O aperto monetário vigoroso levou a uma enorme destruição de valor dos ativos de risco; o processo de flexibilização deveria apontar na direção oposta (Andriy Onufriyenko/Getty Images)
Colunista
Publicado em 21 de dezembro de 2023 às 06h00.
“Há décadas em que nada acontece. E há semanas em que décadas acontecem.” Os comunistas eram péssimos administradores, mas — temos de admitir — bons frasistas. Como no clássico de Lenin, também nos investimentos poucos dias podem fazer a diferença. Enquanto todos se debruçam em relatórios com perspectivas para 2024, vale o lembrete: o jogo só acaba quando termina, depois da checagem do VAR. Até 31 de dezembro, ainda manteremos a guarda alta, focados em 2023. As últimas semanas do ano, historicamente, gozam de sazonalidade positiva. As estrelas da NBA brilham no último quarto.
Ressalva feita, sem diminuir ou negligenciar o final deste ano, passamos a olhar também para 2024. O exercício é sempre perigoso. “Previsões são sempre difíceis, especialmente sobre o futuro”, na conhecida ironia. Previsões são tentativas de reduzir a dispersão (volatilidade, tida como medida de risco) de resultados possíveis. Há um pequeno problema nos exercícios de adivinhação: o futuro insiste em permanecer… no futuro, opaco, impermeável.
Para se afastar das ciências sociais, a economia adotou modelos matemáticos formais, numa tentativa de se aproximar das ciências naturais e transmitir uma visão de alto rigor metodológico e menor viés do observador. O esforço, nascido torto por definição, pois a economia sempre pertencerá ao escopo das ciências sociais, rendeu aos economistas o apelido de physics envies, os “invejosos da física”.
Normalmente, o que vai definir o curso da história será um evento aleatório inesperado e de alto impacto. Nassim Taleb tem uma extensa literatura pautada na ideia dos cisnes negros, bem como Morgan Housel, em seu mais novo livro, chamado O Mesmo de Sempre, detalha como a maior parte das coisas costuma estar por um fio.
Pegue o Relatório Focus do início de cada ano e compare com as variáveis efetivamente observadas 12 meses depois. Erramos fragorosamente a cada ano. Mas isso nem é o mais surpreendente. Entramos em janeiro e lá vamos nós mais uma vez olhar para o mesmo documento, ávidos por tentar saber o que vai acontecer até dezembro. Como no princípio da contraindução de Mário Henrique Simonsen, insistimos em algo que dá errado, até que dê certo.
Esse tipo de exercício costuma carregar outro problema típico: o groupthink. Outra tendência da natureza humana é repetir certos comportamentos tribais. O viés cognitivo sai do campo da ciência para penetrar a linguagem de rua: “Melhor errar com todo mundo do que acertar sozinho”. Recorrendo de novo a Morgan Housel no livro O Mesmo de Sempre, algumas coisas nunca vão mudar, entre elas a natureza humana. Eu adicionaria: os ciclos de mercado.
Estamos encerrando um ciclo em 2023 e entraremos em janeiro vivendo, em termos práticos, “o primeiro ano pós-pandemia”. Não é algo necessariamente cronológico. No cotidiano, as preocupações mais imediatas e diretas com a covid-19 foram dissipadas já há algum tempo. O raciocínio poderia ser resumido assim: vivemos de julho de 2021 a novembro de 2023 as consequências nefastas dos abusos monetários e fiscais daquele necessário esforço de guerra para enfrentar o coronavírus. Com juros zerados e muita liquidez no sistema, vivemos uma farra do boi e, como toda boa farra, ela cobrou seu preço depois. A ressaca veio com a mesma intensidade do desbunde. A inflação disparou e, com ela, os juros. Os mercados reagiram negativamente aos apertos monetários. Enfim, agora flertamos com a acomodação dos excessos e de suas consequências, para voltarmos à normalidade.
Com alguma razão, poderíamos argumentar em prol da necessidade de estímulos fiscais e monetários ao longo de 2020. É a cartilha keynesiana clássica: em momentos de fraqueza da demanda agregada, precisamos expandir os gastos do governo e preencher esse vazio, suavizando o momento negativo do ciclo. Entretanto, não há como escapar da máxima de que a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. É um clássico também da política econômica.
Ninguém imaginava que a Selic se mantivesse na mínima histórica de 2% por muito tempo. Mas também ninguém esperava sua caminhada em direção aos 13,75% — a expectativa era que parássemos ali por volta dos 7%-8% ao ano. Algo semelhante valeu para os Estados Unidos. Sabíamos que o juro zerado não duraria para sempre. E o consenso projetava caminhada para alguma coisa perto de 3% — fomos para 5,5%.
As consequências para os ativos de risco foram dramáticas. A indústria de fundos brasileira viveu seu segundo maior drawdown da história e o maior volume de resgate já observado em multimercados e fundos de ações. Nos Estados Unidos, o famoso portfólio 60/40 teve em 2022 um de seus piores anos de toda a série. Vivemos a pandemia e suas mazelas. O estrago foi brutal.
É nesse sentido que considero o ano de 2024 “o primeiro pós-pandemia”. Somente agora encerramos aquele ciclo. Os juros foram reduzidos num primeiro momento por causa da covid-19. Depois, foram dramaticamente elevados. Terminamos o ajuste. Encerramos aquela era da história. Tivemos a festa, a ressaca e agora entramos em 2024 flertando com o início do processo de corte dos juros mundo afora e seu aprofundamento no Brasil.
Então, chego à conclusão: ora, se o aperto monetário vigoroso conduziu a uma enorme destruição de valor dos ativos de risco, por simetria e lógica, o processo de flexibilização deveria apontar na direção oposta. Um Brasil com Selic a 8% seria muito diferente de um país com juro básico de 13,75%. Nos Estados Unidos, a Fed Funds Rate deve ser reduzida em cerca de 150 pontos-base.
O impacto disso sobre os preços dos ativos é transformacional. Veja que a destacada melhora dos mercados em novembro se deveu, em grande medida, ao recuo das taxas de juro nos Estados Unidos. Os yields dos Treasuries de dez anos saíram de perto de 5% para 4,2%. Os ativos de risco voaram por todo o mundo.
Se 2024 será o primeiro ano pós-pandemia, teremos um mundo mais parecido com 2019, quando nossos ativos de risco andaram muito bem.