Revista Exame

Como inovadores como Elon Musk agora impedem a inovação

A nova narrativa do tecnopessimismo talvez esteja sendo promovida mais abertamente por aqueles que estavam na vanguarda das transformações de ontem

 (Raymond Hall/GC Images)

(Raymond Hall/GC Images)

Harold James
Harold James

Professor de História

Publicado em 30 de junho de 2023 às 06h00.

Última atualização em 30 de junho de 2023 às 17h33.

O capitalismo depende da competição. Na prática, no entanto, esse princípio fundamental é frequentemente violado, porque os capitalistas ambiciosos naturalmente procurarão eliminar a concorrência e assegurar uma posição de comando no mercado a partir da qual possam manter afastados os possíveis novos concorrentes. O sucesso, a esse respeito, pode tornar esse indivíduo rico e estabelecer seu status de visionário; mas também pode torná-lo temido e odiado.

Portanto, a China — sem dúvida uma das economias de mercado mais bem-sucedidas do século 21 — tem travado uma guerra contra seus próprios gigantes da tecnologia, principalmente ao fazer “desaparecer” do palco público o cofundador do Alibaba Group, Jack Ma, depois que ele criticou os reguladores financeiros chineses. Ao mesmo tempo, os europeus, profundamente preocupados com a falta de um setor de big tech próprio, concentraram-se na aplicação de políticas de concorrência (antitruste) para limitar o poder de gigantes como Google e Apple. E, nos Estados Unidos, as lealdades políticas das big techs (tanto à esquerda “acordada” quanto à direita reacionária da “pílula vermelha”) se tornaram pontos focais nas corrosivas guerras culturais do país. 

É natural se preocupar com o poder de mercado e com a influência política de corporações tão grandes — e extremamente importantes. São empresas que podem decidir sozinhas o destino de muitos países pequenos e até médios. Muito do debate sobre a influência corporativa é bastante acadêmico. Mas não é assim na Ucrânia, onde a tecnologia do setor privado desempenhou papel decisivo no campo de batalha no ano passado.

Graças aos serviços de internet via satélite da SpaceX Starlink, de Elon Musk, os ucranianos conseguiram se comunicar em tempo real, rastrear os movimentos das tropas russas e melhorar radicalmente a precisão de seus ataques contra alvos inimigos (economizando munição preciosa). Sem o Starlink, a defesa da Ucrânia provavelmente teria desmoronado.

Mas, devido aos caprichos dos aspirantes a ditadores corporativos, tais dependências tecnológicas são inerentemente arriscadas. Em outubro passado, Musk usou sua propriedade do Twitter para encenar um “referendo” virtual sobre um incompleto plano de paz que cederia a Crimeia à Rússia. Quando os diplomatas ucranianos se opuseram, ele petulantemente ameaçou cortar o Starlink (e, por algum tempo, o acesso ficou realmente perdido nas áreas contestadas).

Paradoxalmente, o novo debate sobre o poder corporativo surge em um momento em que a competição entre empresas de tecnologia se intensifica. Por sua própria natureza, radicais mudanças tecnológicas introduzem incertezas radicais, especialmente para corporações e existentes modelos de negócios. Novos avanços aparentemente transformacionais em inteligência artificial podem tornar obsoletos até mesmo os gigantes da tecnologia mais poderosos se eles não conseguirem acompanhar a inovação. Até este ano, o domínio do mecanismo de busca Google, da Alphabet, era inquestionável; agora, o serviço de repente corre o risco de ser ultrapassado pelo ChatGPT da OpenAI/Microsoft. O Facebook e o Twitter costumavam ser considerados plataformas de mídia social indispensáveis. Atualmente, estão sendo rapidamente substituídos por outros, como o TikTok.

Mark Zuckerberg, da Meta: big techs pedem mais regulação de novas tecnologias (David Paul Morris/Bloomberg/Getty Images)

Esses avanços não deveriam ser uma surpresa. Nos anais da história dos negócios, o fracasso é muito mais comum do que o sucesso duradouro. Lembram da Kodak? Seus dias ficaram contados quando ela não conseguiu se adaptar à chegada da fotografia digital. As empresas mais antigas do mundo são aquelas com nicho em setores localizados, não técnicos, que não dependem de modas passageiras. A menos que se ocupe esse nicho — como um produtor japonês de saquê ou um enólogo toscano —, ninguém estará seguro.

Diante da permanente ameaça à sua existência, as grandes empresas geralmente têm duas estratégias à disposição. A primeira é bloquear ou frustrar as inovações, alegando que elas serão perigosas e desestabilizadoras. Por exemplo, no século 20, grandes companhias ferroviárias fizeram lobby agressivo contra a demanda das montadoras por rodovias.

Hoje, as apostas são muito maiores e a retórica é mais exagerada. Algumas figuras importantes do mundo da tecnologia ressaltam que, sem regulamentações rígidas de IA, as últimas inovações no setor podem levar a um colapso civilizacional. Essa foi uma das mensagens da carta de moratória de IA amplamente divulgada, assinada por pesquisadores de IA e ícones da tecnologia, como Musk, que mais tarde revelou ter investido em uma nova startup que competirá com a OpenAI.

De acordo com essa narrativa, o rápido progresso de hoje pode levar a uma inteligência artificial geral tão poderosa e tão imprevisível que a humanidade pode acabar involuntariamente à sua mercê. Escritores de ficção científica (e alguns filósofos) há muito vêm articulando cenários desse tipo. Ao encarregar uma superinteligência de proteger o meio ambiente, ela pode muito bem decidir que a solução óbvia é eliminar a fonte do problema, ou seja, os humanos.

Ou talvez uma IA simplesmente realizasse sua tarefa atribuída de forma tão monomaníaca que não seria possível pará-la, como no poema de Goethe O Aprendiz de Feiticeiro. Esses argumentos refletem o clima geral de ansiedade que é característico de qualquer época de rápidas mudanças. O exemplo dos destruidores de máquinas do século 20, os luditas, sempre exerce certo apelo romântico.

A segunda opção para uma ansiosa elite tecnológica é buscar a proteção do governo invocando riscos à segurança nacional ou econômica. O antigo presidente e atual vice-presidente da Microsoft, Brad Smith, por exemplo, adverte que, como o treinamento de sistemas de IA exige investimentos muito grandes, existem realmente apenas algumas instituições que poderiam fazê-lo, e as principais delas são as chinesas, como a Academia de Inteligência Artificial de Pequim. 

Ambas as estratégias envolvem a formulação de uma narrativa que possa garantir um apoio político contra a concorrência do mercado. As empresas que estão inerentemente ameaçadas — porque estão envolvidas em apostas de alto risco com resultados desconhecidos — sempre recorrerão ao processo político nos grandes países para protegê-las. Seja aumentando a carga regulatória sobre novos atores, seja criando barreiras contra concorrentes estrangeiros, porque desejam preservar o status quo. 

Deveríamos manter essas tendências naturais em mente, especialmente agora que a pandemia e as crescentes tensões geopolíticas criaram um novo ímpeto para a inovação técnica. Como sempre, a mudança tecnológica será profundamente disruptiva e gerará novos vencedores e perdedores. Muitos comentaristas (e partes interessadas) inevitavelmente se fixarão nos perigos. É irônico, mas nada novo, que a nova narrativa do “tecnopessimismo” esteja sendo promovida com mais veemência por aqueles que estão na vanguarda das inovações do passado.


(Publicidade/Exame)

Acompanhe tudo sobre:exame-ceo

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda