Lai Ching-te: novo presidente de Taiwan defendeu a independência no passado e gera desconfiança em Pequim (Annabelle Chih/Getty Images)
Repórter de macroeconomia
Publicado em 25 de janeiro de 2024 às 06h00.
Última atualização em 26 de janeiro de 2024 às 11h55.
A tensão geopolítica entre Pequim e Taiwan é uma das mais complexas do mundo hoje. Há o risco de que um erro de cálculo ou um movimento mais brusco de uma das partes gere um conflito indireto entre Estados Unidos e China, as duas maiores potências deste início de século 21.
A dificuldade já começa com as palavras: Taiwan tem um governo autônomo, faz eleições próprias e conta com representações diplomáticas no exterior, mas não é oficialmente um país. Para a China continental, a ilha de Taiwan é uma província rebelde, que é parte do território chinês e deve ser reincorporada, mas em data indefinida.
Do outro lado, a 100 quilômetros de distância da costa chinesa, Taiwan vive de forma separada em relação à China continental há mais de 70 anos. Mas não há planos imediatos de formalizar uma independência, pois o custo disso seria uma guerra, como Pequim deixa claro. Assim, os dois lados vão empurrando a questão para a frente — deixando os analistas de riscos geopolíticos de cabelo em pé.
Em janeiro, esse enredo teve um novo capítulo, com as eleições presidenciais em Taiwan. No dia 13, os moradores da ilha elegeram como presidente Lai Ching-te, de 64 anos. Político de carreira, ele foi deputado, prefeito de Tainan, premiê e vice-presidente da atual mandatária, Tsai Ing-wen. Assim, o Partido Democrático Progressista (PDP) continuará no poder por mais quatro anos.
A vitória de Lai não era o que Pequim queria. O atual governo taiwanês mantém uma política de distanciamento em relação ao continente e, no passado, Lai disse ser um trabalhador pela independência. Ele amenizou o discurso na campanha, mas a posição do PDP é considerar que a ilha já é independente e que, assim, basta deixar tudo como está. O KMT, maior partido da oposição, defende a retomada das conversas com Pequim para reduzir as tensões.
“Pequim vê Lai como um dos políticos mais pró-independência do PDP. Isso torna muito improvável que o Partido Comunista Chinês se engaje em algum diálogo oficial com ele”, diz Grant Wyeth, editor da plataforma AP4D (sigla em inglês para Ásia-Pacífico, Desenvolvimento, Diplomacia e Contenção) e que acompanhou as eleições em Taiwan presencialmente. “As suspeitas sobre Lai farão com que Pequim exerça o máximo de pressão possível sobre Taiwan.” Para ele, um dos sinais disso foi o gesto de Nauru, um pequeno país insular na Oceania, de retirar seu reconhecimento diplomático de Taiwan. Desde 2016, quando o PDP chegou ao poder, dez países tiveram gesto similar. “Ir atrás dos aliados de Taiwan é um modo de causar dano sem uma invasão. Isso pode ser suficiente para Pequim”, afirma Wyeth.
Outros analistas também consideram que a China deve seguir com gestos para ampliar a pressão e que uma invasão de fato parece distante. Mauricio Moura, professor na Universidade George Washington que viajou a Taiwan, disse que a maior preocupação por lá é que a China busque dificultar a circulação de navios na região, o que levaria a um estrangulamento no comércio marítimo. “Na opinião pública de Taiwan, há a percepção de que não haverá uma invasão, independentemente do cenário”, diz. “Quando estive lá, recebi no celular um alerta de exercício militar da China, mas notei que a população da ilha é acostumada com essas ações.”
Sem um ataque militar físico, se materializa outra ameaça: ataques virtuais que colocam em risco sistemas críticos da ilha e podem espalhar campanhas de desinformação e fake news. Em uma amostra do que pode ocorrer no festival de eleições deste ano, quando haverá disputas em mais de 70 nações, houve uma enxurrada de vídeos criados com auxílio de inteligência artificial que buscavam expor supostos fatos negativos do passado dos candidatos. Entre elas, a mensagem frequente de que uma vitória de Lai significaria dar um passo em direção à guerra. “A ideia era tentar enfraquecer a votação no PDP, partido do governo, já que, se ele perdesse algo em torno de 10% dos votos, poderia perder a eleição. No entanto, esse conteúdo teve pouco engajamento orgânico. Ou seja, as pessoas comuns compartilharam pouco as postagens”, disse Kenton Thibaut, associada sênior do Laboratório de Pesquisa Digital Forense do think tank americano Atlantic Council.
O impasse na relação entre os dois lados do estreito vem desde 1949. Naquele ano, a Revolução Comunista chefiada por Mao Tsé-Tung tomou o poder na China e expulsou o governo anterior, que fugiu para Taiwan e, de lá, buscou manter sua legitimidade. Até hoje, o nome oficial do governo de Taiwan é República da China, enquanto o governo de Pequim se tornou República Popular da China.
Nas primeiras décadas após a revolução, muitos países seguiram reconhecendo o governo em Taiwan como sendo a China de fato, mas isso foi mudando aos poucos. Em 1978, os Estados Unidos retomaram as relações com o governo comunista, após uma costura habilidosa da diplomacia americana, chefiada na época por Henry Kissinger, morto em novembro de 2023. A mudança deu início a uma forte aliança comercial: empresas americanas passaram a fabricar de tudo na China nas décadas seguintes, em um movimento que ajudou a levar o país asiático ao posto de segunda maior economia global.
Taiwan também se beneficiou do movimento do Ocidente de migrar fábricas e se tornou um grande produtor do item mais importante dos aparelhos eletrônicos: o microchip, usado em celulares, computadores, automóveis e em quase todos os dispositivos que processam informações. Atualmente, a ilha fabrica metade da demanda mundial de chips e é a sede da maior empresa do setor, a TSMC.
No entanto, mesmo depois de restabelecer os laços com Pequim, os Estados Unidos não abandonaram Taiwan. O governo americano tem um acordo com a ilha, pelo qual promete ajudar na defesa militar em caso de invasão, embora não se comprometa a enviar soldados em caso de conflito. Isso ajuda a dissuadir a China de tentar uma invasão de fato, sob o risco de desencadear uma guerra global.
A disposição bélica de Pequim, no entanto, ganhou força na última década, depois que Xi Jinping assumiu o comando do país. Presidente da China desde 2013, Xi acentuou o discurso de “uma só China”: a defesa de que todos os territórios do país devem se aproximar das políticas do governo central, o que na prática significa calar dissidências. O exemplo mais claro disso ocorreu em Hong Kong: a região, que viveu mais de um século sob controle britânico, foi devolvida à China em 1997. Um acordo determinava que Hong Kong manteria características diferenciadas, como eleições livres, liberdade de imprensa e livre mercado. Era o modelo “um país, dois sistemas”, que ruiu em 2019. Após uma onda de fortes protestos contra as medidas de Pequim, o governo chinês mudou as regras, puniu duramente os líderes das manifestações e reduziu muito o poder da oposição na região.
Depois do que ocorreu em 2019, cresceu a expectativa de que a China apertaria o cerco sobre Taiwan. Em meio a isso, houve um reforço do grupo Quad, um fórum de defesa militar que une Estados Unidos, Austrália, Índia e Japão. O grupo foi criado em 2007, mas teve sua primeira reunião de chefes de governo em 2021. O Quad não é uma aliança tão forte como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que garante proteção mútua a seus membros em caso de agressão, mas busca passar um sinal claro de integração entre forças militares, que poderão reagir em conjunto em caso de avanço chinês.
Depois da votação em Taiwan, o próximo grande passo esperado é o discurso de posse de Lai, em 20 de maio. Em sua fala, ele deve indicar se haverá ou não uma mudança substancial de tom em relação ao continente. Contudo, o partido de Lai não terá maioria no Congresso, o que o impedirá de fazer movimentos amplos sem apoio. “A política externa de Lai deverá ser muito consistente com a dos últimos oito anos. Desde 2016, a linha mestra tem sido a New Southbound Policy, uma busca de laços mais fortes com o Sudeste Asiático, o Sul da Ásia, a Austrália e a Nova Zelândia. Taiwan tem visto isso não só como algo recompensador na economia, mas como um modo de criar contenções por meio de parcerias internacionais fortes”, aponta Wyeth, da AP4D.
Na campanha, Lai também buscou falar muito de temas domésticos, de olho no eleitorado mais jovem, que já não se importa tanto com a questão externa. Shelley Rigger, professora de política do Leste Asiático na universidade americana Brown, mostra que pesquisas revelam que um terço da população de Taiwan diz se identificar com a origem chinesa, mas que dois terços se veem como taiwaneses — número muito maior do que há 30 anos, por exemplo. Essa parcela da população defende a independência, mas não vê problema em manter as coisas como estão. “Eles dizem: ‘Eu nasci e cresci aqui. Não faz sentido falar de mim como chinês se sou de Taiwan. A China é outra coisa. Mas o que importa é que possamos nos governar, ter liberdade no dia a dia. Podemos viver com a situação atual. Taiwan está indo bem”, afirma Rigger.
Resta ver se Pequim continuará disposta a manter as coisas como estão, um cenário em que duas versões da China conseguiram prosperar, cada uma à sua maneira. Para o mundo, esse status quo importa, e muito.