Revista Exame

Avanço econômico depende mais da cultura que das instituições?

Historiador americano defende que a cultura, e não as instituições, é a base do crescimento econômico

Newton:  (Wikimedia Commons/Divulgação)

Newton: (Wikimedia Commons/Divulgação)

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Raphaela Sereno

Publicado em 3 de abril de 2017 às 05h55.

Última atualização em 3 de abril de 2017 às 05h55.

São Paulo — Até a Revolução Industrial, a história da humanidade era marcada pela subsistência econômica. Em seu novo livro, A Cultura do Crescimento, o renomado historiador americano Joel Mokyr inova ao defender que foi a cultura que provocou a mudança. Leia um trecho inédito do livro a seguir:

"O mundo é hoje mais rico do que nunca. Temos um grande conhecimento das transformações econômicas que o tornaram assim graças a uma vasta literatura que examina todo aspecto possível do crescimento econômico moderno que vem ocorrendo desde 1800. Sabemos o que aconteceu e sabemos mais ou menos como e onde aconteceu. O que permanece envolto em grande mistério é por quê. Meu objetivo com este livro é oferecer uma resposta.

A história econômica e a história intelectual são duas disciplinas ativas e dinâmicas que raramente se entrecruzam, o que é lamentável. Pouca coisa foi feita para mostrar quanto do que ocorreu na economia mundial nos três últimos séculos é uma consequência da maneira como as pessoas passaram a pensar. O crescimento econômico moderno dependeu de um conjunto de mudanças radicais nas crenças, nos valores e nas preferências — um conjunto ao qual chamo de ‘cultura’, apesar dos muitos senões justificados para o uso excessivo e para a ambiguidade desse termo. Quais crenças?

O Iluminismo foi fundamental para a propulsão do crescimento econômico no século 19. O curioso é que começou como um fenômeno de elite. Foi um movimento confinado, em grande parte, a intelectuais, cientistas e à minoria letrada e educada que incluía não só médicos e filósofos mas também engenheiros, industriais e fazedores de instrumentos. Ainda assim, era uma pequena fração da população. Novos insights científicos, a invenção de novas técnicas, sua aplicação bem-sucedida à produção são todos resultados das ações de uma proporção muito pequena da população.

O que importava não era apenas o que as pessoas pensavam sobre contratos sociais, pluralismo político, tolerância religiosa, direitos humanos e assim por diante. Mas também o que elas pensavam sobre a relação entre os seres humanos e seu ambiente físico, sem esquecer o papel do ‘conhecimento útil’, aquele usado para melhorar o bem-estar material. A crença fundamental de que o destino humano pode ser melhorado continuamente com o aprimoramento de nossa compreensão dos fenômenos e com a aplicação desse entendimento à produção foi a inovação cultural que tornou possível o crescimento econômico sem precedentes que vimos desde então.

Mas como e por que surgiram essas crenças? Nos dois séculos entre Cristóvão Colombo e Isaac Newton, a cultura da elite europeia sofreu uma mudança intelectual radical. Minha análise dessa transformação usa a história intelectual, a história da ciência e a da tecnologia para chegar a uma explicação de um problema colocado principalmente por economistas: como explicar a economia moderna? Na minha tentativa de responder a essa questão, comecei fazendo novas perguntas, ligadas ao tema da inovação. Por que as pessoas elaboram ideias novas? Como as ideias novas conseguem suplantar as antigas? Por que um tipo de ideia e não outro? As respostas a esses questionamentos são o caminho que proponho neste livro.

A fuga da mediocridade

As nações e suas economias crescem, em grande parte, porque aumentam seu conhecimento coletivo sobre a natureza e o meio ambiente e porque são capazes de direcionar esse conhecimento para fins produtivos. Mas esse conhecimento não surge automaticamente. Apesar de a maioria das sociedades que existiram ter sido capaz de gerar algum progresso tecnológico, esses avanços foram geralmente isolados, com consequências limitadas. Logo após o impacto inicial, o crescimento gerado por essas descobertas tecnológicas desapareceu.

Em apenas um caso essa acumulação de conhecimento foi sustentada e autoalimentada a ponto de se tornar explosiva e mudar a base material da existência humana mais completamente e mais rapidamente do que qualquer coisa anterior na história dos seres humanos. Esse caso ocorreu na Europa durante e após a Revolução Industrial. E transformações no mercado de ideias foram os eventos cruciais que distinguiram a Europa do restante do mundo.

A Europa daquela época não era a sociedade mais bem organizada ou mais dinâmica. Outro ponto importante é que as mudanças nas crenças culturais europeias ocorreram, por algum tempo, de maneira quase independente de variáveis econômicas, como comercialização, urbanização e crescimento. Somente mais adiante elas realimentariam a economia mundial numa direção e com uma magnitude que mesmo o mais fervoroso dos crentes no progresso do século 17 seria incapaz de imaginar.

Uma questão a ser levantada é se alguma outra civilização poderia ter eventualmente rompido as barreiras do conhecimento que mantinham a sociedade humana em padrões de vida próximos da subsistência desde os princípios da humanidade. Talvez jamais venhamos a saber, porque o mundo islâmico, a África, a China, a Índia e as sociedades originais da América foram todos expostos à cultura europeia, e suas trajetórias foram irreversivelmente afetadas por isso. O certo é que a maioria das sociedades que existiram antes da Revolução Industrial na Europa esteve presa a um mesmo processo de voo curto.

Criavam uma tecnologia, viam seus efeitos positivos, mas, em pouco tempo, o progresso desacelerava e depois desaparecia. Essa estagnação era a regra pela qual o status quo suprimia novos desafios ao conhecimento estabelecido e bloqueava avanços usando uma série de meios — da ameaça de perseguir hereges à queima de seus livros. Em muitos casos, foram usados mecanismos sutis, mas eficazes. Falo de meritocracias em que a chave para o sucesso pessoal era a expertise acrítica do conhecimento herdado do passado. Quebrar isso requer, sobretudo, uma comunidade que combine algumas características. Pluralismo e competição, com certeza. Mas também um mecanismo de coordenação que permita que o conhecimento seja distribuído e partilhado e, a partir daí, questionado, corrigido e suplementado.

A Grécia antiga e a cultura helenística que ela criou no Mediterrâneo, pelo menos durante algum tempo, podem ter gozado desses atributos e, talvez, se não tivessem sido consolidadas no regime romano, poderiam ter evoluído em algo diferente. O Islã medieval teve um florescimento inicial. Talvez, se tivesse evitado as mãos cruéis de crenças religiosas ignorantes e dos mongóis, que tanto destruíram sua infraestrutura e suas instituições, poderia ter se transformado num mundo cujo progresso fosse autoalimentado.

A maneira correta de pensar a ascensão da ciência e da tecnologia moderna na Europa é vê-la como a continuação natural da cultura antiga, medieval e renascentista, mas também, paradoxalmente, como seu repúdio. Não houve nada de inexorável nesse rumo dos acontecimentos. Aliás, as condições que permitiram a criação de uma sociedade voltada para o progresso contínuo da tecnologia poderiam muito bem ter desaparecido ao longo do caminho.

Não é difícil imaginar que a história poderia ter seguido por outro caminho. A Europa poderia muito bem ter desembocado num regime católico obscurantista. Algo parecido com uma teocracia ignorante dominada por jesuítas, tal como a imaginada, por exemplo, no livro The Alteration (“A Alteração”, numa tradução livre), do britânico Kingsley Amis (pai do também escritor Martin Amis). Nesse mundo, pensadores excepcionais — do físico britânico Isaac Newton ao filósofo holandês Baruch Spinoza; do filósofo irlandês John Toland ao pensador francês Julien Offray de La Mettrie — poderiam ter sido silenciados ou suficientemente desencorajados, e o Iluminismo poderia não ter se desenvolvido plenamente na Europa.

Para observar a verdadeira importância do Iluminismo europeu nos desdobramentos econômicos que se seguiram, vale lembrar que ele envolveu duas ideias bastante inovadoras e complementares. Primeiro, o conceito de que o conhecimento e a compreensão da natureza podem e devem ser usados para fazer progredir as condições materiais da humanidade. Segundo, a crença de que poder e governo não são para servir aos ricos e poderosos, mas à sociedade em geral.

A combinação desses dois conceitos e seu triunfo no mercado de ideias criaram uma enorme sinergia. Essa foi a base de tudo o que veio depois, da industrialização e do crescimento do capital físico e humano à descoberta e ao domínio de forças e recursos naturais que ainda estavam além da imaginação em 1750. Olhando para a frente, é certo que essa é uma história que será contada e recontada muitas vezes. Certamente os argumentos que apresentei aqui neste texto serão desafiados e questionados. E, no fim das contas, é isso que ilustra a glória de um mercado de ideias em perfeito funcionamento.”

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