Revista Exame

Inclusão com lugar de fala: como empresas estão se apropriando da causa

Companhias abraçam a diversidade para reparar injustiças crônicas e até lançar produtos mais eficientes para cada tipo de público

Isis Vidal, engenheira de processos do Grupo Boticário: profissional contribui com o desenvolvimento de produtos mais diversos (Divulgação/Divulgação)

Isis Vidal, engenheira de processos do Grupo Boticário: profissional contribui com o desenvolvimento de produtos mais diversos (Divulgação/Divulgação)

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Daniel Salles

Publicado em 30 de junho de 2022 às 06h00.

Última atualização em 1 de agosto de 2022 às 12h40.

Foi uma tragédia inaceitável. Na noite de 19 de novembro de 2020 — véspera do Dia da Consciência Negra —, João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, foi espancado até a morte por dois seguranças de uma unidade do Carrefour em Porto Alegre. A exemplo do assassinato do americano George Floyd Jr., estrangulado por um policial branco meses antes, o episódio revoltou a sociedade — a ponto de algumas lojas da rede de supermercados terem sido depredadas em sinal de protesto.

Em resposta, a companhia assumiu oito compromissos e um plano de ação para combater o racismo e a discriminação. “O Brasil é um país onde 56% da população se autodeclara negra, e é fundamental que essas pessoas ocupem seus espaços na sociedade e, de uma vez por todas, deixem de ser minorizadas”, destaca a rede no site criado para dar transparência à iniciativa, o NãoVamosEsquecer.com.br.

Resumindo, o Carrefour adotou uma política de tolerância zero ao racismo e à discriminação — também imposta aos fornecedores —, estabeleceu que a população negra precisa ocupar pelo menos metade dos novos postos de trabalho e criou um programa de estímulo ao empreendedorismo dessa parcela da sociedade. Tirou do papel ainda um mecanismo que facilita a denúncia de episódios de racismo e discriminação e passou a investir no crescimento profissional de funcionários negros, entre outras medidas do gênero.

Como era de esperar, também mudou radicalmente o esquema de segurança das lojas, que foi 100% internalizado — os algozes de Freitas eram terceirizados. Uma das metas, ainda em andamento, quer alterar o quadro de seguranças para que 50% dele seja formado por mulheres — a população negra já responde por 65% das posições. Quem chefia a área agora é um homem negro, Claudionor Alves, contratado em fevereiro do ano passado.

O gerente de diversidade e inclusão do Carrefour, Kaleb Machado, também se declara negro. “Se as empresas querem criar ações para aumentar a diversidade, não podem deixar de envolver colaboradores diversos no processo”, diz ele, que chefia seis pessoas, das quais cinco se dizem negras. “Vale até para o marketing e para a publicidade, pois os grupos minorizados também querem se sentir representados e comprar produtos pensados para eles”, afirma Machado.

Na companhia desde 2019, ele ressalta que a rede adota políticas em prol da igualdade de raça e gênero e da comunidade LGBTI+ desde 2012. Em comunicados internos, por exemplo, vinha apontando para o racismo impregnado em expressões como “criado-mudo” e “lista negra”. “Nada disso foi suficiente para evitar o que aconteceu em 2020”, reconhece o gerente de diversidade e inclusão. “Condenar o racismo não basta, é preciso ser antirracista. O que isso significa? Criar ações que possam deixar o racismo estrutural no passado.”

A beleza é para todos

Outra companhia que tem apostado no “lugar de fala” tanto para criar ações que miram a diversidade interna quanto para tirar do papel produtos mais eficientes para públicos variados é o Boticário. Isis Vidal que o diga. Negra, ela é engenheira de processos na fábrica do grupo na Bahia e ainda lidera um grupo interno chamado Além da Pele, criado para promover a equidade racial com foco na população negra, além de contribuir com o desenvolvimento de produtos mais diversos.

A profissional também já esteve à frente de outra iniciativa do Boticário, o projeto Realeza, que fornece toucas de proteção personalizadas para cabelos crespos, afros, com tranças ou dreads — o uso de acessórios do tipo nas fábricas é obrigatório. “Cabelo é força, é autoestima, é poder. Para muitos é coroa, pois reafirma a identidade e traz pertencimento”, afirma Vidal. “Mostramos que mesmo em um ambiente fabril é possível ser livre para usar o cabelo do jeito que quiser.”

Há mais um projeto do grupo que almeja a mesma coisa: o Ébano. Ele busca ampliar a participação de funcionários negros na testagem voluntária de novos produtos para a pele — o intuito é expandir o número de itens com tons diversos no mercado. “A jornada em prol da equidade e da inclusão na nossa sociedade é longa”, observa Vidal. “Mas todo mundo precisa virar um agente ativo da transformação que desejamos.”

Além de Isis Vidal, outro profissional que ajuda o Boticário a abraçar as diferenças é Ivan Kühl, deficiente visual e assistente do departamento de diversidade e inclusão. “Nunca fui tratado de forma diferente por ninguém na companhia”, declarou ele. “E, com a minha vivência, também ajudo o grupo, opinando sobre o que funciona ou não para pessoas com visão limitada.” Kühl é um dos responsáveis por tornar as jornadas de compra online do Grupo Boticário mais acessíveis para pessoas como ele — que formam um mercado consumidor relevante.

Idosos conectados

Outra parcela da sociedade muitas vezes deixada de lado pelas marcas é a de idosos.

De olho nessa demanda, surgiu, em 2019, a Mais Vívida, uma startup que se propõe a dar suporte tecnológico presencial e, sobretudo, online, para esse público. A turma selecionada para prestar o serviço precisa ter entre 18 e 30 anos e costuma dar conta dos mais variados pedidos, como colocar uma impressora para funcionar ou baixar um aplicativo no smartphone. Os valores variam de R$ 9,90 e R$ 349,90.

“Há quem não veja função para os idosos quando eles se aposentam”, lamenta Viviane Palladino, CEO e uma das fundadoras da Mais Vívida. “É uma população enorme para a qual não se cria um xampu específico, por exemplo.” Ela teve a ideia da companhia quando se deu conta de que, em cada visita à casa dos pais, era obrigada a ficar pelo menos 1 hora na frente do computador resolvendo algum pepino para eles. “As empresas ainda têm muita dificuldade para se conectar com esse público”, diz Viviane, que agora está em conversa com a Sky Brasil. O aplicativo também oferece cursos gravados — um deles ensina o bê-á-bá do celular. O acesso a essas aulas vai custar 29,90 reais por mês a partir de setembro.

Protesto em uma das lojas do Carrefour: após a morte de um homem negro, a rede internalizou o esquema de segurança e adotou uma política de tolerância zero ao racismo (Silvio Avila/AFP/Getty Images)

Onde brancos e héteros são minoria

Se há companhias que precisam recorrer a outras para abraçar a diversidade, também há casos de empresas que dão o exemplo desde o início. Com uma lista de clientes que inclui a construtora Tegra, a Dakota e a rede ­Intercity Hotéis, a agência de publicidade Bistrô se especializou em ajudar as marcas a dialogar com a diversidade e a criar produtos plurais — e com propriedade. Metade da diretoria da Bistrô, afinal, é composta de mulheres. A outra metade, de gays (25%) e de negros (25%). “Contratamos pessoas negras, transexuais e com deficiência de nove anos para cá e hoje somos diversos o suficiente a ponto de homens brancos e héteros não serem a maioria”, diz Fernanda Aldabe, vice-presidente de criação e uma das fundadoras.

Nascida em Porto Alegre há 15 anos, a agência abriu um braço em São Paulo em 2020 com direito a uma campanha institucional para lá de provocativa. “Temos vagas para homens brancos hétero”, ironizava. Vale dizer que essas vagas não existiam, embora também haja espaço, obviamente, para profissionais do tipo. “Não abrimos mão da diversidade, que nos torna bem mais criativos”, justifica Aldabe. Registre-se que a Bistrô nunca pagou mais para homens do que para mulheres na mesma função.

A tal campanha institucional foi ilustrada com fotos de funcionários. A peça dedicada a um produtor visual, por exemplo, exibia a frase já citada, mas, logo abaixo, informava que ele é gay e pessoa com deficiência. Depois fazia um convite: “Conheça a agência Bistrô”. “Decidimos chegar a São Paulo mostrando os valores que nos diferenciam”, resume a vice-presidente de criação. Para a marca de roupas Gang, por exemplo, a agência bolou uma campanha que defende a diversidade e escalou um modelo com vitiligo.

Para clientes que não partilham desses valores, sustenta ela, a Bistrô diz “não, obrigada”. A agência já deu adeus a um cliente que ameaçou a fundadora fisicamente em reu­niões, com direito a soco na mesa por discordar do trabalho executado, e a outro que pediu para clarear o tom de pele de modelos negras — duas atitudes que, infelizmente, ainda se repetem com frequência.

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