Revista Exame

Inovação com propósito: os novos modelos de empreendedorismo no Brasil

Unindo boas causas à sustentabilidade econômica, startups de impacto e negócios sociais fomentam um novo empreendedorismo entre o segundo e o terceiro setor — e que já impacta milhares de pessoas

Daniel Pimentel e Lucas Delgado, da Emerge: deeptech cria oportunidades para que, a partir da ciência, as empresas inovem e gerem resultados (Divulgação/Divulgação)

Daniel Pimentel e Lucas Delgado, da Emerge: deeptech cria oportunidades para que, a partir da ciência, as empresas inovem e gerem resultados (Divulgação/Divulgação)

Ivan Padilla

Ivan Padilla

Publicado em 12 de dezembro de 2022 às 06h00.

Última atualização em 12 de dezembro de 2022 às 12h35.

Por definição, o empreendedorismo de startup é uma atividade que encontra soluções inovadoras e escaláveis para problemas de uma empresa ou de um grupo específico de pessoas. Os SaaS (sigla em inglês para “software como serviço”) são a principal materialização disso — e, não à toa, representam também o principal modelo de negócios das startups brasileiras, respondendo por 40% do mercado, segundo dados da Associação Brasileira de Startups. 

Mas, ultimamente, o ecossistema brasileiro tem visto o despertar de um novo tipo de empreendedorismo, mais consciente de suas responsabilidades com as pessoas e de seu papel na sociedade: são os negócios de impacto, que ganharam tração principalmente durante e após a pandemia. Segundo o mais recente mapeamento da Pipe.Labo, essa “classe” de negócios cresceu 29,7% entre 2019 e 2021, quando 1.300 empresas se declararam como tal. Em comum, todas elas têm o compromisso de produzir inovação e crescer como negócio sem esquecer um propósito fundamental: gerar um impacto positivo para as comunidades à sua volta.

COMBATE AO DESPERDÍCIO

Foi pensando nisso que o empreendedor Lucas Infante criou a Food to Save, uma startup que vende a produção excedente de restaurantes, padarias e hortifrutis com até 70% de desconto, ampliando o acesso à alimentação de qualidade, reduzindo o desperdício e incrementando a receita dos estabelecimentos parceiros. A ideia surgiu quando Infante era franqueado de uma rede de supermercados e percebeu que muitos alimentos eram descartados.

Hoje com 36 pessoas na equipe e mais de 1.000 parceiros em 20 cidades no Rio de Janeiro e em São Paulo, Infante calcula que a Food to Save já evitou que mais de 500 toneladas de alimentos fossem para o lixo. É um número pequeno perto das 15 milhões de toneladas de comida que o Brasil desperdiça todos os anos, mas mostra o potencial desse mercado.

“Em um mundo em que as pessoas ainda passam fome, um desperdício desse tamanho­ não pode ser aceitável. Percebi que era a chance de construir algo com alto potencial de impacto, do qual eu me orgulhasse”, conta o empresário, que vê a Food to Save como um negócio que não só vende comida a bons preços mas provoca as pessoas a repensarem o desperdício. “Como todo negócio, queremos receita e crescimento. Mas, olhando para o futuro, o que me interessa é o impacto que eu gero.”

CIÊNCIA COMO NEGÓCIO

Longe do consumidor final e mais perto da indústria, Lucas Delgado e Daniel Pimentel criaram, em 2017, a Emerge, na época ainda uma associação sem fins lucrativos que pretendia desenvolver o lado empreendedor dos cientistas brasileiros. Em pouco mais de um ano de trabalho, os sócios entenderam que tinham, na verdade, um negócio nas mãos. Uma deeptech — startup que usa o que há de mais avançado em pesquisa tecnológica para gerar inovações com potencial de transformar o mercado e, assim, trazer impacto social. Foi então que eles chegaram ao atual modelo de negócios, que identifica deficiências e gargalos do setor privado, mapeando pesquisas e cientistas com potencial para resolver essas questões. Com isso, a empresa garante que a ciência, de fato, se transforme em uma tecnologia aplicável no dia a dia. 

Como exemplo, Delgado cita uma tecnologia criada pelo professor doutor Caetano Sabino, que usa luz ultravioleta para descontaminar os pés de pacientes diabéticos e, com isso, evitar a amputação. Com algumas adaptações no projeto, o professor conseguiu também usar a luz para eliminar microrganismos de superfícies e líquidos — uma novidade que chamou a atenção da BRF, gigante do setor alimentício. A empresa hoje se utiliza da tecnologia na limpeza das esteiras que transportam carcaças de frango, reduzindo o risco de contaminação e o tempo de manutenção dessas estruturas. Desse movimento, surgiu a BioLambda, uma empresa de biossegurança cuja solução escalou e, hoje, está presente nas plantas da BRF em todo o Brasil.

“Nesse caso, o cientista acabou se tornando um empreendedor. Mas nossa atuação pode gerar também licenciamentos e parcerias de desenvolvimento”, explica Delgado. Hoje, seu principal desafio para escalar a Emerge, que já cresce 100% ao ano, é convencer o mercado de que inovação aberta não se resume à transformação digital nem demora tanto quanto se imagina. “O risco de investimento é grande, mas o potencial compensa.”

EMPREENDEDOR POR NECESSIDADE

Enquanto negócios como a Food to Save e a Emerge buscam gerar inovação e impacto social a partir do setor privado, outras iniciativas cumprem o mesmo papel, mas com um pezinho no terceiro setor. São os negócios sociais, que compõem o chamado “setor 2,5”, formado por empreendimentos que melhoram a qualidade de vida de comunidades de baixa renda ao mesmo tempo que geram receita. Nesses casos, a inovação não necessariamente é tecnológica, podendo surgir até mesmo da inteligência emocional dos empreendedores.

É o caso da Wakanda Educação Empreendedora, uma startup de tradução de conteúdos de negócios para empreendedores periféricos. A ideia surgiu quando a então oficineira Karine Oliveira começou a frequentar o ecossistema empreendedor de Salvador, mas não conseguia se identificar com os ambientes “cheios de termos em inglês”. Pensando nos pequenos empreendedores do Engenho Velho da Federação, bairro onde mora em Salvador, Oliveira decidiu criar seu próprio curso, desenhado para quem empreende por necessidade e, principalmente, adaptado à linguagem informal desse público. No começo, pouca gente deu bola para a ideia, que conseguiu se viabilizar com um único apoio, filantrópico: o do Instituto CCR. 

Foi só no palco do reality show Shark Tank que Oliveira e Wakanda chamaram a atenção do mercado. Após seu pitch, Oliveira recebeu propostas de todos os quatro “tubarões”, que viram no negócio a solução perfeita para um problema que era deles: a dificuldade em democratizar e diversificar o ecossistema empreendedor. Oliveira fechou negócio com Camila Farani, que, além do investimento financeiro, facilitou o acesso a novos clientes — como o LinkedIn, que contratou os cursos da Wakanda para aprimorar o onboarding de novas colaboradoras transexuais — e está ajudando Karina a usar tecnologia para escalar o negócio. Em 2023, a Wakanda oferecerá seus cursos sob demanda, pela internet.

“A minha inovação foi ter a ousadia de imaginar como seria uma sala de aula de empreendedorismo do meu jeito”, conta Oliveira, que em 2021 foi reconhecida pela Forbes como uma das mentes mais brilhantes do Brasil abaixo dos 30 anos e, neste ano, já alcançou um faturamento de 800.000 reais. Mas o orgulho dela vem mesmo de outros dados: cerca de 90% dos alunos da Wakanda são mulheres ou pessoas pretas, e 8% dos que se formam buscam outras especializações depois do curso. “Esse é o nosso maior impacto, porque mostra que realmente plantamos uma semente nessas pessoas.”

Karine Oliveira, da Wakanda Educação Empreendedora: participante do reality show Shark Tank, ela recebeu propostas de todos os quatro “tubarões” (Lane Silva/Divulgação)

RETORNO COMPENSADO

Além de mobilizar cada vez mais empreendedores, os negócios sociais têm atraído investidores. Depois de uma década trabalhando no Grupo Simpar (antiga JSL), Fernando Simões Filho conheceu o conceito de negócio social e viu nele uma oportunidade de colocar sua experiência a serviço de um bem maior. Em 2015, se juntou a dois sócios e fundou a ­Bemtevi, uma aceleradora que conecta negócios sociais a investidores que topam trocar os juros por impacto socioambiental. A iniciativa funciona como um fundo que seleciona e amadurece potenciais projetos, empresta dinheiro e os acompanha para garantir o sucesso da empreitada. Se o negócio atinge as metas estabelecidas, ele fica isento do pagamento dos juros. “Não tem dividendos. Todo o lucro é reinvestido no negócio que, como qualquer outro, deve ser autossustentável — isso é uma premissa para o impacto”, explica o sócio-diretor da ­Bemtevi, que com apenas 4 milhões de reais já capacitou 27 negócios e investiu em dez deles. Quatro já retornaram o investimento, e os outros ainda estão em andamento.

Na árdua tarefa de captar recursos, Simões Filho tem a seu favor cases como o Acreditar, um programa de microcrédito produtivo e educação financeira do Agreste e da Zona da Mata de Pernambuco — que tem uma inadimplência de apenas 0,04%, bem abaixo do padrão do mercado. Assim como a Bemtevi, o projeto impulsiona iniciativas empreendedoras e as acompanha para garantir resultados. Em 18 anos, a Acreditar já atendeu mais de 15.000 empreendedores (sendo 74% mulheres e 40% jovens entre 18 e 32 anos), que conseguiram aumentar sua renda, em média, em 56%. 

“Muitas vezes nós procuramos investimento em grandes bancos, e sempre nos negaram, dizendo que primeiro precisávamos crescer mais. Eu mal acreditei quando descobri que poderíamos trocar os juros por impacto social”, conta Lilian Prado, diretora da Acreditar, que recebeu um investimento de 150.000 reais da Bemtevi. “Hoje, essas pessoas têm seus negócios e conseguem ter uma vida digna, melhorar suas casas, levar os filhos ao cinema, a restaurantes… Elas nos dizem: ‘É como se vocês tivessem nos dado liberdade’.” 

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