Casa Rosada, em Buenos Aires: país vive crise econômica que deve se acentuar devido ao coronavírus (Agustin Marcarian/Reuters)
Da Redação
Publicado em 13 de fevereiro de 2020 às 05h30.
Última atualização em 13 de fevereiro de 2020 às 10h19.
Dois meses depois de ter assumido a presidência argentina, Alberto Fernández corre contra o relógio para resolver o enrosco da dívida do país. Fernández sabe que a prioridade é chegar a um entendimento com os detentores de um emaranhado de títulos argentinos, enquanto tenta convencer o Fundo Monetário Internacional (FMI) a ampliar o prazo para o pagamento do empréstimo assinado pelo ex-presidente Mauricio Macri em 2018. A tarefa é muy complicada.
Para o governo Fernández, a dívida é uma bomba que deve ser desativada para abrir caminho para a Argentina voltar ao rumo do crescimento sustentável. Os últimos dois anos foram de recessão no país, e a expectativa é de uma nova retração do produto interno bruto em 2020. “Resolver o problema da dívida é uma questão necessária para que possamos voltar a crescer”, escreveu o presidente argentino em sua conta no Twitter recentemente. Fernández também tem repetido que a atual situação da dívida é “insustentável” e “impossível de ser paga nos termos atuais”. Em síntese, a mensagem é: “Devo, não nego, mas é impossível cumprir as obrigações de pagamentos”.
A Argentina tem uma dívida total de 323 bilhões de dólares, que inclui tanto os títulos emitidos no mercado financeiro quanto os 44 bilhões de dólares que recebeu da linha de crédito de 57 bilhões do FMI. As reservas do Banco Central são de cerca de 45 bilhões de dólares. Outro país na mesma situação até poderia renegociar ou reestruturar sua dívida sem dramas. Mas o histórico de calote da Argentina joga contra. O país entrou em default oito vezes desde sua independência em 1816 — quatro delas ocorreram nos últimos 40 anos. “Nenhum país paga sua dívida total. Os países têm acesso ao mercado de créditos, refinanciam o capital e pagam as taxas de juro. Mas a Argentina tem um problema de crédito que não está associado a seus níveis de endividamento, e sim à sua credibilidade”, diz Marina Dal Poggetto, diretora executiva da consultoria econômica Estudio EcoGo em entrevista em seu escritório em Buenos Aires.
Um reflexo dessa desconfiança é o risco-país da Argentina, que oscila entre 1.890 e 2.000 pontos básicos, bem acima do nível do Brasil, de 100 pontos. Uma dificuldade, portanto, é convencer os credores da dívida a renegociar os pagamentos. Se nenhum acordo for alcançado, a Argentina terá de pagar um total de 67,5 bilhões de dólares de suas dívidas em pesos e em dólares somente neste ano, valor que supera as reservas internacionais, de acordo com o economista Santiago Taboada, da consultoria OJF e Associados. Num retrato das asperezas que o país enfrenta, no início de fevereiro somente 10% dos credores aceitaram substituir seus títulos por uma nova emissão de papéis com vencimento em agosto de 2021. Foi a primeira tentativa no ano do governo de renegociar o pagamento de parte da dívida. “O governo se precipitou ao fazer o anúncio sem antes consultar os fundos estrangeiros envolvidos nessa reestruturação”, diz o economista Gustavo Neffa, diretor da consultoria -Research for Traders y FinGuru, de Buenos Aires.
A estratégia do novo governo argentino tem sido conquistar a confiança internacional e um novo entendimento com o FMI, ao mesmo tempo que acena para a política interna. Por isso, o presidente Alberto Fernández enviou ao Congresso um projeto de lei para que tenha aval para reestruturar a dívida e para que possa contratar um agente financeiro — um banco, por exemplo — para a empreitada.
Na tentativa de conseguir apoio dos líderes europeus junto ao Fundo Monetário Internacional, Fernández realizou um giro pela Europa em fevereiro, quando recebeu respaldo da chanceler da Alemanha, Angela Merkel, do primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, do primeiro-ministro da Itália, Giuseppe Conte, do presidente da França, Emmanuel Macron, e de seu conterrâneo, o papa Francisco. Com fama de equilibrista, Fernández tem tentado se reunir com a direita e com a esquerda, dentro e fora do país. Antes da passagem pela Europa, esteve com Benjamin Netanyahu, em Israel, em sua primeira viagem internacional como presidente. Se depender dele, segundo os assessores, vai se reunir com Jair Bolsonaro “assim que o encontro for marcado”. Na Europa, Fernández diz ter conseguido construir apoios.
Candidato à Presidência no ano passado, o ex-ministro da Economia Roberto Lavagna disse a EXAME que o ministro da Economia, Martín Guzmán, tem “a ortodoxia e a heterodoxia exatas” para enfrentar este momento. Ele afirmou que a situação argentina de hoje é “infinitamente menos difícil” do que quando ele foi ministro logo após o –default de 2001. O país só saiu completamente daquele calote 15 anos depois, quando pagou em 2016 os chamados houldouts, ou fundos abutres. Mas o imbróglio da dívida argentina vai precisar mais do que as palavras de solidariedade. Qualquer entendimento com o FMI dependerá do apoio do presidente Donald Trump, por causa do peso dos Estados Unidos no organismo.
O governo Fernández tem ainda outro desafio: controlar a ansiedade dos empresários que ainda não viram um plano econômico completo do governo. Em dezembro, após a posse de Fernández, o Congresso aprovou a chamada Lei de Solidariedade e Reativação Produtiva, que prevê uma série de mudanças na economia, como novas regras para o reajuste das aposentadorias e pensões, que deixou de ser automático e passou a seguir índices fixos definidos e implementados por decreto presidencial. Com a medida e o congelamento das tarifas dos serviços públicos durante seis meses, o governo busca desnutrir a inflação, que em 2019 foi de 53,8%, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos. Mas ainda não está claro como pretende combater a inflação.
“Mais cedo ou mais tarde, o Banco Central deverá emitir dinheiro para cumprir seus compromissos, o que provocará uma expansão monetária não demandada, e isso levará à inflação”, diz o economista Fausto Spotorno, da consultoria OJF e Associados. A lei aprovada em dezembro incluiu ainda a criação de um imposto de 30% para a aquisição de moedas estrangeiras ou para os gastos dos argentinos no exterior. O pacote ainda aumentou as chamadas –retenciones, um imposto à exportação para ramos do setor agropecuário.
Apesar das críticas de setores das classes média e alta e da oposição, analistas econômicos elogiaram o pacote, principalmente por sua “consistência fiscal” ao decidir mudar a fórmula de cálculo das aposentadorias e pensões. E, ao contrário do esperado, não houve protestos contra as medidas. A queda da taxa de juro de referência, a Leliq, que passou de 63% para 48% entre dezembro e janeiro, é outro motivo de elogios entre especialistas e empresários. Os juros altos, que tinham superado a barreira dos 80% na reta final do governo Macri, foram apontados por empresários como algozes da forte queda no consumo e da recessão. “Virou uma ciranda financeira que só nos prejudicou”, disse um grande empresário argentino, que preferiu não ter seu nome divulgado. A batalha de Fernández contra a dívida e a recessão, como se vê, está só no começo.
Para Daniel Marx, ex-secretário de Finanças da Argentina, a classe política do país aprendeu com os erros do passado | Marcia Carmo, de Buenos Aires
Ex-secretário de Finanças da Argentina entre 1999 e 2001, o economista Daniel Marx acha que a situação da dívida do país é menos complexa do que na histórica crise de 2001. Marx fez parte do Comitê de Assessoramento da Dívida, criado assim que o presidente Alberto Fernández tomou posse em dezembro, e afirma que continua sendo ouvido pelo governo. “A classe política no país hoje quer evitar um enfrentamento com os credores”, diz o economista, que é diretor da consultoria Quantum Finanzas.
Como o senhor compara a situação da Argentina de 2001 com a atual?
A situação agora é melhor. Para começar, o setor externo é mais favorável. Os preços de exportação da Argentina estão muito melhores do que naquela época. E a classe política do país hoje quer evitar um enfrentamento com os credores, como ocorreu no passado. Um exemplo é que não existem restrições hoje para sacar dinheiro dos bancos. Existem restrições ao movimento de capitais ao exterior, mas os recursos estão disponíveis no país.
Como definiria a situação do país?
É complexa porque a Argentina não tem acesso aos mercados voluntários internacionais, o que requer refazer os termos da dívida, realizar negociações para esticar os prazos, dar alívio ao pagamento de juros e buscar alguma redução de capital nominal.
O governo de Alberto Fernández pode resolver esse problema?
Sim. Mas isso requer mais do que resolver a dívida. A inflação é alta e persistente. O governo quer reduzi-la, porém a economia está em recessão há anos. É mais complicado.
Por quê?
Porque é uma economia que tem muita rigidez, que tinha um déficit fiscal significativo. Falta de credibilidade na moeda. São várias coisas. E ainda há um desemprego relativamente alto (9,7% no terceiro trimestre de 2019, segundo dados oficiais) e uma queda no poder aquisitivo.
É possível chegar a um acordo com o Fundo Monetário Internacional?
A linha de empréstimos aprovada pelo FMI é de 57 bilhões de dólares, mas o total desembolsado até agora foi de 44 bilhões. Para ter acesso aos demais recursos, a Argentina terá de apresentar o plano econômico. A partir daí, deverão ser definidos os programas e novos termos para que o país tenha, talvez, acesso a um novo empréstimo do FMI. Mas essa decisão não está tomada. Não está decidido se a Argentina quer ou não pegar mais dinheiro emprestado.