Revista Exame

Quanto mais danos na pandemia, mais difícil será a retomada, diz Rajan

Para Raghuram Rajan, ex-presidente do BC da Índia, ex-economista chefe do FMI e professor da Universidade de Chicago, alguns países podem ter década perdida

Raghuram Rajan (Danish Siddiqui/Reuters)

Raghuram Rajan (Danish Siddiqui/Reuters)

João Pedro Caleiro

João Pedro Caleiro

Publicado em 13 de agosto de 2020 às 05h55.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 11h49.

Mercados financeiros em euforia — enquanto economias afundam a taxas de dois dígitos. Mais demanda por serviços do governo e gastos — após a criação de montanhas de dívida. Necessidade de gerenciamento sério e criação de consensos — num mundo onde populistas vivem de torcer narrativas. O mundo com o coronavírus começa a desenhar dilemas e paradoxos que exigirão um equilíbrio cuidadoso: “Quanto mais danos a pandemia fizer, mais difícil será o pós-pandemia”, diz o indiano Raghuram Rajan, professor na Universidade de Chicago, meca mundial do liberalismo. Economista-chefe do Fundo Monetário Internacional de 2003 a 2006 e presidente do Banco Central da Índia de 2013 a 2016, Rajan conversou com exclusividade com a ­EXAME. Leia os principais trechos da entrevista.

Na crise de 2008, falava-se nos bancos centrais provendo liquidez e os governos dando estímulos. Em uma pandemia, qual deve ser o papel dessas instituições para manter a economia viva?

O primeiro passo é conter a pandemia, pois estão sendo interrompidas atividades econômicas com lockdowns e é preciso prover alívio para as famílias e para as pequenas e médias empresas, que não têm receita e cujos custos conti­nuam. Isso é diferente de 2008, porque havia desempregados, mas não uma população confinada. Depois, à medida que se reabre, há os reparos. Muitas corporações agora têm níveis enormes de dívida, e é preciso permitir que parte seja anulada.

As outras partes são similares. Talvez seja preciso dar estímulo na fase de recuperação para acelerar o crescimento e, finalmente, achar o capital político para fazer reformas que melhorem essa taxa no longo prazo. Em tempos ruins, algumas vezes há esse capital — mas nem sempre.

Mas como se faz isso na prática?

Na fase de contenção, muito dinheiro foi gasto em países industrializados, mas nem tanto nos emergentes. Agora precisamos esperar para ver se será possível reduzir a disseminação do vírus para um nível tolerável. Sem isso, as pessoas não ficarão confortáveis em ir a restaurantes, viajar de avião ou de transporte público, e com isso a economia não atingirá seu pleno potencial de crescimento.

E, quando a economia estiver reaberta plenamente, a questão será checar a necessidade de mais estímulo fiscal. Mas a grande questão no momento para economias como Brasil, México, Peru e Índia é realmente conter o vírus, dar alívio e garantir que a economia não esteja terrivelmente danificada.

Com base nessa ideia de que conter o vírus e salvar a economia são coisas interligadas, podemos esperar uma recuperação mais rápida em países com mais sucesso contra o vírus, como a própria China e a Europa atualmente, do que naqueles em maior dificuldade, como os Estados Unidos, o México e o Brasil?

É o que vemos. A China já retomou quase 100% da produção na manufatura, e um pouco menos em serviços. O problema chinês agora é que o restante do mundo não está aberto, então o que ela está produzindo não pode ser vendido, e parte se torna inventário. A Europa está numa situação similar, começando a abrir amplamente, com indicadores de atividade na Alemanha de volta aos trilhos.

Por outro lado, nos Estados Unidos há estados com infecções em alta e a atividade econômica esfriando. A grande incerteza é se precisarão fechar mais uma vez, o que deixaria os negócios numa situa­ção terrível. Cada vez que se abre há o custo de trazer as pessoas de volta e de comprar suprimentos. Pense em um restaurante: o estabelecimento precisa comprar ovos, farinha e tudo o que é necessário para começar de novo. Quando fecha, tem de jogar tudo fora. É por isso que há muita incerteza no ambiente de negócios americano.

Mas há uma recuperação em V nos mercados (depois de uma queda rápida, uma retomada em igual velocidade), mesmo que o prognóstico para o crescimento não seja otimista. O que explica essa aparente desconexão?

Uma possibilidade é que as pessoas tentam se convencer do “don’t worry, be happy”: as economias vão ficar bem, e sabemos que isso provavelmente não está certo. Mesmo nas avaliações mais otimistas, da vacina sendo aplicada rapidamente, as economias que manejaram isso melhor voltarão no final de 2021 para seu patamar de crescimento de 2019, no mínimo. E as que sofreram mais danos vão demorar dois ou três anos, talvez mais. Para alguns países, pode ser uma década perdida inteira — como a Itália teve depois da crise financeira global. Por que, então, os mercados celebram? Uma possibilidade é que com juros tão baixos talvez eles possam negligenciar um ou dois anos de ganhos baixos.

A segunda possibilidade é que muitas das firmas no mercado são grandes e vão se dar relativamente bem com menos competição das pequenas, que estão com problemas maiores. A lucratividade não será prejudicada. Você vê isso no mercado americano — o índice de empresas grandes está melhor do que o de pequenas. E também as empresas que estão indo bem — tecnologia, biotecnologia e medicina — vão melhor do que as da “economia velha” — aéreas e hotéis. Há uma diferenciação dentro do mercado.

A terceira possibilidade é que os bancos centrais estão dizendo que quem tiver um problema será resgatado. É a mensagem que o Fed parece mandar, de que agirá como se fosse um escudo. Em março, o dinheiro estava deixando os mercados emergentes, e o Brasil viu isso acontecer substancialmente. Mas boa parte está voltando, porque há um senso de que retornamos para um patamar aceitável de risco e para a busca por rendimento.

E a última possibilidade é “exuberância irracional”. Há muita gente em casa sem saber o que fazer e jogando no mercado financeiro. Acho que há um pouco de tudo, mas me preocupa que ainda não vimos o final da crise, e os mercados estão convencidos de que tudo vai dar certo.

Os países estão se endividando para lidar com a crise. Isso pode se traduzir em crescimento mais baixo ou crises da dívida, como na América Latina nos anos 1980?

Depende de como vamos reduzi-la. Ela precisa ser contida de forma que os mercados não se assustem. Mesmo em países industrializados há um nível de dívida que, se extrapolado, deixará os mercados relutantes em financiar. Qual é esse nível? Talvez seja mais alto com as taxas de juro baixas, mas não é infinito. Em mercados emergentes, tipicamente chegamos a esse nível mais cedo do que nos industrializados. A questão é se conseguiremos gastar o necessário sem romper esse limite e depois oferecer sinais claros de redução. O jeito ­ideal de fazer isso é crescer muito mais rapidamente para alcançar receitas significativamente maiores e então pagar a dívida. No entanto, essa não é a possibilidade mais provável.

A segunda opção é a inflação. Muitos países historicamente fizeram isso, inclusive os industrializados, após a Segunda Guerra Mundial, mas não é a forma mais agradável para os detentores dos títulos da dívida, que a veem “sumir via inflação.” A terceira possibilidade são níveis muito mais altos de taxação e, portanto, austeridade. Mas isso não combina com crescimento, que é a melhor opção. Nesse caso, é preciso buscar alguma combinação de austeridade e inflação. O calote é a combinação mais desagradável, como sabemos pela América Latina no passado. Como achar o mix certo? Idealmente, será um processo lento, mas estável, de reduzir a dívida consertando o déficit fiscal, com crescimento mais alto e uma inflação levemente mais alta.

Como esse novo mundo conversará com questões que já estavam na agenda e se tornaram ainda mais explícitas, como desigualdade e mudanças climáticas?

Essa é a parte interessante. Falamos sobre austeridade, mas profundas desigualdades nos países empurram para outra direção. Pense nos entregadores de aplicativos, que pedem algum tipo de rede de proteção, melhores regras e regulações etc. Existe ao redor do mundo um movimento daqueles com empregos precários por algum tipo de apoio.

De forma similar, mais trabalhadores agora vão pedir proteção à saúde, dada a natureza da pandemia. Tudo isso requer mais gastos, e nem mencionamos que as pessoas ficaram mais cientes de alguns riscos, como o do aquecimento global. Logo, elas sabem que é necessário fazer algo a respeito, o que exige mais regulação das emissões de gases de efeito estufa e menos desmatamento, uma grande questão no Brasil.

Como conciliar as duas coisas, precisamos de mais recursos, mas não temos porque gas­tamos na pandemia? Veremos muita tensão política, e o resultado ruim seria dar ouvidos aos demagogos que dizem que você pode ter tudo. Mas você não pode. Você precisa fazer escolhas cuidadosas, que permitam à sociedade viver dentro de ­suas possibilidades e gastando de maneira efetiva. Isso requer um gerenciamento cuidadoso e que se alcancem consensos políticos. Será difícil e, quanto mais danos a pandemia fizer, mais complicado será o ­pós-pandemia.

Os Estados Unidos e o Brasil, os dois países mais afetados, têm líderes aliados que minimizaram a pandemia e defenderam tratamentos médicos sem comprovação. E ambos perderam apoio na condução da pandemia. Haverá demanda por uma condução melhor de crises como a que vivemos?

Populistas são bons em criar uma narrativa mais efetiva para estabelecer a inocência deles em relação ao resultado. E eu colocaria mais um exemplo nessa lista: a Índia é o terceiro país em número de casos, mas o primeiro-ministro Narendra Modi tem uma taxa de aprovação de 74% da população. Os problemas são similares: falta de disposição em olhar para os dados, em entender o que eles significam e em tomar medidas efetivas na hora certa. Mas o resultado são níveis diferentes de popularidade em diferentes populistas, como é o caso de Modi. É possível torcer a narrativa.

Há períodos em que Trump diz que os Estados Unidos estão indo maravilhosamente bem em lidar com o vírus, e a maioria dos observadores externos diria que isso não é verdade. Mas é possível, dependendo da métrica utilizada, talvez em mortes por milhão, dizer que os Estados Unidos por enquanto estão melhores do que alguns países europeus. Pegue uma estatística e mostre o que há de melhor. Existe uma tentativa de distorcer a narrativa para dizer que não é você, e sim os outros. Muitos países que perderam o controle primeiro centralizaram as decisões e agora jogam as decisões para os estados e, consequentemente, podem culpá-los.

Não é sempre verdade que os populistas autoritários, ou os simplesmente autoritários, se deram mal. A China se deu bem, assim como o Vietnã e a Hungria, com o primeiro-ministro Viktor Orbán. Não há uma narrativa comum, mas o mal gerenciamento do vírus — se a oposição conseguir atrelá-lo ao governo — poderá levar a uma perda de confiança e de apoio político.

No Brasil houve uma mudança na agenda: antes se falava muito em austeridade e reformas, e agora se fala em reformulação da proteção social depois do fim do auxílio emergencial. A crise reforçou a importância dos governos. Isso poderá levar a uma revisão mais profunda do liberalismo?

Grandes calamidades colocam mais peso em ações do governo, porque lidar com as consequências públicas é mesmo seu papel. Não surpreende que, se um governo fizer isso bem, haverá mais apoio não apenas ao partido no comando mas para mais ações do governo. Isso ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial, especialmente nos países vencedores. Mas também temos experiências passadas de governos ruins e a total burocratização da economia. Apesar de haver mais abertura a regulações e proteção social, isso não significa que estaremos mais abertos para a nacionalização. Tivemos exemplos suficientes de sua ineficiência e não devemos ter uma visão cor-de-rosa do poder do governo.

Estamos em um ambiente com fortes populistas nacionalistas, centralização e autoritarismo, e deve haver cuidado ao dar mais poder aos governos. Imagine um país com renda básica universal. É preciso garantir que o governo do momento não poderá, por exemplo, decidir que se alguém não fizer o que ele quer acabará excluído da renda básica. Se o governo efetivamente paga todo mundo, todo mundo se torna, de alguma forma, dependente do governo. E isso precisa ser acompanhado de pesos e contrapesos.

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