Revista Exame

Este ex-investidor criou o maior esquema de pirâmide da história

Leia um trecho de O Mago das Mentiras, novo livro da jornalista americana Diana Henriques sobre Bernie Madoff

Bernie Madoff, em 2009: ele chegou a administrar 64,8 bilhões de dólares (Hiroko Masuike/Getty Images)

Bernie Madoff, em 2009: ele chegou a administrar 64,8 bilhões de dólares (Hiroko Masuike/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 27 de julho de 2017 às 15h15.

Última atualização em 27 de julho de 2017 às 18h22.

São Paulo — O nome de Bernie Madoff é reconhecido e vilificado em todo o mundo como o representante de uma era egoísta e vergonhosa. Ele foi deplorado na Suíça e discutido em programas de rádio na Austrália; causou sussurros na China e temores no Golfo Pérsico. Seu rosto esteve em todos os jornais americanos, foi estampado nas capas de revistas em meia dúzia de línguas e caricaturado em charges políticas por toda parte. Mesmo em uma era de hipérboles, a história é inacreditável: um esquema de pirâmide financeira (também conhecido pelo nome de esquema Ponzi) de bilhões de dólares que durou décadas, estendeu-se por todo o globo e atraiu algumas das pessoas mais ricas, sábias e respeitadas do mundo. Milhares de pessoas comuns também foram pegas na rede de Madoff — e ficaram completamente arruinadas. Após a derrocada econômica de 2008, com a desonestidade e a tramoia sendo expostas no mundo financeiro, nenhum vilão se tornou a face mais humana do colapso quanto Madoff, talvez porque seu crime envolvesse muito mais do que a crise. Era um drama em si mesmo, uma história tão antiga quanto a cobiça e tão comovente quanto a confiança humana. Subitamente, ricos ficaram pobres, sábios se viram expostos como tolos e os ponderados foram consumidos pela raiva.

Durante décadas, Bernie Madoff viveu no centro de uma crescente rede de mentiras. Em seu longo silêncio desde a prisão em 2008, partes dessa rede se misturaram a informações errôneas e fofocas maliciosas. Muitos desses nós são desfeitos em meu livro, com a ajuda de novas informações e análises sobre sua relação com a família e seus principais investidores, e o envolvimento deles com os crimes. A história pôde ser detalhada pela primeira vez porque Bernie Madoff concordou em me receber e falar sobre ela na primeira entrevista que concedeu desde sua prisão. Num primeiro momento, ele evitou minhas numerosas solicitações. Mas, quando finalmente se sentou comigo pela primeira vez, a conversa durou mais de 2 horas. Madoff revelou detalhes de sua vida e de sua carreira que estavam nas sombras até então e falou sobre os pontos fracos de Wall Street. Sua opinião sobre os efeitos colaterais de seu crime é chocante. Ele sabia que algumas vítimas haviam conseguido retirar do esquema Ponzi mais do que haviam investido; as demais não o fizeram, mas receberiam quaisquer valores que seu maciço caso de falência produzisse. Olhando para esses dois fatos, Madoff previu — para além de toda lógica — que as vítimas ‘se saíram melhor do que se tivessem investido no mercado’ durante o colapso de 2008.

Com base nesses detalhes, fica claro que o hábito de iludir começou mais cedo do que até ele se dá conta. Já em 1962, como ele próprio admitiu, Bernie Madoff encobriu as grandes perdas que infligiu aos clientes ao investir de maneira inadequada em ações de alto risco. Os lucros falsamente inflados melhoraram sua reputação e lhe trouxeram mais negócios. No fim da década de 80, ele usava estratégias obscuras para ajudar seus maiores clientes a driblar o imposto de renda e os controles sobre moedas estrangeiras, avançando ainda mais na direção das fronteiras cinzentas da fraude. Após a quebra da bolsa em 1987, Madoff foi prejudicado pelas retiradas dos investidores mais antigos. Disse-me que começou a cobrir essas retiradas inoportunas com o dinheiro dos novos fundos — foi então que seu esquema Ponzi, a clássica fraude de ‘despir um santo para cobrir outro’, nasceu. Em 1992, estava falsificando carteiras inteiras de ações, opções e bônus. No fim, entre seus clientes fraudados estavam gigantescos investidores institucionais — do banco Santander, na Espanha, ao governo de Abu Dhabi e bancos privados na Suíça.

A escala de seu roubo não tem precedentes. No dia de sua prisão, ele administrava cerca de 64,8 bilhões de dólares de terceiros. Se realmente tivesse esse dinheiro, seria o maior gestor de investimentos do mundo — 50% maior do que o gigantesco banco JP Morgan Chase, duas vezes maior do que o Goldman Sachs e mais de três vezes maior do que os fundos do lendário investidor global George Soros. Mas muito pouco desse dinheiro existia realmente. Madoff falsificava tudo, dos extratos dos clientes aos relatórios financeiros, numa escala que supera qualquer outro esquema Ponzi da história. ‘Em 1998, percebi que jamais sairia livre dessa’, disse durante uma entrevista na prisão.

A elaboração do maior esquema Ponzi da história foi possível graças à Wall Street que Madoff ajudou a construir. Ele desempenhou um papel proeminente na modelagem do mercado moderno. Vislumbrou tendências, viu oportunidades, ajudou a escrever as regras e incitou as fraquezas com as quais todos convivemos, mesmo hoje. Foi uma criatura do mundo que ajudou a criar — um mundo ávido pelo lucro sem riscos, impaciente com as regulamentações, arrogantemente seguro do sucesso, lamentavelmente iludido sobre o que poderia dar errado e indiferente aos danos causados. Que a vida de Madoff estivesse ligada tão intimamente à história de Wall Street certamente o ajudou a sustentar seu crime durante tanto tempo. Se ele foi um mago perverso, seu poder foi vastamente ampliado pelo fato de todos os investidores se mudarem para o castelo com ele.

Desejo e ilusão

Com seu escopo global, o caso Madoff deu ao mundo algumas novas e inquietantes lições sobre um crime muito antigo. Durante a história, esquemas Ponzi sempre foram ambíguos. Como um roubo, um esquema Ponzi é uma transferência de riqueza. Mas, ao contrário de um roubo, a transferência não é apenas da vítima para o vilão, é também de vítima para vítima. É um crime que, no auge de seu sucesso, é indolor. Até o dia em que a música para de tocar. Antes disso, qualquer um que precise retirar o dinheiro pode fazê-lo. E os outros, aqueles que não retiram seu dinheiro, sentem-se seguros de sua fortuna, protegidos das ansiedades financeiras do mundo. Sem dúvida, foi assim que Bernie Madoff conviveu com seu crime, dia após dia. Ele não via nenhuma ‘vítima’, via apenas ‘beneficiários’. É fácil compreender quão sedutor isso pode ser. Até o esquema ser descoberto, havia só uma possibilidade de que, algum dia, os clientes seriam prejudicados. E, afinal, Madoff poderia morrer antes disso. Ou o mundo poderia acabar, como ele imaginou. Ou, melhor ainda, ele poderia pensar em uma maneira de se livrar.

Esse esquema entregou outra nova e indesejada mensagem. Com sua habilidade para convencer mesmo os mais sofisticados investidores institucionais, Bernie Madoff revelou quão diabolicamente é difícil para as agências reguladoras financeiras protegerem o público no século 21. Se a história de Madoff não provar mais nada, ela prova que os reguladores vivem em um mundo de sonhos, muito diferente do mundo de sonhos dos investidores. Os reguladores acreditam em ceticismo, mas a maioria dos investidores deseja simplicidade. Se os reguladores encontram alguém afirmando ter um investimento lucrativo e seguro que sempre sobe quando o restante desce, eles querem levá-lo ao tribunal; os investidores querem levá-lo para jantar. Os reguladores acreditam nas letras miúdas dos prospectos. Os investidores nunca leem as letras miúdas — nunca. Em razão desse conflito, o escândalo Madoff levou quase todos em Washington a fazer as perguntas erradas: como melhorar o mundo dos reguladores? Como fazer com que um regime regulatório baseado em letras miúdas funcione melhor? As perguntas que deveriam ter sido feitas eram: como melhorar o mundo dos investidores? Que tipo de regime funciona em um mundo no qual ninguém lê as letras miúdas e no qual investir é quase sempre um salto no escuro?

A lição do caso Madoff é clara: o regime de ‘total transparência’, que há mais de 75 anos produz documentos com letras miúdas para os investidores, não funciona — e não apenas porque a SEC (a comissão de valores mobiliários americana) falhou em investigar as denúncias que recebeu. Não funciona porque não reflete a maneira como os investidores tomam as decisões. Não foi a falta de informações que infligiu as perdas catastróficas às vítimas de Madoff. O que deu errado foi a rejeição dos princípios básicos do investimento:  altos retornos estão ligados a altos riscos; jamais se deve colocar todos os ovos em uma única cesta; jamais se deve investir em algo que não se consegue entender. As vítimas de Madoff falharam em compreender que ninguém deve entregar todo o dinheiro a alguém apenas porque confia nesse alguém ou porque uma pessoa que admirava confiava nele.

E, contudo, foi isso que milhões de pessoas fizeram. Não consultamos as letras miúdas para decidir se confiamos em alguém. Consultamos nossos amigos, familiares, colegas de trabalho, filhos, pais, conhecidos ricos, experiências passadas e, por fim, nossos instintos. E, como Bernie Madoff descobriu, uma vez que a confiança é conquistada, ela protege o trapaceiro. Mais regras e mais letras miúdas não farão muito para impedir o próximo Bernie Madoff. O que funcionaria? Este poderia ser um exercício para as novas gerações. Talvez devamos fazer com que os investidores estudem e passem em um teste antes de se arriscar. Ou talvez seja uma questão de tornar as penas, mesmo para as menores infrações, tão draconianas que Wall Street policiará a si mesma, denunciando os suspeitos e protegendo os investidores de seus piores instintos. Penalidades sérias, como a perda da liberdade ou danos significativos à carreira, podem ser mais efetivas do que criar mais regras mais enfáticas e aplicadas por mais inspetores inexperientes.

O ponto aqui não é defender uma ou outra reforma, mas procurar soluções fora da caixa que de fato corrijam aquilo que deu errado no escândalo Madoff e não sejam simplesmente melhorias do regime de letras miúdas. Sem treinamento, todos superestimamos nossa capacidade de -detectar riscos e reconhecer criminosos no mercado. Essa é a difícil lição do caso Madoff que nenhum de nós quer aceitar. Todos investimos na fé. Todos acreditamos que a confiança é tudo de que precisamos — na verdade, a maioria de nós não tem tempo nem informação suficiente para se apoiar em algo além da confiança. Se os reguladores e os criadores de políticas não reconhecerem isso, sua abordagem do crônico problema das fraudes no mercado será limitada e ineficaz.”

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