Mischa Dohler, da Ericsson: custo operacional é o maior obstáculo para escalar projetos de IoT (Arquivo Pessoal/Divulgação)
Jornalista colaboradora
Publicado em 5 de agosto de 2025 às 06h00.
Ele já foi professor titular na King’s College de Londres, pesquisador na França, empreendedor em Barcelona, músico com álbuns no Spotify, e hoje é vice-presidente de tecnologias emergentes da Ericsson, no Vale do Silício. Mischa Dohler é um dos principais nomes por trás do desenvolvimento de redes móveis avançadas, inteligência artificial generativa e da chamada internet das habilidades — conceito que descreve a realização de tarefas físicas a distância, em tempo real, usando redes como o 5G para transmitir movimentos e sensações humanas com precisão.
Com mais de 300 publicações científicas, dezenas de patentes registradas, participação ativa em fóruns regulatórios, e um histórico de startups fundadas e adquiridas, Dohler figura no 1% de pesquisadores mais influentes globalmente em todas as áreas da ciência.
Nesta entrevista à EXAME CEO, ele analisa por que a internet das coisas ainda não cumpriu todo o seu potencial, onde estão os principais entraves à escalabilidade e como setores como saúde, indústria e cidades inteligentes já começam a desenhar cenários de transformação concreta. Confira.
→ Você participou da criação de padrões industriais de IoT e da aplicação deles da universidade à indústria. O que aprendeu ao longo dessa jornada?
A IoT evoluiu bastante desde os primeiros testes acadêmicos até as aplicações comerciais de hoje. O principal aprendizado é que o mercado de IoT continua extremamente fragmentado. Isso significa que é muito difícil escalá-lo. Mesmo com milhões de sensores instalados, a comunicação entre eles é limitada, e isso dificulta a criação de sistemas verdadeiramente integrados. Esse cenário fragmentado tem muito mais a ver com questões comerciais do que técnicas. Uma coisa que percebemos é que, quando você consegue criar um tipo de lock-in físico — ou seja, começa a implantar sensores —, há uma enorme vantagem competitiva. E, ainda que não tenhamos aquela superescalabilidade exponencial que esperávamos com a IoT, agregar os sensores a capacidades de inteligência artificial [IA], IA generativa e plataformas que combinem o seu próprio fluxo de dados com outros fluxos, seja por meio de parcerias, seja com dados abertos, gera uma proposta de valor real. Fizemos isso com muito sucesso na Worldsensing [empresa cofundada por Dohler e que se tornou referência global no monitoramento IoT de infraestruturas como barragens, pontes, minas e túneis] e na SiriusInsight.AI [o executivo foi CTO da companhia de vigilância marítima que se baseia em IA para fornecer alertas automáticos sobre atividades suspeitas no mar]. Combinamos tudo, fizemos a fusão de sensores e usamos IA para ampliar isso.
→ Quais outros fatores ainda são um impasse para a expansão da IoT?
O custo operacional é, hoje, o maior obstáculo para escalar projetos de IoT. Não estou falando do investimento inicial — este até pode ser razoável em muitos casos. O problema é o custo contínuo de manutenção desses sensores, como a troca de baterias. Isso acaba sendo um obstáculo. Estamos trabalhando em uma solução que não exigiria mais o uso de baterias e que se conectariam diretamente à infraestrutura 5G e 6G. Isso reduziria bastante os custos. Mas, até que a gente alcance uma escala exponencial, o que está muito relacionado à fragmentação, como comentei, o custo continuará como um freio. Outro ponto é que muitas empresas ainda não conseguem demonstrar uma justificativa clara de negócio. É bom ter sensores por toda parte coletando dados em tempo real para você? Claro, isso é ótimo. Mas o problema é grande o suficiente para que alguém pague por essa solução? Esse talvez seja um dos principais desafios que enfrentamos.
→ A promessa da IoT em tempo real já se concretizou?
Sim. Temos centenas de milhões de sensores e dispositivos de IoT implantados, com origem muito diversa: desde aqueles bem pequenos que medem temperatura, até os dispositivos vestíveis [wearables] que você usa para monitorar sua saúde. Já vemos sensores funcionando em tempo real em cidades como São Francisco ou São Paulo. Estacionamentos inteligentes, câmeras de segurança, semáforos automatizados. A infraestrutura já existe. O que falta é o próximo passo: integrar tudo isso e extrair inteligência de verdade com IA e análise preditiva. Então, eu acho que estamos entrando numa era em que já temos sensores suficientes implantados — e, claro, precisamos implantar cada vez mais —, mas é preciso usar IA e IA generativa para coletar diferentes fontes de dados de forma ampliada, integrar tudo isso e compor uma justificativa de negócio crescente. Essa talvez seja a próxima fronteira que veremos.
→ O que mais preocupa quando falamos em segurança cibernética para dispositivos conectados?
Segurança é uma enorme questão. A cada novo dispositivo que adicionamos à rede, estamos essencialmente aumentando o que chamamos de “superfície de ataque”, ou seja, a possibilidade de um invasor encontrar uma brecha para entrar na rede. Por isso, precisamos de uma abordagem de segurança em camadas, hardware seguro, redes criptografadas, atualizações regulares de firmware, e uma boa gestão do ciclo de vida dos dispositivos. É preciso garantir, de fato, uma segurança de ponta a ponta, que siga o modelo de zero trust [confiança zero]. Mas o maior risco ainda é humano. Tivemos casos em que um sistema seguro foi comprometido porque o instalador esqueceu de mudar a senha-padrão. Por isso, precisamos educar técnicos e engenheiros para lidar com dispositivos que não têm tela, interface visual ou modo tradicional de operação. A falta de preparo nessa camada é um risco crítico para a adoção da IoT em larga escala.
→ Como lidar com a complexidade regulatória
e as exigências locais de dados num mundo globalizado?
Na parte técnica, a indústria já avançou muito. Um sensor pode ser produzido na China, comprado na França e funcionar perfeitamente no Brasil. Isso se deve aos padrões que construímos ao longo de décadas em telecomunicações. A IoT vai na mesma direção. O desafio está na regulação dos dados. A Europa exige que os dados permaneçam no continente, o que impõe barreiras para serviços globais. Mas isso não é novo. Já enfrentamos esse tipo de limitação com serviços de e-mail, nuvem e redes sociais. As empresas aprenderam a lidar com isso. O verdadeiro desafio é garantir que tudo seja configurado de forma segura e escalável desde o começo.
→ Do seu ponto de vista, quais tecnologias ou aplicações em IoT têm maior potencial de mudar o jogo?
Acho que os mercados que vemos hoje estão mais concentrados na indústria pesada, especialmente na manutenção preditiva. Digo o mesmo das chamadas “cidades inteligentes”, onde sensores fazem gestão de tráfego, controle de iluminação e de coleta de lixo, e otimização da rede elétrica urbana. Tudo isso tem uma excelente justificativa de negócio. O mesmo acontece na área da saúde. Esse setor decolou, talvez menos no ambiente hospitalar e mais no contexto privado, mas estamos usando sensores hoje para monitorar nossa saúde.
→ A Internet das Habilidades, ou seja, a capacidade de executar trabalho físico à distância, é o próximo salto tecnológico?
Com certeza. Estamos, inclusive, desenvolvendo um projeto de telecirurgia no Brasil. Realizamos a primeira cirurgia do mundo entre Orlando e São Paulo usando dispositivos laparoscópicos operados remotamente em animais. Então, a ideia é permitir que um cirurgião altamente qualificado possa ajudar um paciente que normalmente não teria acesso a esse tipo de especialista em casos de emergência, por exemplo após um acidente, um AVC ou um ataque cardíaco. É algo realmente transformador. E o melhor: não precisamos esperar pela chegada do 6G para isso acontecer. Isso já está acontecendo.
Telecirurgia: projeto prevê que cirurgiões qualificados atuem de forma remota (Mischa Dohler/mischadohler.com/Divulgação)
→ Na sua opinião, como a IoT pode moldar o futuro dos negócios e a vida do consumidor?
Os dados, como costumamos dizer, são o novo petróleo. Portanto, não se trata apenas de implantar soluções de IoT, e sim de obter os dados e realmente trabalhar com eles, construir inteligência a partir disso. Os dados são o petróleo do futuro, mas eles também podem se tornar a areia do futuro. É preciso saber como extrair esse “petróleo” e fazer isso bem. É fundamental entender quais tipos de insights ou de inteligência de negócios estão faltando em uma empresa, por exemplo. A partir daí, define-se quais fontes de dados e quais processos de análise são necessários. Talvez você consiga tudo isso na internet, talvez venha de parceiros de dados ou de fontes abertas. Mas, se não conseguir, aí, sim, faz sentido começar a considerar a implantação de soluções próprias de IoT. Esse é o processo. Não comece pela IoT; comece pelo processo de negócio: como isso vai gerar receita ou economizar recursos? O que já existe disponível? Qual é a lacuna? É aí que entra a IoT. É assim que eu vejo o futuro da internet das coisas se desenvolvendo.
→ Você também é músico e empreendedor. Essa diversidade influencia sua forma de pensar tecnologia?
Sim. Sempre achei extremamente entediante tocar Beethoven ou Chopin repetidamente ou músicas que as pessoas já tocaram milhões de vezes. Isso nunca me empolgou; então eu improviso muito. Posso me sentar ao piano e tocar por 2 horas seguidas, sem partitura nenhuma. Isso treina a mente em várias direções. Ter de tomar decisões em milésimos de segundos na música me ajuda a tomar decisões muito rápidas e intuitivas também no mundo profissional, porque diferentes partes do cérebro se ativam e fazem essas conexões rapidamente.
→ Por fim, que conselho você daria para líderes que estão iniciando uma jornada com IoT?
Primeiro: mantenha os pés no chão. Foque problemas reais e específicos, que tragam impacto do ponto de vista do negócio. Algo que ajude a gerar receita ou a economizar recursos. Fazer a implantação só por fazer não faz sentido algum. O segundo conselho é: apenas comece. Faça projetos-piloto com propósito, coloque a mão na massa, instale sensores, aprimore suas habilidades. Terceiro: cresça. Reflita se você, sua equipe e sua empresa estão melhores do que há um ano. Cerque-se de talentos diversos, que pensem diferente. Porque a IoT não é só sobre tecnologia — é sobre criar uma base fértil para inovação real. E o último ponto: garanta que você está crescendo. Eu faço isso todo ano. Olho para os últimos 12 meses e me pergunto: eu cresci? Me tornei uma pessoa melhor? Contribuí com algo positivo para o mundo? Me desenvolvi o suficiente? E, para crescer de verdade, é preciso estar no ambiente certo, cercar-se dos talentos certos — de preferência talentos interdisciplinares. Porque a IoT não é só sobre tecnologia — é sobre criar uma base fértil para inovação real.