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Falta ambição ao Brasil, diz responsável por índice de evolução das nações

O indiano Soumitra Dutta, um dos responsáveis pelo Global Innovation Index, defende uma agenda nacional para tirar o país do atraso

Dutta, de Cornell: “A destruição do setor privado no Brasil foi longe demais” | Divulgação /

Dutta, de Cornell: “A destruição do setor privado no Brasil foi longe demais” | Divulgação /

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Da Redação

Publicado em 24 de maio de 2018 às 05h59.

Última atualização em 24 de maio de 2018 às 05h59.

O indiano Soumitra Dutta está acostumado a rodar o mundo em busca de exemplos bem-sucedidos de países que investiram em inovação para vencer a pobreza. Formado em ciência da computação, Dutta é professor de administração na Universidade Cornell, nos Estados Unidos, e um dos responsáveis pelo Global Innovation Index, ranking de 127 nações de acordo com o apoio a políticas de fomento à ciência e tecnologia, organizado pela Cornell em parceria com a escola de negócios francesa Insead, onde Dutta lecionou até 2012, e com a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, com sede em Genebra, na Suíça.

É mais uma lista em que o desempenho do Brasil é decepcionante: em 2017, ficamos no 69o lugar, mesma posição do ano anterior, atrás de emergentes como Índia (60o) e África do Sul (57o). Um dos motivos, na opinião de Dutta, é a falta de uma visão nacional de como adotar a inovação e, por consequência, as tecnologias por trás da Quarta Revolução Industrial. O resultado é a baixa presença — e a falta de ambição — global das empresas brasileiras, enredadas nos problemas decorrentes de atuar apenas num ambiente de negócios fechado como é o Brasil. A seguir, uma entrevista concedida por Dutta quando esteve em São Paulo para falar no evento “Inovação — A Indústria do Futuro”, realizado em parceria pela Confederação Nacional da Indústria e por EXAME.

O que um país precisa para estar na fronteira da Quarta Revolução Industrial?

Mesmo economias avançadas estão começando agora a investir nessa transformação. Não há país hoje em que 100% das empresas sejam digitais. Mas boa parte deles está perseguindo quatro componentes. O primeiro é ter empresas com tecnologia de ponta em nível global, como Google, Facebook, Microsoft, Amazon e Alibaba. Depois, é preciso ter um mercado de organizações dispostas a adotar as soluções das empresas inovadoras. Outro ponto é o talento humano, desenvolvido com educação adequada às vocações locais. A Índia só tem hoje uma indústria de tecnologia de padrão global pela disposição de governo e empresas em treinar milhões de programadores desde os anos 80. Tudo isso precisa estar amarrado num quarto ponto, que é uma estratégia nacional para inovação.

Como criar uma estratégia dessas?

Não há nenhum mistério. A inovação precisa estar na preocupação das lideranças políticas. Na França, o governo de Emmanuel Macron lançou, recentemente,  uma estratégia para o país liderar os estudos em inteligência artificial. Os Emirados Árabes Unidos anunciaram a criação de um ministério para o assunto e colocaram um jovem de 27 anos na chefia. Na China, há algumas décadas as mais altas lideranças do Partido Comunista se preocupam em criar ecossistemas para aperfeiçoar tecnologias originalmente de outros países. Há 15 anos, os chineses decidiram ser uma referência mundial em trens de alta velocidade. Para isso, fizeram associações com empresas de berços da tecnologia, treinaram sua população e abriram espaço para a transferência de tecnologia para empresas locais, que hoje competem de igual para igual por clientes mundo afora. Isso nunca teria ocorrido sem uma visão do governo. Se o governo não insistir na inovação, ela não acontece. A internet não existiria hoje sem investimento das agências militares dos Estados Unidos  nem as pesquisas em genoma.

Como está o Brasil nessa corrida?

A imagem do Brasil no mundo é pouco associada a inovação. Isso decorre do fato de poucas empresas brasileiras terem uma presença global. No ranking da revista Fortune, que lista as 500 maiores empresas do mundo, os Estados Unidos têm 130 empresas. A China, 120. O Brasil tem sete. Para um país enorme e repleto de oportunidades, é uma representação baixíssima.

Robôs na China: o país copia — e melhora — as tecnologias de fora | Mao Siqian Xinhua / Eyevine/Glow Images

Por que temos poucas empresas globais?

É uma combinação de fatores, públicos e privados. Há razões estruturais que dependem do governo, como o desequilíbrio macroeconômico que o país viveu por muito tempo, com inflação e juros altíssimos. Mas isso não explica a situação. Não existe país perfeito. China, Estados Unidos e outros gigantes, como o Brasil, também convivem com problemas estruturais. Nem por isso deixam de ter empresas globais. As empresas brasileiras deveriam ter mais ambição global. Para isso, uma estratégia nacional deveria identificar as áreas onde o país tem vantagem competitiva e incentivar a inovação nessas fronteiras.

Quais são essas áreas?

O Brasil é muito forte na agricultura. A Embrapa tem sido uma tremenda fonte de inovação na chamada “agricultura digital”, que está se tornando uma área importante. O Brasil pode liderar o mundo no uso de drones e da agricultura de precisão. Além disso, a Embraer e a cadeia aeroespacial são uma tremenda força. Há só quatro países exportadores de aviões, e o Brasil é um deles. Mesmo a China não exporta aviões. Para a marca Brasil, ter uma Embraer é um enorme ativo — e me pergunto quanto o país perderá se a empresa for mesmo vendida à Boeing e passar a ser vista como americana.

E onde falta ambição, e o Brasil vai mal?

O setor de serviços poderia ser mais bem explorado. O Brasil tem uma natureza linda. Por que não há maravilhosas redes hoteleiras brasileiras pelo mundo? Ou as melhores companhias aéreas? A Índia tem gigantes como o Taj Group, com hotéis por toda a Ásia. Por trás desses grupos estão negócios na fronteira da digitalização. Há incentivos governamentais para a inovação ir a esses negócios. No Brasil, não há, mas poderá haver, basta ter a visão de criar uma integração entre governo e setor privado. A questão é ter uma liderança visionária. E ainda não é tarde demais para ter isso.

Executar uma estratégia nacional de inovação num país que não é democrático, como a China, não é mais fácil do que numa democracia com muitas esferas de decisão, como o Brasil?

Certamente a chance de uma estratégia de cima para baixo ser seguida pelo restante da sociedade é alta num sistema político que não é exatamente democrático, como o chinês. Mas mesmo nações democráticas, e com muitas esferas decisórias, podem criar mecanismos eficientes. Na Índia, uma federação parecida com o Brasil, nos últimos anos o governo central tem estipulado as linhas gerais da inovação e delegado aos estados a execução dessas ideias. Para incentivá-los, o governo federal criou com um grupo de empresários um indicador, o Índice de Inovação da Índia, para medir a capacidade dos governos locais de oferecer um ecossistema bom para novas ideias. A nota conta pontos na hora de distribuir verbas públicas aos estados e serve de referência também para investimentos das empresas. Os mais bem colocados recebem mais recursos. O resultado é que a Índia tem conseguido levar adiante iniciativas bastante inovadoras, e que demandam muito esforço, como o cadastro digital de seus cidadãos, o Aadhaar, hoje uma comunidade com mais de 1 bilhão de inscritos, que estão tendo acesso a contas bancárias e a meios de pagamentos digitais porque estão registrados no sistema. Qual país tem uma comunidade virtual desse tamanho? Só duas empresas — Facebook e Tencent — têm algo assim.

O Brasil acaba de passar pela maior recessão de sua história. Muitas das grandes empresas nacionais estão envolvidas em escândalos de corrupção. É possível inovar nessas condições?

A questão é: qual é a escolha do Brasil? Certamente os brasileiros sofreram muito nos últimos anos com os próprios erros. Sim, houve corrupção, e ela precisa ser corrigida, mas acho que o Brasil está prejudicando mais do que deveria sua imagem perante o mundo. Veja o que aconteceu após a revelação de que a montadora Volkswagen havia escondido os altos índices de poluição que vinham de seus motores, um escândalo trazido à tona há dois anos. Os alemães seguem comprando carros da Volkswagen. Ou mesmo o que ocorreu nos Estados Unidos após a recessão de 2008, causada por um conluio de agências de classificação de risco com agentes financeiros para dar boas notas a títulos de crédito imobiliário que vieram a se tornar insolventes. Com o estouro da bolha, muita gente perdeu o emprego e até a residência. E alguém foi preso? Ninguém. Então, o que estou questionando é se essa destruição do setor privado brasileiro não está indo longe demais. Porque levará tempo para reconstruí-lo. E, se o país perder os próximos dez anos num crescimento pífio, o que poderá acontecer? A China estará muito mais à frente do Brasil do que está hoje na adoção de tecnologias que vão mudar o jogo nos próximos anos, como inteligência artificial, robotização e big data. Cabe à indústria brasileira agora se concentrar em sua reconstrução. A inovação é parte fundamental dela. 

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