Porto Alegre: água lamacenta invadiu o Centro Histórico e chegou aos principais pontos turísticos da cidade (Ricardo Stuckert/Presidência da República/Divulgação)
Publicado em 23 de maio de 2024 às 06h00.
O que é o futuro, senão uma infinita sucessão de dias, horas e minutos? A maior tragédia do Rio Grande do Sul coloca o estado diante da necessidade de reconstruir o que foi devastado e ao mesmo tempo olhar para o longo prazo. As enchentes deixaram mais de 150 mortos, centenas de feridos e desaparecidos e mais de meio milhão de desalojados. No total, 2,1 milhões de pessoas foram afetadas. Praticamente todos os municípios do estado foram atingidos.
Os diques, comportas e casas de bombeamento não impediram que o Lago Guaíba, que banha Porto Alegre, tomasse a cidade depois de superar a marca histórica de 5,35 metros, quase 1 metro acima do recorde anterior, de 1941. “Estamos vivendo um cenário semelhante ao de pós-guerra”, diz Eduardo Leite, governador do estado, em entrevista à EXAME.
A estimativa preliminar da Confederação Nacional dos Municípios é que as chuvas tenham causado perdas de 9,5 bilhões de reais ao estado, sendo 4,6 bilhões em moradias. Até o fechamento desta reportagem, o nível do Guaíba contituava acima da cota de inundação e, segundo especialistas, deve demorar de 20 a 30 dias para baixar.
Enquanto espera a água baixar, o primeiro passo do poder público — e da sociedade civil — foi e ainda é o resgate e a assistência à população afetada. Salvamentos emblemáticos de idosos, crianças e animais, com a Defesa Civil e voluntários utilizando barcos, canoas e outros veículos aquáticos, sensibilizaram pessoas de todo o país. Milhares de toneladas de alimentos, água e roupas foram enviadas em um ato de solidariedade histórico.
O SOS Pix do governo do Rio Grande do Sul acumulou mais de 100 milhões de reais, que serão distribuídos para as milhares de famílias gaúchas. Outra medida de distribuição de renda pela administração estadual foi o programa Volta Por Cima, que vai entregar 2.500 reais para 42.000 famílias inscritas no Cadastro Único.
O governo federal anunciou uma série de medidas urgentes: o saque-calamidade do FGTS foi liberado, o Bolsa Família incluiu 21.000 cadastros da região, o abono salarial e a restituição do imposto de renda foram antecipados, um voucher de 5.100 reais será entregue para até 240.000 famílias, e as parcelas do Minha Casa, Minha Vida foram suspensas por seis meses. Ainda há uma promessa de compra e repasse de imóveis para os atingidos, em parceria com a Caixa.
Para as empresas, o governo Lula assinou uma medida provisória que prorrogou os vencimentos de tributos e ampliou o crédito para agropecuária, comércio e indústria. As medidas reforçam fundos de garantia de investimentos para gerar mais de 30 bilhões de reais em crédito para o setor por meio do Programa Emergencial de Acesso a Crédito (FGI-PEAC) e do Programa Nacional de Apoio a Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe).
Foram anunciados também descontos de juros em créditos já concedidos, e prorrogação por no mínimo três meses dos prazos de recolhimento de tributos federais e Simples Nacional. A apresentação da Certidão Negativa de Débitos para facilitar o acesso ao crédito em instituições financeiras públicas foi dispensada, e foram anunciadas ações de socorro para quem produz no Rio Grande do Sul. “As medidas estão no caminho correto, a dúvida é se serão suficientes. A reconstrução será cara e provavelmente vai demandar mais ajuda federal e estadual”, avalia Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados. “No curto prazo, o foco vai ter de ser o auxílio. O trabalho mais pesado de reconstrução virá depois, no segundo semestre.”
Esse esforço dos próximos meses vai manter os holofotes divididos entre prefeitos, governador e a Presidência. A suspensão da cobrança da dívida do estado pela União deve injetar 23 bilhões de reais na economia. A demanda de Leite, porém, vai além e passa pelo perdão do total de 97,7 bilhões de reais da dívida gaúcha. Brasília até aqui não deu sinal de topar.
Mas Lula criou uma Secretaria Extraordinária, com status de ministério, para apoiar a reconstrução do estado. A pasta será comandada pelo então ministro da Secretaria de Comunicação, Paulo Pimenta. Gaúcho, o petista foi um dos primeiros representantes do governo federal a visitar a região em meio às enchentes e terá de articular com Leite, governador que faz oposição à gestão federal. A promessa é que o antagonismo — e os possíveis interesses eleitorais pensando em 2026 — fiquem de lado para a execução de um inédito plano de reconstrução.
O governo do estado apresentou o Plano Rio Grande, uma espécie de Plano Marshall, aquele que reergueu a Europa no pós-guerra. O valor necessário estimado pelo governo para o projeto é de 19 bilhões de reais, mas deve ser maior. O governador diz que é algo que ultrapassará o período do seu atual mandato, pois vai “reconstruir o futuro” dos gaúchos. As diretrizes passam por inovação, adaptação e resiliência climática, com fase emergencial no curto prazo, de reconstrução no médio prazo, e de diversificação econômica no longo prazo.
O Rio Grande do Sul tem sofrido mais do que qualquer outro estado com extremos climáticos. Foram 7.241 eventos climáticos nos últimos 30 anos, que resultaram em prejuízos de 100,8 bilhões de reais para os gaúchos. As perdas no Brasil chegam a 500 bilhões de reais em três décadas, como aponta um estudo realizado pelo engenheiro florestal e doutor pela Unesp, Marcos Kazmierczak, e obtido com exclusividade pela EXAME.
Um resgate da história de protagonismo será importante para que o estado projete o futuro. A forte base na agricultura e na pecuária e a industrialização precoce, ainda na década de 1920, fizeram do Rio Grande uma liderança política, econômica e cultural do Brasil.
Seis presidentes gaúchos governaram o Brasil por quase 40 anos no século 20. A partir dos anos 1990, as dificuldades começaram a se acumular, com uma migração em massa de mão de obra para outros estados, e uma sucessão de problemas fiscais. A renegociação de uma dívida de 9,4 bilhões de reais gerou uma bola de neve nas contas públicas que não se resolveu até hoje. “O estado é um exportador de talentos. Aonde você for no mundo, vai encontrar cientistas gaúchos”, disse Mohamed Parrini Mutlaq, CEO do Hospital Moinhos de Vento, em entrevista recente à EXAME. Uma espécie de nostalgia tomou conta do espírito gaúcho. As enchentes, de um jeito trágico, forçam um chacoalhão.
Há bons exemplos de regiões que se reergueram mundo afora. O mais óbvio é o de Nova Orleans, cidade americana que ficou 80% embaixo d’água depois da passagem do furacão Katrina, em 2005. A partir do ano seguinte, mais de 14 bilhões de dólares foram investidos no sistema de proteção contra furacões e inundações. Diques e sistemas de bombeamento mais modernos foram construídos. Para além deles, a cidade, um tradicional polo turístico, construiu parques e entrou na rota de navios de cruzeiro. Dez anos após o furacão, Nova Orleans tinha 600 restaurantes e 10.000 quartos de hotel a mais que em 2004. Para um olhar de futuro, a inspiração pode vir do Oriente.
A Arábia Saudita está complementando a renda do petróleo, em viés de baixa, com centenas de bilhões de dólares investidos em energia limpa e inteligência artificial, e um projeto de construir uma cidade de 500 bilhões de dólares no deserto. Singapura passou de um país pobre para um dos mais ricos do mundo com um ambiente amigável para os negócios.
Já o Uruguai, vizinho ao Rio Grande do Sul, enfrentou uma debandada de jovens, semelhante à gaúcha, com aposta em tecnologia. Benefícios fiscais a empresas tech e programas de atração de talentos chamaram a atenção de gigantes como a Microsoft, que instalou por ali o primeiro centro de pesquisa em inteligência artificial da América Latina, e a varejista Mercado Livre, que tem 1.300 profissionais no país, muitos deles desenvolvedores.
No Rio Grande do Sul, a reinvenção deve vir de três setores: a agricultura, a indústria e a infraestrutura. É no que acredita a maioria de uma série de lideranças gaúchas que conversaram com a reportagem da EXAME nas últimas semanas. “Este é o momento para as lideranças empresariais gaúchas começarem a discutir o futuro”, diz Erasmo Battistella, fundador e CEO da Be8, maior produtora de biodiesel do Brasil, com sede em Passo Fundo, no norte do estado. “Estamos vivendo um momento de consternação, ajuda, voluntariado, esforço para salvar e manter vidas. É função da liderança econômica pensar num novo tempo.”
No campo, a prioridade imediata são novas linhas de crédito e melhorias na infraestrutura para ganhar eficiência em produtos importantes para o estado, como arroz, milho, soja e carne. Será preciso também investir em tecnologias que permitam ao estado suportar condições climáticas cada vez mais severas. Um exemplo são os sistemas de irrigação que podem garantir a safra mesmo sob extremos climáticos.
“Eles ajudam na época de secas porque distribuem a água armazenada, mas também ajudam na época das chuvas, porque são capazes de reter essa água”, diz Nelson Ananias, coordenador de sustentabilidade da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, a CNA.
Outro consenso entre os empresários é que a indústria gaúcha deve passar por um fortalecimento, alinhada a políticas sustentáveis, como a de descarbonização. O primeiro passo é fazer com que as empresas fiquem no Rio Grande do Sul e recebam ajuda para isso. “É fundamental que as empresas, sejam elas de pequeno, médio ou grande porte, tenham apoio e condições de seguir operando no estado”, diz Eduardo Scomazzon, presidente da Tramontina, metalúrgica bilionária da serra gaúcha.
O próximo passo será entender como essas indústrias podem se reinventar e contribuir ainda mais social e ambientalmente. Vem do sul do estado uma aposta que pode mudar a vocação econômica gaúcha: a do hidrogênio verde. Um estudo da consultoria McKinsey & Company mostra que o investimento no setor pode gerar um aumento no PIB gaúcho de até 62 bilhões de reais, e a criação de 41.000 empregos até 2040.
Já há 27 projetos em andamento, de empresas como Total Energies e Shell, para a instalação de parques eólicos no mar gaúcho, na tecnologia conhecida como offshore, que podem ser os principais potencializadores para a produção de hidrogênio sustentável. Em Porto Alegre, a vocação digital pode ficar ainda mais forte, com a ampliação de projetos como o Instituto Caldeira e o South Summit, evento de tecnologia que virou referência nos últimos anos. Nessa caminhada, indústrias tradicionais, como a calçadista, podem se beneficiar pelo aumento de competitividade com mais inovação e com produtos mais verdes.
A retomada do estado passará, por último, mas não menos importante, pela melhoria de sua infraestrutura. “Temos de nos recuperar num outro patamar, melhor”, diz Battistella. O governo do estado prevê cerca de 6 bilhões de reais somente para a recuperação e readequação das rodovias estaduais danificadas. Há também muitos postos de saúde, hospitais, centros de atendimento e escolas afetadas.
Até o fechamento desta reportagem, 55% das escolas da rede de ensino gaúcha estavam fechadas, impactadas pela água. A reconstrução poderá significar uma guinada também nos investimentos na educação. O estado não tem nenhuma escola entre as 50 melhores do Brasil em ensino médio e está para trás em escolas com ensino integral, para ficar em dois indicadores essenciais. “A base de tudo é a educação. Precisamos ter pessoas qualificadas, com foco no ensino básico”, diz William Ling, da holding gaúcha Évora e tradicional voz por um ambiente empreendedor dinâmico. Ensino de qualidade é o caminho, aponta o empresário, para o sucesso no longo prazo. A educação, com suas escolas atualmente debaixo d’água, resume o desafio do Rio Grande do Sul: ter de lidar com o urgente sem esquecer do futuro. É, também, o desafio de todo um país.
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), afirma que o cenário de “pós-guerra” pede um poder público unido e cobra mais medidas do governo federal | André Martins
O senhor apresentou uma estimativa de 19 bilhões de reais para a reconstrução do estado. Quanto desse valor o governo espera utilizar de recursos próprios, doações e o que deve vir do governo federal?
Esse número é uma estimativa preliminar que foi apresentada alguns dias após o momento mais crítico das enchentes, mas que vai aumentar significativamente. Hoje, ainda não é possível estimar com exatidão o valor necessário para a reconstrução, porque essa crise tem muitas camadas, cada uma delas com exigências financeiras únicas. Nós vamos mobilizar todos os recursos que temos no estado, mas o Rio Grande do Sul não sairá dessa situação sozinho. Precisamos contar com o apoio da União, e tivemos um passo importante, com o anúncio da suspensão das parcelas da dívida por três anos. Mas precisaremos de mais.
Quais são os principais pontos para que a reconstrução torne o estado mais resiliente a extremos climáticos?
Todo o nosso esforço é focado na agilidade e na urgência de atender as pessoas que mais precisam. Com o plano de reconstrução não poderá ser diferente. Nosso planejamento leva em conta alguns pilares de atuação, como Assistência, Restabelecimento e Reconstrução, Prevenção e Resiliência Climática. Cada eixo aponta para as necessidades preliminares e áreas em que devemos atuar. Teremos de buscar soluções inovadoras, com métodos rápidos, e colocá-las em prática em um curto prazo.
E sobre a necessidade de revisão da infraestrutura, o que o estado já tem mapeado para discutir? A mudança de cidades inteiras de local é uma alternativa considerada?
Nossas equipes já estão mapeando os casos mais críticos para estabelecermos as áreas prioritárias de uma abordagem mais forte, que poderia resultar em cidades mudando de lugar. Outro ponto que vamos trabalhar fortemente é a estruturação de um centro de operações integradas, com a melhoria e qualificação de dados e análises, novos equipamentos e tecnologias, alertas e comunicação, assim como a constante capacitação dos operadores.
Quais planos estão em discussão para a reconstrução dos setores da economia do estado?
Tenho repetido que há uma necessidade de fazer uma espécie de Plano Marshall para o Rio Grande do Sul, porque estamos vivendo um cenário semelhante ao de pós-guerra. Ainda não sabemos exatamente qual será o impacto da tragédia na nossa economia, mas sem dúvidas será em um nível jamais visto no Brasil. Estamos elaborando o planejamento nessa direção, contemplando medidas como empréstimos subsidiados a partir dos bancos públicos e revisão de benefícios fiscais de forma a garantir o funcionamento das empresas.
A reconstrução fará o Rio Grande do Sul caminhar para qual direção? O estado vai mudar a sua votação econômica?
O Rio Grande do Sul manterá a sua vocação de estado inovador e empreendedor. Não tenha dúvidas disso. O protagonismo que temos na economia brasileira, a partir da agropecuária, da inovação,da indústria e do turismo, será mantido. O governo fará de tudo para garantir que a reconstrução do estado preserve essas vocações e dê ainda mais segurança para quem pretende investir no Rio Grande do Sul, porque sairemos dessa situação mais fortes.
Em alguns países que enfrentaram problemas demográficos, sociais e econômicos, a recuperação veio da aposta em infraestrutura, industrialização e tecnologia para reter talentos
Como era: após a Independência da Malásia, em 1965, Singapura enfrentava altas taxas de desemprego, habitação inadequada, conflitos étnicos, infraestrutura precária e uma economia subdesenvolvida, sem recursos naturais.
O que fez: focou a industrialização e atraiu investimento estrangeiro, criando ambiente favorável para multinacionais. Implementou reformas educacionais, com foco em escolas técnicas e universidades, o que qualificou a população, uma das poucas do mundo que falam inglês e chinês. Desenvolveu um programa de habitação pública e diversificou a economia com setores como financeiro, turismo e biotecnologia.
Como está: hoje o país é o quinto mais rico do mundo em PIB per capita, com 91.700 dólares, e é reconhecido por seu ambiente de negócios altamente favorável, com baixa corrupção, regulamentação eficiente e uma administração pública eficaz.
Como era: crises econômicas durante todo o século passado, com a demora para a industrialização, somadas a uma baixa taxa de natalidade e envelhecimento populacional contribuíram para a saída de mão de obra qualificada do país.
O que fez: nos últimos anos, começou um movimento para tornar o país um polo de tecnologia, a exemplo do que Israel fez no Oriente Médio. Criou políticas públicas para trazer talentos do exterior e dar benefícios tributários para empreendedores do setor de inovação.
Como está: o país passou a receber novos polos de tecnologia, como o primeiro laboratório de IA da Microsoft na América Latina e a transferência do Centro de Pesquisa Latino-americano da Universidade Harvard de Buenos Aires para Montevidéu. A empresa argentina Mercado Livre também apostou no país e hoje tem lá mais de 1.500 funcionários, muitos deles desenvolvedores.
Como era: cerca de 40% da economia saudita vem do petróleo, um bem escasso e que passa por um viés de baixa com cortes de produção.
O que fez: passou a apostar na diversificação da economia, com centenas de bilhões de dólares investidos em energia limpa e inteligência artificial para virar um grande polo de tecnologia.
Como está: hoje se posiciona como a 19a maior economia do mundo e busca atrair cada vez mais empresas tech para diversificar a receita. Vai investir 40 bilhões de dólares num fundo em inteligência artificial e tem um projeto de construir uma cidade de 500 bilhões de dólares no deserto.