antecipar catástrofes.
Falando de riscos mais tangíveis, que lições tiramos da ruptura da União Europeia com o Brexit?
Aprendemos que é bastante estúpido fazer um referendo com uma pergunta que ninguém compreende. Falando sério, os britânicos estavam infelizes em fazer parte da União Europeia, não gostavam de abrir mão da liberdade de regulamentação. Então, talvez tenha sido melhor, já que eles querem coisas diferentes da União Europeia. Isso também pode tornar as decisões da União Europeia um pouco mais fáceis, porque muitas vezes os britânicos impediam determinadas medidas. Estou triste porque gosto da ideia de Europa, mas não acho que o Brexit seja um grande evento em termos econômicos.
Por falar em questões econômicas, o FMI deveria mudar?
Nos últimos anos, vimos que a quantidade de dinheiro necessária para resgatar países é muito maior do que disponibilizamos. Isso levanta a questão: será que temos de aumentar o cheque dos programas ou instauramos um controle de capitais que impeça a saída do dinheiro? Tome o caso da Argentina. No último programa, achamos que o país tinha mudado um pouco e que valia a pena ajudá-lo sem sermos muito duros. Ainda acho que estávamos certos na avaliação. O erro foi não ter barrado a saída do dinheiro do país. A maior parte do dinheiro do FMI acabou sendo usada para pagar investidores estrangeiros. Foram 30 bilhões de dólares jogados no ralo. Isso não ajudou a Argentina, ajudou os investidores. Mas [Mauricio] Macri não quis adotar um controle de capitais. O FMI não faz milagres. O remédio não está errado, o paciente é que tem uma doença crônica.
O senhor é contrário à livre circulação de capitais?
A mobilidade de capital não ajuda os países em desenvolvimento. Quando o dinheiro entra, há pressão sobre a taxa de câmbio e sobre os bancos. Quando finalmente o país se ajusta, o vizinho se torna mais atraente, então o dinheiro sai. Por isso, sou favorável a um controle que limite os fluxos de capital de curto prazo. A melhor forma de fazer isso é colocando um pedágio. Então, cobram-se 5% para entrar. Se o investidor deixar o dinheiro por cinco anos, 5% não representam nada. Mas, se quiser ficar apenas uma semana, ele repensará.
Isso teria impacto sobre o livre-comércio, não?
O livre-comércio deveria ser restringido de algumas maneiras, dando um tempo às indústrias para se ajustarem. A guerra comercial não é a solução. Ela é destrutiva. Pelas vias diplomáticas, é possível chegar a acordos de tarifas maiores em certos produtos por determinados períodos de tempo.