Manifestantes pela defesa dos direitos dos negros em Niterói: as empresas devem promover a igualdade (Luis Alvarenga/Getty Images)
Por natureza, startups são empresas com maior flexibilidade em diversos sentidos. São capazes de rapidamente mudar o modelo de negócios se for necessário. Também podem adotar práticas gerenciais enxutas e ágeis. E testam incessantemente seu produto para otimizá-lo. Essas características fazem dessas empresas nascentes um ambiente fértil para todos os tipos de inovação.
Quando se fala em inclusão e diversidade, a história não poderia ser diferente. Startups brasileiras não só têm procurado transformar discurso em ação como também nascem com esse propósito intimamente atrelado à missão do negócio.
Segundo Adriana Barbosa, CEO da Feira Preta, um ecossistema de negócios comandados por negras e negros, quando se olha para os “unicórnios” brasileiros (isto é, as startups avaliadas acima de 1 bilhão de dólares), percebe-se uma grande homogeneidade racial e social. “Trata-se de um recorte de público com homens brancos, classe média alta, que conseguiram entender dos códigos tecnológicos, acessaram a infraestrutura tecnológica para construir uma startup”, diz ela.
É uma situação que traz dois problemas. Primeiro, os produtos ofertados são limitados pela visão homogênea dos integrantes das empresas. “Quando olham as ‘dores’ dos potenciais consumidores, eles têm certo distanciamento da realidade de pessoas com perfil diferente”, diz a empreendedora. “Falta uma visão de contexto da diversidade, de uma maneira bem ampla. E não só do ponto de vista do produto em si ou do serviço que será ofertado, mas também como isso se reflete na empresa”, completa.
Especialmente no que diz respeito à diversidade dos funcionários, um dos argumentos usados por diversas empresas é a falta de mão de obra qualificada. Segundo Barbosa, ela ouve bastante que não tem programador negro disponível no mercado. “Talvez não tenha a quantidade de que você precisa, mas o que você vai fazer se não tem? Você vai ter de dar três passos atrás, vai ter de fomentar, formar gente para que existam programadores negros no longo prazo. Aí, você se junta com outros do mercado para poder fazer essa entrega.”
Foi exatamente a partir de uma lacuna de mercado como a descrita por Barbosa que nasceu a NoFront, uma startup dedicada a oferecer educação financeira para a população de baixa renda. “Quando comecei a trabalhar no mercado financeiro, notei que existia um universo paralelo em que as pessoas falavam sobre investimento, sobre conquistar estabilidade financeira por meio dos investimentos. Na periferia, a realidade é de um endividamento maciço e de pessoas com pouco conhecimento sobre o assunto”, afirma Gabriela Mendes Chaves, fundadora e CEO da startup.
Para alcançar seu público, a NoFront desenvolveu uma metodologia para ensinar educação financeira por meio do rap. Segundo Chaves, que é economista e tem passagens pela Cetip e pela B3, isso foi essencial para cumprir a missão de alcançar pessoas que estão numa situação de vulnerabilidade.
O foco da Conta Black, fintech voltada para o mesmo público atendido pela NoFront, é dar um passo além. Sua missão, segundo o CEO e fundador Sérgio All, é fortalecer o processo de inclusão por meio da bandeira da democratização dos serviços financeiros. Os clientes do banco digital da Conta Black chegam à empresa pedindo acesso a produtos como crédito. Além de oferecer os serviços, o objetivo é ensinar o bê-á-bá da educação financeira no dia a dia, como eles podem ter esse relacionamento com as finanças.
O acesso à informação não é o único desafio numa jornada de inclusão. A barreira da tecnologia é outro obstáculo a ser considerado. Nem todos os clientes têm um smartphone capaz de acessar serviços financeiros. E muitas vezes a falta de acesso à internet é um problema para o público da Conta Black. “A gente fica aqui quebrando a cabeça. Como posso ser mais acessível?”, diz All. “Nossa preocupação envolve alguns questionamentos muito, muito específicos. Essa tecnologia funciona em todos os tipos de celular? Funciona no Android 3?”
Na experiência da startup, o que falta às demais empresas do setor de tecnologia é uma visão mais estratégica a respeito de diferentes segmentos do mercado. All conta que, em um evento, teve uma conversa com um executivo de um grande banco. “Perguntei a ele: ‘Vocês não pensam no pequeno [cliente]?’ Ele respondeu que era um investimento muito alto”, diz.
Mórris Litvak, CEO e fundador da Maturi, crê que as startups têm, sim, um papel fundamental em promover uma maior diversidade, já que são organizações mais flexíveis do que as corporações tradicionais. Esse trabalho passa pela diversidade de gênero e de cor da pele, mas também de idade. O empresário criou seu negócio justamente para conectar empresas a pessoas acima dos 50 anos que estejam em busca de emprego.
Hoje, a Maturi também oferece capacitação em áreas como empreendedorismo e presta consultoria a empresas interessadas em ter funcionários dessa faixa etária. “Não adianta a startup ser supertecnológica e ter um monte de pessoas iguais no quadro de funcionários: homem, branco, jovem, hétero. A tecnologia não vai resolver os problemas sozinha e, para isso, é preciso contar com experiências de vida diferentes”, afirma o fundador.
Litvak reconhece que não se trata de um caminho fácil. No começo acontecem embates e aparecem algumas diferenças que, em um primeiro momento, podem ser um pouco difíceis de lidar. Mas depois, com uma integração da equipe e a conscientização, os resultados aparecem. A Maturi, aliás, conta com um grupo de funcionários de 23 a 62 anos.
Para Litvak, é preciso sempre pensar em outras demandas de diversidade. “Temos de continuar atentos a isso, não só com quem a gente contrata mas também com nossa base de usuários.” Hoje a empresa também se preocupa em divulgar seus serviços para trazer pessoas acima de 50 anos, pessoas negras, pessoas com deficiência, e chegar a um equilíbrio de homens e mulheres na base de usuários.
Outro aspecto essencial da diversidade, especialmente em um país de dimensões continentais como o Brasil, diz respeito às regiões. Simony César, criadora e CEO da Nina, uma ferramenta para denunciar assédio no transporte público, vê um foco exagerado no eixo Rio-São Paulo por parte das startups. Quando participou de um edital convocado por uma grande empresa automobilística, a startup foi selecionada para a etapa final do processo.
Dos cinco finalistas, quatro eram de São Paulo e as quatro atuavam apenas no Sudeste. “A nossa startup era um ponto fora da curva. A gente era de Recife, rodava soluções em Fortaleza”, diz a fundadora. Ela também relata que, quando viaja a cidades como a capital paulista para participar de eventos, sente que a startup é levada menos a sério pelo fato de ela ser de um estado do Nordeste.
“A gente sofre com essa coisa de ir para São Paulo enquanto nordestino. Talvez as mulheres e não brancas sofram ainda mais; é muito difícil chegar até São Paulo”, diz. Mesmo em sua própria região, há muita resistência a projetos como o dela. “Só entrei no parque tecnológico Porto Digital, em Recife, depois que saí em uma revista. Quando estava querendo fazer a plataforma, não tive apoio”, diz.
Embora as startups estejam em uma posição privilegiada para lidar com a inclusão (e implementá-la), ainda é preciso avançar. Para Adriana Barbosa, da Feira Preta, é preciso considerar “a base da questão” em todos os aspectos da vida de uma startup: na aceleração, na montagem de equipes e nos negócios propriamente ditos. É preciso que aconteça uma mudança de cultura do ecossistema. “Tem d.e trazer todos os atores e fazer uma provocação, porque as iniciativas [de inclusão existentes] são isoladas.”