O consultor Rafael Torales: em modelo de trabalho remoto há 13 anos, muito antes das mudanças trazidas pela pandemia (Cristiane Bassotelli/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 4 de outubro de 2022 às 06h00.
Rafael Torales, CEO e fundador do Projeto Officeless, entrou em modelo de trabalho remoto há 13 anos, muito antes da pandemia. Para ele, não há dúvida de quanto a distância do velho escritório melhorou sua qualidade de vida. Torales morava na Austrália e trabalhava para uma empresa de tecnologia dos Estados Unidos, com um fuso horário favorável que lhe garantia as manhãs livres. Hoje, é um especialista em trabalho remoto e reconhece que, depois da pandemia, a experiência da maioria das pessoas com o novo modelo é o oposto da sua.
As mudanças causadas pela pandemia e pelo trabalho remoto ainda afetam muito a saúde física e mental dos funcionários?
A pandemia trouxe uma série de prejuízos na questão da saúde mental e física. Quando se falava em trabalho remoto se pensava muito na flexibilidade que esse modelo permitiria. Mas o que tivemos na pandemia foi muito mais uma prisão. As pessoas tinham de ficar trabalhando o dia inteiro em casa e depois continuar lá. Ninguém conseguia se desconectar do trabalho, porque nosso trabalho estava na palma da mão. A questão da conexão entre as pessoas continua sendo o grande desafio das empresas. Como criar e operar à distância, contratar à distância, manter a cultura da organização viva, mesmo que as pessoas não estejam se encontrando frequentemente. Poucos estavam preparados para isso e foram fazendo de forma intuitiva.
E o resultado foi desastroso?
Quando não estão preparadas para trabalhar nesse novo modelo de uma forma profissional, as organizações criam uma cultura que gera muita ansiedade. As pessoas se viam obrigadas a estar presentes em todos os momentos. Recebiam mensagens a qualquer hora do dia ou da noite e se achavam na obrigação de responder imediatamente para que não pensassem que estavam ausentes.
Trabalho e vida pessoal se misturavam. Não havia mais o escritório para separar as coisas e organizar o dia a dia. Ficar 24 horas conectado ao trabalho não faz bem para ninguém. A maior parte das empresas não tinha a intenção, na verdade, de criar uma cultura de trabalho remoto. Mas, como não havia opção, todos precisaram se adaptar.
As lideranças nas empresas se sentiam inseguras sem as equipes por perto?
Sim, e isso levou a uma grande cultura de vigilância, quase criando um Big Brother dentro das organizações. Foram buscadas ferramentas que permitissem ver exatamente o que as pessoas estavam fazendo à distância, quantas horas levavam para cumprir cada etapa do trabalho, com o áudio ligado o dia inteiro.
Não eram ferramentas específicas para o trabalho remoto. A grande maioria adotou a comunicação pelo WhatsApp e videoconferências em sequência para ter certeza de que estava todo mundo online, todo mundo disponível e trabalhando. Era um modo de replicar o escritório real, com todos à vista.
As lideranças, despreparadas para lidar com esse tipo de situação, estavam cheias de suspeitas e, do outro lado, os colaboradores estavam cheios de receio de saber se estavam acompanhando o desempenho deles, dando valor para o trabalho que estavam fazendo, atentos para se mostrar sempre presentes.
Algumas lideranças até procuravam deixar os funcionários tranquilos, dizendo que não precisavam responder no momento. Mas, na prática, davam o exemplo contrário, enviando mensagens o dia inteiro.
Talvez o terror mais comum dos colaboradores que passaram por essas situações tenha sido a praga das videoconferências. Realmente está havendo certo exagero?
O desafio número 1 das organizações hoje é evitar o costume das reuniões o tempo todo. As videoconferências foram banalizadas na pandemia. Juntavam as pessoas não por uma questão de melhor produtividade, mas para controlar, na cultura de vigilância.
Quando as pessoas notaram que sua participação não tinha nenhuma importância, que estavam convocados apenas para marcar presença, ficavam com suas câmeras meio desligadas, só para mostrar que estavam disponíveis, o que, afinal, era o que pretendiam mesmo delas.
As lideranças tiveram grande frustração: a equipe não é participativa, não está engajada. Mas era a décima reunião daquele dia. Dizer que toda videoconferência é uma reunião é mais uma forma de banalização, porque existem vários tipos de reunião. Há as que se destinam a um trabalho interativo, à discussão de ideias, e as que não passam de um comunicado. Essa mistura trouxe um caos tanto para a cabeça das pessoas quanto para a produtividade desses eventos, que deveria ser significativa.
O que é preciso entender para mudar?
As empresas devem ter uma ferramenta de comunicação muito bem estruturada. Precisam criar ambientes virtuais com o mesmo cuidado e especialização que adotam para estruturar um escritório real. Leva-se tempo pensando como esses ambientes vão ser, que salas serão necessárias, quantas cabines, locais para o trabalho colaborativo, para reuniões rápidas, auditório. Essa preocupação também se deve ter para o escritório virtual.
Existem ferramentas para essa diversidade de necessidades no mundo virtual?
Sim. A ferramenta escolhida impacta as atividades no dia a dia e pode alterar a própria cultura de uma equipe. Cada ferramenta tem um design que cria uma experiência para a equipe. Um dos pilares de nossa metodologia é ter uma comunicação assíncrona por padrão.
Precisamos nos esforçar para detectar o que pode ser decidido sem o modo de conferência. E usar ferramentas adequadas para cada situação, permitindo uma conversa contextual, uma conversa assíncrona, de forma estruturada. Várias coisas podem ser decididas sem convocar as pessoas para um modo de call.
Enviar mensagens dentro de um Slack ou alguma coisa assim, por exemplo. O próprio design sugere as diferenças. Ninguém manda “Oi, tudo bem?” por e-mail, mas por WhatsApp, não é? É preciso estruturar uma comunicação com mais contexto, para que a pessoa tenha condições de ler e responder no tempo dela, com recursos de audiovisual, rápidas apresentações em tela. Fazer à distância exige mais proatividade, é fundamental ter certeza de que os arquivos e as informações estarão sempre disponíveis para as pessoas que trabalham com a gente. Isso tem a ver com gestão do conhecimento e com a forma como se mede a produtividade das pessoas.
As empresas brasileiras estão atrasadas nesse processo?
As organizações perceberam que era possível fazer muita coisa à distância, coisas que nunca haviam sonhado. Isso foi, ironicamente, um lado benéfico da crise: as empresas foram forçadas a entender melhor seus modelos de negócios. Tecnologia e ferramentas para fazer à distância boa parte do que fazíamos no dia a dia do escritório já existem.
O que não temos é o preparo e a vontade real de fazer essa transformação não apenas pelos problemas gerados na pandemia. É preciso sair do automático, porque o futuro é do trabalho em diferentes locais e fusos horários.
Para fazer isso as empresas precisam conhecer melhor seus quadros de funcionários?
Acredito que as organizações estão cada vez mais preocupadas com isso e recorrendo a profissionais especializados em melhorar o bem-estar das equipes. Num ambiente físico se consegue ver quando alguém está de mau humor, há uma importante linguagem corporal envolvida. É preciso garantir alguns touchpoints com quem trabalha com a gente, ter profissionais especializados para conversar mesmo à distância com os funcionários.
As organizações estão precisando entender mais a individualidade das pessoas que trabalham ali. Quando se dá autonomia para trabalhar, em geral o indivíduo se sente melhor. Mas há quem não suporte o home office, e talvez seja conveniente disponibilizar um ambiente de coworking para essas pessoas, por exemplo.
E como fazer com os serviços terceirizados e os fornecedores que, de algum modo, fazem parte da rotina?
Quando se começa a desenhar o tipo de ferramenta que vai ser utilizado aparecem muito mais facilmente esses pontos de contato, entre uma equipe e outra, e entre fornecedores e clientes. Cada área da empresa é um fornecedor e um cliente de uma área.
Dependendo da frequência e do tempo do contato com fornecedores, pode ser interessante trazê-los para seu escritório virtual. Olhar a organização como uma grande comunidade. E, mesmo à distância, trazer informação, gerar engajamento, fazer eventos, fazer treinamento e definir objetivos.
Há algum setor empresarial que saiu na frente nessas transformações?
Quem já fazia isso antes da pandemia. Porque eles tinham a real intenção de tomar o novo rumo. É diferente de quem veio para o modelo por não ter como fugir. Os pioneiros já adotavam esse modelo de trabalho à distância porque queriam promover melhor qualidade de vida para as pessoas e continuar crescendo como organização, atingindo os resultados pretendidos.
O trabalho remoto aumenta a organização de fato. Quando se está no escritório, é mais fácil deixar coisas debaixo do tapete. O trabalho remoto é um amplificador de sua cultura como empresa. Se algo não estiver funcionando, aquilo vai ficar escancarado e será preciso ir lá ajustar.
A tendência é adotar modelos híbridos?
A pergunta que ninguém está fazendo é qual modelo híbrido. Existe modelo que prioriza a cultura de dentro do escritório. Pensa nos nossos rituais e faz um puxadinho para quem está distante colaborar. O modelo híbrido deve pensar primeiro na cultura.
O remoto não é um local, e sim uma mentalidade. Tudo deve funcionar, independentemente do lugar em que você esteja. Da mesma maneira que no escritório. Quem está fora ou dentro precisa aprender a trabalhar assim, sem conflitos. Todos que fazem parte de uma equipe precisam saber disso. Na nossa metodologia essa visão remote first é o primeiro pilar a ser estruturado dentro de uma organização. Sem isso, não funcionará o modelo híbrido.
Quais outros pontos são fundamentais?
O segundo ponto é definir uma estrutura digital com um repertório de ferramentas que permitam o trabalho à distância, mesmo em áreas em que pretensamente é impossível. Todos os dias são lançadas milhares de ferramentas para ajudar a realizar à distância alguma etapa do trabalho. O objetivo é a comunicação em colaboração, que flua para quem está dentro ou fora do escritório.
Isso implica também mudanças sobre a cultura de gestão?
Gestão sem vigilância é uma condição para o novo modelo. O foco é como medir a produtividade da equipe sem precisar ficar olhando para ela, inventando formas de espioná-la, videoconferências o dia inteiro para conferir se ela está disponível para mim. Mandando mensagem aleatoriamente só para olhar aquela bolinha verde e ver se estão online. Tudo isso a gente esquece para focar indicadores que digam se os resultados estão sendo alcançados em determinado período de tempo.
Isso não gera mais pressão por produção e menos bem-estar?
As organizações precisam criar rituais que vão aferir a produtividade e também o bem-estar. Como ajudar as pessoas a criar suas próprias rotinas, mas sincronizando com as rotinas que a empresa precisa ter. Em vez de uma cultura workaholic, criar uma cultura healthaholic. Precisamos alcançar resultados, mas olhando também para o bem-estar das pessoas, para a saúde mental. Os rituais que se criam na organização vão gerar esses exemplos, intensificar, de verdade, os valores e a percepção deles.
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